Limite Penal

Controle judicial da pseudociência: lições da experiência norte-americana

Autores

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • Juliana Melo Dias

    é mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

30 de setembro de 2022, 14h06

O que motiva a publicação do texto de hoje é a referência feita ao precedente Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals em decisão recente do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz (HC nº 740.431/DF 2022/0133629-9). Trata-se de um precedente de 1993 da Suprema Corte dos Estados Unidos, estabelecido a partir de um caso de responsabilidade civil, que oferece critérios para evitar o ingresso de junk science nos tribunais. No que se segue, contudo, vamos além de Daubert: oferecemos uma breve revisão da jurisprudência norte-americana sobre a matéria. Nos EUA, os precedentes judiciais que versam sobre o controle da fiabilidade da prova científica não se iniciaram com Daubert, e efetivamente foram além.

Spacca
O primeiro precedente norte-americano sobre a admissibilidade de experts nos tribunais é de 1923. Trata-se do caso Frye v. United States, uma decisão da Corte de Apelações do Distrito de Columbia em um caso penal. O réu, chamado Frye, havia sido acusado de assassinato. No primeiro momento, confessou o crime, mas logo em seguida voltou atrás e tentou provar sua inocência submetendo-se a um teste de detecção de mentiras — uma espécie de precursor do polígrafo, que media a pressão sistólica do sangue[2]. A intenção da defesa era fazer com que o cientista responsável pela realização do teste depusesse diante dos jurados, explicando como a técnica funcionava. O juiz não admitiu o testemunho[3]. A defesa recorreu à Corte de Apelações do Distrito de Columbia, que manteve a decisão. Na justificativa, a corte sustentou que técnicas científicas novas só poderiam ser admitidas se gozassem da "aceitação geral na comunidade científica relevante". Com o passar dos anos (e efetivamente até hoje), o critério da "aceitação geral" passou a ser considerado o Teste Frye e foi adotado por diversas cortes federais e estaduais dos EUA.

Muitas críticas foram feitas ao teste Frye nas últimas décadas. A primeira delas é a de que técnicas novas dificilmente terão aceitação ampla entre os cientistas. O teste Frye, portanto, era demasiado conservador. Mas há dificuldades que apontam também para o sentido contrário. O teste Frye pode ser demasiado liberal, o que talvez apresente maiores preocupações. Se a definição do âmbito da comunidade científica relevante for estreita demais, isso pode comprometer a fiabilidade epistêmica das teorias científicas, métodos e técnicas que ingressam nos tribunais. Vejamos alguns exemplos. Se desejamos saber se a astrologia é confiável, devemos consultar os astrólogos? Ou será que deveríamos ampliar a consulta para a comunidade dos astrofísicos?

Em uma decisão inovadora de 2020, a Suprema Corte do Estado de Nova York ampliou o significado de comunidade científica relevante. O caso tratava da confiabilidade dos exames periciais de confronto microbalístico. A juíza do caso, April Newbauer, entendeu que deveria ouvir não apenas os especialistas da própria comunidade de cientistas forenses que atuam na área de microbalística, mas também especialistas em metodologia científica, psicologia e estatística. "Cada uma dessas comunidades sobrepostas desempenha um papel importante na determinação do que é ciência aceita no campo da identificação de armas de fogo e marcas de ferramentas". (Essa decisão veio a reboque de outra importante evolução jurisprudencial que ocorreu no ano anterior, e que vamos comentar mais adiante).

Apesar da importância do tema e da popularidade crescente do teste Frye, este foi superado em 1993 pelo teste Daubert, pelo menos nas cortes federais dos EUA e em algumas jurisdições estaduais — não é o caso de Nova York, como vimos no exemplo acima. O caso Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc. tinha como objeto o caráter teratogênico do medicamente Bendectin, produzido pela empresa ré. As provas científicas apresentadas pelos autores foram consideradas frágeis, pois consistiam em uma revisão de estudos epidemiológicos que não havia sido publicada em periódico revisado por pares. A prova foi rejeitada com base no teste Frye tanto em primeira quanto em segunda instância. O caso chegou à Suprema Corte, que foi chamada a se pronunciar sobre uma questão de direito, ou seja, se o precedente do teste Frye havia sido superado ou não à luz das Regras Federais da Prova (Federal Rules of Evidence), um novo estatuto em matéria de direito probatório que havia sido aprovado em 1975.

Na decisão, a Suprema Corte afirmou que os juízes devem cumprir a função de porteiros (gatekeepers), determinando quais provas científicas devem ser admitidas no processo e quais devem ser rejeitadas. Argumentou que o clássico critério da relevância probatória não deve ser o único a orientar o juízo de admissibilidade, pois a fiabilidade (reliability) também importa. Para a Suprema Corte, por mais relevante que uma prova científica possa ser, se ela não alcançar um grau mínimo de fiabilidade epistêmica, não deve ser admitida. Um elemento de prova é relevante para determinada hipótese probatória se a sua inclusão contribuir para aumentar ou diminuir a sua integração explanatória. Contudo, a determinação da relevância dependerá de conhecimentos fiáveis sobre como as coisas são no mundo[4]. Uma prova só será relevante se estiver baseada em evidências.

