Prática Trabalhista

Autismo e familiares: proteção e inclusão no mercado de trabalho

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

6 de abril de 2023, 8h00

A data anual de 2 de abril é mais conhecida pelo Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo e que tem por propósito, para além da divulgação da própria informação para a população sobre o assunto, reprimir a discriminação e o preconceito que atingem tais pessoas [1].

O transtorno do espectro autista (TEA) "se refere a uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva" [2], de modo que tal pessoa pode necessitar de cuidados e atenção especiais.

Segundo os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que, em todo o mundo, uma a cada 100 crianças tenha autismo [3]. Contudo, impende destacar que outras pesquisas apontam que esse número poderá ser ainda mais elevado, porquanto há certo desconhecimento em países de baixa e média renda [4].

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Entrementes, de acordo com as estatísticas do órgão de saúde Center for Disease Control and Prevention (CDC), no ano de 2020, nos Estados Unidos, houve um aumento gigantesco de casos oficiais registrados, sendo um caso de transtorno a cada 36 crianças, ao passo que no ano 2000 o registro era de um caso a cada 150 crianças observadas [5].

Neste ano de 2023, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, em mensagem, informou que o objetivo era de progredir nos direitos e promover a inclusão social das pessoas que vivem com autismo [6], ressaltando, inclusive, o significativo papel das famílias.

Por certo, dada a importância do assunto, notadamente no mês que se celebra e busca a conscientização de toda a sociedade, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da Revista Consultor Jurídico (ConJur) [7], razão pela qual agradecemos o contato.

Com efeito, sabe-se que as pessoas com deficiência encontram uma enorme dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Entretanto, tal adversidade se estende também aos seus familiares, dada a necessidade de cuidados especiais que, muitas das vezes, se tornam indispensáveis.

De um lado, a Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012 [8], instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, estabelecendo como uma de suas diretrizes, no inciso V do seu artigo 2º, o estímulo à inserção dessa pessoa no mercado de trabalho. Lado outro, o Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência [9]. Ainda, a Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015, instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) [10].

A propósito, no ano de 2022, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Portaria nº 315, instituiu Grupo de Trabalho para a realização de estudos e elaboração de material destinado à orientação e treinamento no atendimento e atuação diante de pessoas com transtorno do espectro autista no Poder Judiciário [11].

Frise-se, por oportuno, que, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 85% das pessoas com transtorno do espectro autista não trabalham formalmente, não obstante a existência de legislação sobre o tema, assim como divulgação de práticas afirmativas de inclusão [12]. E, mais, um levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revelou que no setor privado a inclusão no mercado de trabalho de pessoas com deficiência ocupa pouco mais da metade das vagas abertas, sendo que no setor público a situação é ainda pior [13].

Acerca da temática, oportunos os ensinamentos de Rozi Engelke [14]:

"As ações afirmativas são, assim, medidas que visam à implantação de providências obrigatórias ou facultativas, oriundas de órgãos públicos ou privados, cuja finalidade é a de promover a inclusão de grupos notoriamente discriminados, possibilitando-lhes o acesso aos espaços sociais e a fruição de direitos fundamentais, com vistas à realização da efetiva igualdade constitucional. Podem, portanto, decorrer da lei que institua cotas ou que promova incentivos fiscais, descontos de tarifas; podem advir de decisões judiciais que também determinem a observância de cotas percentuais, mas sempre em favor de grupos, porque o momento histórico da criação das medidas afirmativas foi o da transcendência da individualidade e da igualdade formal de índole liberal e também da mera observância coletiva dos direitos sociais genéricos, que implicavam uma ação estatal universal, buscando compensação social em favor dos hipossuficientes social e econômico. As ações afirmativas representam um corte de observação da realidade que incide na maioria desvalida, mas observa as peculiaridades das minorias que a compõem, tendo-se em vista a insuficiência das ações genéricas em si mesmas."

