Autismo e familiares: proteção e inclusão no mercado de trabalho
6 de abril de 2023, 8h00
A data anual de 2 de abril é mais conhecida pelo Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo e que tem por propósito, para além da divulgação da própria informação para a população sobre o assunto, reprimir a discriminação e o preconceito que atingem tais pessoas [1].
O transtorno do espectro autista (TEA) "se refere a uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva" [2], de modo que tal pessoa pode necessitar de cuidados e atenção especiais.
Segundo os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que, em todo o mundo, uma a cada 100 crianças tenha autismo [3]. Contudo, impende destacar que outras pesquisas apontam que esse número poderá ser ainda mais elevado, porquanto há certo desconhecimento em países de baixa e média renda [4].
Neste ano de 2023, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, em mensagem, informou que o objetivo era de progredir nos direitos e promover a inclusão social das pessoas que vivem com autismo [6], ressaltando, inclusive, o significativo papel das famílias.
Por certo, dada a importância do assunto, notadamente no mês que se celebra e busca a conscientização de toda a sociedade, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da Revista Consultor Jurídico (ConJur) [7], razão pela qual agradecemos o contato.
Com efeito, sabe-se que as pessoas com deficiência encontram uma enorme dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Entretanto, tal adversidade se estende também aos seus familiares, dada a necessidade de cuidados especiais que, muitas das vezes, se tornam indispensáveis.
De um lado, a Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012 [8], instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, estabelecendo como uma de suas diretrizes, no inciso V do seu artigo 2º, o estímulo à inserção dessa pessoa no mercado de trabalho. Lado outro, o Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência [9]. Ainda, a Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015, instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) [10].
A propósito, no ano de 2022, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Portaria nº 315, instituiu Grupo de Trabalho para a realização de estudos e elaboração de material destinado à orientação e treinamento no atendimento e atuação diante de pessoas com transtorno do espectro autista no Poder Judiciário [11].
Frise-se, por oportuno, que, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 85% das pessoas com transtorno do espectro autista não trabalham formalmente, não obstante a existência de legislação sobre o tema, assim como divulgação de práticas afirmativas de inclusão [12]. E, mais, um levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revelou que no setor privado a inclusão no mercado de trabalho de pessoas com deficiência ocupa pouco mais da metade das vagas abertas, sendo que no setor público a situação é ainda pior [13].
Acerca da temática, oportunos os ensinamentos de Rozi Engelke [14]:
"As ações afirmativas são, assim, medidas que visam à implantação de providências obrigatórias ou facultativas, oriundas de órgãos públicos ou privados, cuja finalidade é a de promover a inclusão de grupos notoriamente discriminados, possibilitando-lhes o acesso aos espaços sociais e a fruição de direitos fundamentais, com vistas à realização da efetiva igualdade constitucional. Podem, portanto, decorrer da lei que institua cotas ou que promova incentivos fiscais, descontos de tarifas; podem advir de decisões judiciais que também determinem a observância de cotas percentuais, mas sempre em favor de grupos, porque o momento histórico da criação das medidas afirmativas foi o da transcendência da individualidade e da igualdade formal de índole liberal e também da mera observância coletiva dos direitos sociais genéricos, que implicavam uma ação estatal universal, buscando compensação social em favor dos hipossuficientes social e econômico. As ações afirmativas representam um corte de observação da realidade que incide na maioria desvalida, mas observa as peculiaridades das minorias que a compõem, tendo-se em vista a insuficiência das ações genéricas em si mesmas."
De mais a mais, não obstante o enorme estigma que as pessoas com deficiência já enfrentam no dia a dia, os seus familiares, de igual sorte, nem sempre conseguem conciliar o trabalho com as suas responsabilidades no que tange ao cuidado com a pessoa deficiente.
Nesse sentido, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) já foi provocado a emitir um juízo de valor em um caso envolvendo o pedido de redução de jornada de uma trabalhadora, sem alteração de salário, tendo em vista a necessidade de cuidados especiais de seu filho e ausência de apoio do pai biológico [15]. Em seu voto, o ministro relator ponderou:
"Depreende-se, desse modo, ser fundamental a participação direta de pessoa da família no tratamento para evolução e melhora do dependente, que, para tanto, necessitará de tempo não só para a realização de tais ocupações, mas também para manutenção de sua saúde física e mental, através da prática do autocuidado."