Tratando do requisito da fiabilidade, a Suprema Corte então estabeleceu alguns fatores ou indicadores "flexíveis" que podem ajudar o juiz a exercer a sua função de porteiro em relação às provas científicas: 1) se a teoria ou técnica foi testada; 2) se a teoria ou técnica foi submetida à revisão por pares e publicação; 3) a margem de erro conhecida ou potencial dessa técnica científica; e 4) se a teoria ou técnica encontra aceitação geral na comunidade científica relevante[5]. Este último indicador é nada menos do que o teste Frye. A diferença é que ele deixou de ser o único critério de admissibilidade e passou a integrar uma lista.

A Suprema Corte não aplicou ela mesma os critérios de admissibilidade que estabeleceu. Em vez disso, devolveu o caso à corte de segunda instância para que esta proferisse nova decisão. Em seu voto, o juiz Kozinski sugeriu o que alguns consideram o quinto critério Daubert: as pesquisas apresentadas pelas partes devem ser anteriores ao litígio e independentes dele. Esse critério visa a evitar que as partes produzam provas científicas especificamente para o caso em disputa. As ciências forenses, contudo, estavam excluídas dessa exigência. Kozinski não explica os motivos dessa exclusão, mas reconhece que as ciências forenses foram desenvolvidas visando à aplicação em processos judiciais.

Por duas outras vezes, na mesma década, a Suprema Corte retornou ao tema. Os casos General Electric Co. v. Joiner, de 1997, e Kumho Tire Co. v. Carmichael, de 1999, complementaram Daubert de tal forma que foram considerados seus sucessores. Hoje, fala-se numa "trilogia Daubert". Em Joiner, o autor atribuiu seu câncer de pulmão a uma substância nociva produzida por uma das empresas rés, alegando que tivera contato com ela durante seu trabalho. Os experts contratados por ele apresentaram diversos estudos para demonstrar a relação causal entre a substância e o câncer. Contudo, as rés apontaram problemas nesses estudos e argumentaram que eles não sustentavam a alegação do autor. Instaurou-se uma discussão sobre se os juízes poderiam avaliar as conclusões dos experts ou se deveriam se ater à fiabilidade da metodologia utilizada, deixando para os jurados o juízo de correção das conclusões. A Suprema Corte decidiu que as conclusões e a metodologia não são tão diferentes entre si. Portanto, o juiz pode avaliar ambas, não aceitando as conclusões apenas porque um expert disse tê-las extraído dos dados disponíveis.

Em Kumho, os autores alegaram ter sofrido um grave acidente de automóvel após o pneu da minivan que conduziam explodir. O expert contratado por eles realizou uma inspeção tátil e visual do pneu, concluindo que este explodira por conta de um defeito em sua manufatura ou desenho, e não devido ao mau uso. As empresas rés contestaram a metodologia empregada pelo expert, considerando-a pouco fiável. Surgiu a seguinte dúvida: os critérios Daubert poderiam ser utilizados no juízo de admissibilidade de uma técnica não propriamente científica? A Suprema Corte entendeu que sim, os critérios Daubert podem ser utilizados para avaliar não apenas conhecimentos científicos, mas também conhecimentos técnicos ou de outra forma especializados.

Em outubro de 2019, foi proferida uma importante decisão pela Suprema Corte do Distrito de Columbia, no caso United States v. Marquette Tibbs, que promoveu uma importante evolução na interpretação do teste Daubert. Neste caso, o juiz Todd E. Edelman realizou uma série de audiências para ouvir diversos especialistas e analisou muitos estudos publicados sobre o assunto. A discussão girava em torno da admissibilidade do testemunho de um expert, oferecido pela acusação, que identificava a arma que havia sido supostamente descartada pelo réu como a fonte ou a origem dos cartuchos encontrados na cena do crime. Neste caso, o juiz Edelman afirmou que “a aplicação dos fatores Daubert demanda restrições substanciais nos testemunhos de experts nessa área”. Segundo o juiz Edelman, não existe taxa de erro estabelecida para as análises de balística ou um padrão definido para a identificação e, além disso, falta a aceitação de uma comunidade de cientistas mais ampla do que a dos dedicados à microbalística.      