De mais a mais, não obstante o enorme estigma que as pessoas com deficiência já enfrentam no dia a dia, os seus familiares, de igual sorte, nem sempre conseguem conciliar o trabalho com as suas responsabilidades no que tange ao cuidado com a pessoa deficiente.

Nesse sentido, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) já foi provocado a emitir um juízo de valor em um caso envolvendo o pedido de redução de jornada de uma trabalhadora, sem alteração de salário, tendo em vista a necessidade de cuidados especiais de seu filho e ausência de apoio do pai biológico [15]. Em seu voto, o ministro relator ponderou:

"Depreende-se, desse modo, ser fundamental a participação direta de pessoa da família no tratamento para evolução e melhora do dependente, que, para tanto, necessitará de tempo não só para a realização de tais ocupações, mas também para manutenção de sua saúde física e mental, através da prática do autocuidado."

Sob esta perspectiva, em um caso semelhante, o TST também autorizou a redução de jornada, sem redução de salário, para que fosse possível o acompanhamento da filha menor diagnosticada com transtorno do espectro autista. Ao proferir o seu voto, o ministro relator destacou:

"Dessa forma, mesmo que ausente nas normas internas da empresa, ou na legislação celetista, o direito à redução da jornada no caso dos autos, impõe-se resguardar a máxima proteção à dependente da empregada, portadora espectro autista, em homenagem aos princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção da pessoa com deficiência e da “absoluta prioridade” na salvaguarda do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária da criança e do adolescente." [16]

Nesse diapasão, nota-se que, para além da importância da inclusão da pessoa deficiente ao mercado do trabalho, é preciso outrossim que em situações justificadoras seja garantida ao familiar a possibilidade de uma maior flexibilidade no contrato de trabalho, para o fim de prestar os cuidados necessários à pessoa sob a sua dependência.

Aliás, é importante relembrar ser dever de toda a sociedade contribuir com políticas afirmativas de inclusão, garantindo ao familiar em situação justificadora um meio ambiente do trabalho saudável e de respeito aos princípios e às garantias constitucionais fundamentais.

Outrossim, vale lembrar que o desenvolvimento sustentável, em observância a Agenda 2030 [17] da Organização das Nações Unidas, tem por objetivo 10 [18] a redução da desigualdade dentro dos países, promovendo e empoderando a inclusão, ao passo que o objetivo 16 [19] visa promover sociedades pacíficas e inclusivas.

Em arremate, é forçoso uma mudança de cultura e de hábitos para que seja possível a promoção de uma educação abrangedora, garantindo efetiva igualdade real e material às pessoas que exijam um cuidado diferenciado, evitando-se um tratamento discriminatório. Frise-se que tal medida não se trata de um benefício concedido aos familiares que cuidem de pessoas com autismo, mas sim de um mecanismo de respeito à dignidade da pessoa humana, assim como de erradicação das desigualdades e sobretudo de boas práticas empresariais de ESG [20].

 


[6]Disponível em  https://news.un.org/pt/story/2023/04/1812107. Acesso em 04.04.2023.

[7] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[11] Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4736 . Acesso em 04.04.2023.

[14] PRINCÍPIO DA IGUALDADE – PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA. Cadernos da Escola Judicial do TRT da 4ª Região – nº 08-2014. Página 53.

[17] Disponível em https://portal.stf.jus.br/hotsites/agenda-2030/. Acesso em 04.04.2023.

[18] Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/10. Acesso em 04.04.2023.

[19] Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/16. Acesso em 04.04.2023.

[20] Para melhor conhecimento e aprofundamento da temática, indicamos a leitura da obra ESG: A Referência da Responsabilidade Social Empresarial (Editora Mizuno), da qual o professor Ricardo Calcini é um dos organizadores. Disponível em: https://www.editoramizuno.com.br/livro-sobre-esg-e-responsabilidade-social-empresarial.html. Acesso em 4.4.2023.

Autores

  • é professor sócio consultor de Chiode e Minicucci Advogados | Littler Global. Parecerista e advogado na Área Empresarial Trabalhista Estratégica. Atuação especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Docente da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Ceilo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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