Sob esta perspectiva, em um caso semelhante, o TST também autorizou a redução de jornada, sem redução de salário, para que fosse possível o acompanhamento da filha menor diagnosticada com transtorno do espectro autista. Ao proferir o seu voto, o ministro relator destacou:
"Dessa forma, mesmo que ausente nas normas internas da empresa, ou na legislação celetista, o direito à redução da jornada no caso dos autos, impõe-se resguardar a máxima proteção à dependente da empregada, portadora espectro autista, em homenagem aos princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção da pessoa com deficiência e da “absoluta prioridade” na salvaguarda do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária da criança e do adolescente." [16]
Nesse diapasão, nota-se que, para além da importância da inclusão da pessoa deficiente ao mercado do trabalho, é preciso outrossim que em situações justificadoras seja garantida ao familiar a possibilidade de uma maior flexibilidade no contrato de trabalho, para o fim de prestar os cuidados necessários à pessoa sob a sua dependência.
Aliás, é importante relembrar ser dever de toda a sociedade contribuir com políticas afirmativas de inclusão, garantindo ao familiar em situação justificadora um meio ambiente do trabalho saudável e de respeito aos princípios e às garantias constitucionais fundamentais.
Outrossim, vale lembrar que o desenvolvimento sustentável, em observância a Agenda 2030 [17] da Organização das Nações Unidas, tem por objetivo 10 [18] a redução da desigualdade dentro dos países, promovendo e empoderando a inclusão, ao passo que o objetivo 16 [19] visa promover sociedades pacíficas e inclusivas.
Em arremate, é forçoso uma mudança de cultura e de hábitos para que seja possível a promoção de uma educação abrangedora, garantindo efetiva igualdade real e material às pessoas que exijam um cuidado diferenciado, evitando-se um tratamento discriminatório. Frise-se que tal medida não se trata de um benefício concedido aos familiares que cuidem de pessoas com autismo, mas sim de um mecanismo de respeito à dignidade da pessoa humana, assim como de erradicação das desigualdades e sobretudo de boas práticas empresariais de ESG [20].
[1] Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/02-4-dia-mundial-de-conscientizacao-sobre-o-autismo/. Acesso em 04.04.2023.
[2] Disponível em https://www.paho.org/pt/topicos/transtorno-do-espectro-autista. Acesso em 04.04.2023.
[3] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/saude/especialista-aponta-sinais-que-podem-indicar-transtorno-do-espectro-autista-em-criancas/. Acesso em 04.04.2023.
[4] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/saude/entenda-como-o-diagnostico-do-espectro-do-autismo-se-tornou-mais-facil-e-frequente/#:~:text=O%20Dia%20Mundial%20de%20Conscientiza%C3%A7%C3%A3o,especializado%20e%20da%20inclus%C3%A3o%20social. Acesso em 04.04.2023.
[5] Disponível em https://g1.globo.com/educacao/noticia/2023/04/02/1-a-cada-36-criancas-tem-autismo-diz-cdc-entenda-por-que-numero-de-casos-aumentou-tanto-nas-ultimas-decadas.ghtml. Acesso em 04.04.2023
[6]Disponível em https://news.un.org/pt/story/2023/04/1812107. Acesso em 04.04.2023.
[7] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.
[8] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm. Acesso em 04.04.2023.
[9] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm . Acesso em 04.04.2023.
[10] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
. Acesso em 04.04.2023.
[11] Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4736 . Acesso em 04.04.2023.
[12] Disponível em https://www.cnj.jus.br/autismo-reconhecimento-conscientizacao-e-respeito-as-leis-ainda-sao-desafios/. Acesso em 04.04.2023.
[13] Disponível em https://www.trt13.jus.br/informe-se/noticias/inclusao-no-mercado-de-trabalho-pessoas-com-deficiencia-ocupam-pouco-mais-da-metade-das-vagas-no-setor-privado. Acesso em 04.04.2023.
[14] PRINCÍPIO DA IGUALDADE – PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA. Cadernos da Escola Judicial do TRT da 4ª Região – nº 08-2014. Página 53.
[15] Disponível em https://www.tst.jus.br/web/guest/-/conscientiza%C3%A7%C3%A3o-sobre-autismo-deve-se-estender-%C3%A0-inclus%C3%A3o-profissional-de-autistas-e-familiares. Acesso em 04.04.2023.
[16]Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=11138&digitoTst=49&anoTst=2020&orgaoTst=5&tribunalTst=03&varaTst=0035&submit=Consultar. Acesso em 04.04.2023.
[17] Disponível em https://portal.stf.jus.br/hotsites/agenda-2030/. Acesso em 04.04.2023.
[18] Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/10. Acesso em 04.04.2023.
[19] Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/16. Acesso em 04.04.2023.
[20] Para melhor conhecimento e aprofundamento da temática, indicamos a leitura da obra ESG: A Referência da Responsabilidade Social Empresarial (Editora Mizuno), da qual o professor Ricardo Calcini é um dos organizadores. Disponível em: https://www.editoramizuno.com.br/livro-sobre-esg-e-responsabilidade-social-empresarial.html. Acesso em 4.4.2023.
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