Para além dos problemas relacionados à adequação dos critérios e à capacidade de os julgadores compreendê-los e aplicá-los nos casos concretos, há uma preocupação adicional. Os critérios estipulados na trilogia Daubert não têm afetado os casos criminais e, principalmente, as provas periciais oferecidas pela promotoria[6]. Os casos que compõem a trilogia são todos de natureza civil e foram decididos no contexto de uma crise da litigação em massa de casos de responsabilidade civil nos EUA. Mas a mesma preocupação com a exclusão de provas de baixa ou nula fiabilidade não parece ter influenciado os processos criminais. Existe, segundo Gary Edmond e Kent Roach, uma espécie de “confiança institucional” na prova pericial oferecida pela promotoria; e isso representa uma verdadeira inversão de valores. Os standards de admissibilidade deveriam ser mais altos justamente quando é o Estado quem oferece provas incriminadoras, pois os danos que podem resultar de uma condenação errônea são muito mais graves e irreversíveis[7].

A trilogia Daubert teve impressionante repercussão internacional, influenciando a jurisprudência de sistemas jurídicos das tradições do common law e romano-germânicas: Inglaterra e País de Gales, Canadá, México, Colômbia etc.[8]. No Brasil, contudo, a discussão sobre Daubert ainda é incipiente e confusa. O novo Código de Processo Civil, no artigo 473, III, passou a determinar que o laudo pericial contenha "a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou". Trata-se do critério da aceitação geral na comunidade científica relevante, estabelecido em Frye e reproduzido em Daubert[9]. Ainda no âmbito civil, o teste Daubert foi mencionado em um voto vista do ministro Luiz Fux em um caso sobre investigação de paternidade por exame de DNA e relativização da coisa julgada[10]. Esse julgado, contudo, não é muito animador. Em seu voto, Fux afirma que o teste Daubert exige a consideração de apenas três fatores (falsificabilidade, taxa de erro e aceitação na comunidade "especializada"), ignorando a exigência de publicação em periódico revisado por pares[11].

A recente decisão do STJ que citamos no início deste artigo faz referência ao precedente Daubert e aos quatro critérios estipulados, mas, curiosamente, decide aplicar critérios de admissibilidade diversos. Discutia-se, no caso, a admissibilidade da perícia de autópsia psicológica, reconhecida pelo relator ministro Schietti como um "meio de prova ainda não padronizado pela comunidade científica e erigido, inegavelmente, em aspectos subjetivos". Com efeito, o STJ decidiu que a manutenção da cadeia de custódia e a possibilidade de exercício do contraditório seriam suficientes para a admissão da prova, a despeito da sua não aceitação na comunidade científica relevante. Tal postura inclusivista da prova de baixa fiabilidade epistêmica é uma posição que encontra algum amparo na doutrina do direito probatório, como já assinalamos em outra oportunidade. Limitamo-nos a fazer apenas uma observação importante: para que tal postura se justifique, é importante que a prova que ingressa seja benéfica ao réu.


[1] Este texto é uma adaptação de uma seção do texto "Condenados pela ciência: a confiabilidade das provas periciais", in Desafiando 80 anos de processo penal autoritário, organizado por Antonio Santoro, Diogo Malan e Flávio Maduro (Editora D’Plácido).

[2] Esse teste era um precursor do polígrafo.

[3] Curiosidade: o cientista em questão era William Moulton Marston, um psicólogo e inventor que foi também o autor da história em quadrinhos da Mulher Maravilha.

[4] HAACK, Susan. Legal Probabilism: An Epistemological Dissent”. In: Evidence Matters: Science, Proof, and Truth in the Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 61.        

[5] V. DIAS, Juliana Melo. O uso de conhecimentos especializados em processos judiciais: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos. 2018. 195f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

[6]  NEUFELD, Peter. “The (Near) Irrelevance of Daubert to Criminal Justice and Some Suggestions for Reform”. American Journal of Public Health, v. 95, n. S1, pp. 107-113, 2005; EDMOND, Gary; ROACH, Kent. “A Contextual Approach to the Admissibility of the State’s Forensic Science and Medical Evidence”. University of Toronto Law Journal, num. 61, 2011, pp. 343-409.

[7] Essa distribuição não-igualitária dos riscos de erros judiciais entre as partes fundamenta também a adoção de um standard probatório mais elevado, o chamado além da dúvida razoável (beyond a reasonable doubt – BARD), para a adoção da hipótese condenatória. 

[8] Ver HAACK, Susan. Epistemology and the Law of Evidence. In: Evidence Matters…, p. 25.

[9] A inclusão foi proposta por Diogo de Almeida (ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A Prova Pericial no Processo Civil: o controle da ciência e a escolha do perito. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2010). Para uma discussão no âmbito penal, v. MIRZA, Flávio. Prova pericial: em busca de um novo paradigma. 2007. 177 f. Tese (Doutorado em Direito) – Instituto de Direito, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2007.

[10] STF. Recurso Especial n. 363889/DF, Voto Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, 02/02/2011. 

[11] O voto de Fux cita diretamente uma passagem de um livro de Leonardo Greco em que o autor menciona apenas três critérios e sugere que o último, o da aceitação geral, é de aplicação subsidiária.

Autores

  • é professora de Teoria do Direito na UFRJ, doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • é mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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