Território Aduaneiro

Amanhã vai ser outro dia: o Direito Aduaneiro Sancionador

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  • é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

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  • é professor de Direito Aduaneiro doutorando em Direito pela USP advogado e servidor na Secretaria de Comércio Exterior.

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27 de setembro de 2022, 8h00

O ano era 1969. O final da década marcada pelo golpe militar trazia à pátria um tom amargo às liberdades e garantias dos indivíduos. A rigidez institucional era retratada pelo compositor Chico Buarque por metáforas, como no verso "hoje você é quem manda/ falou, tá falado/ não tem discussão" [1]. Nesse período, o poder não era mais emanado do povo, havendo supressão de garantias constitucionais como a proibição de revisão judicial [2] e a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal Vítor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

De certa forma, a seara aduaneira também refletiu esse período em sua legislação, quando Humberto Castelo Branco editou, em novembro de 1966, o Decreto-Lei nº 37/1966 [3]. De um lado, o decreto-lei buscava retomar o sucesso desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek por meio de desonerações do imposto de importação [4]; de outro, inaugurava um duro capítulo para as infrações aduaneiras.

Se é correto afirmar que a forma jurídica entranha um conteúdo, a escolha do instrumento contramajoritário do decreto-lei é reveladora da força centrípeta do Poder Executivo refreado pelos contrapesos da Constituição de 1988 que, como recordaria Ruy Barbosa Nogueira, "(…) eliminando o decreto-lei, substituiu-o pelas chamadas medidas provisórias" [5], vera exceção derrogatória da divisão dos poderes [6]. A lógica de Estado altamente centralizante posterior ao golpe de 1964 foi instrumento de unificação também do direito tributário, pouco menos de um mês antes da lei aduaneira, sobrepondo o nascimento da lei, a fórceps, aos interesses políticos de mais de 2.000 aparelhos fiscais [7].

Em recente esforço de sistematização do ecossistema sancionatório nacional realizado por Rosaldo Trevisan, foram identificadas 33 hipóteses de penas de perdimento de mercadoria, sete do veículo transportador, uma de moeda, 15 multas por falta de pagamento de tributos ou direitos, 78 multas por descumprimento de obrigações aduaneiras, 12 previsões de advertência, e 29 medidas restritivas de direitos [8], aparato punitivo que projeta a sombra do Estado sobre os operadores do comércio internacional sob o viés austero do cautério e do castigo.

A cultura punitiva no âmbito aduaneiro se contrapõe à busca por políticas de autocorreção, estímulo ao cumprimento voluntário de obrigações, reconhecimento do erro escusável, do arrependimento, e do escalonamento progressivo e individualizado na dosimetria das penas. No entanto, não cabe se atribuir a exaltação da postura do flagelo unicamente ao direito positivo ou ao seu gérmen autoritário (saliente-se que 71 das 175 penalidades referidas acima constava originalmente no Decreto-Lei 37/1966). A lei do passado é aplicada (realizada) no presente, pelos juízes de hoje.

Assim, a menos que se abdique da capacidade de decidir, ou a menos que os vivos admitam ser inteiramente governados pelos mortos, para usar a famosa frase de Comte [9], depurando-se da atividade de dizer o direito qualquer inclinação pessoal, a responsabilidade é comungada pela comunidade dos intérpretes. Não nos permitimos conceber a existência de um "(…) juiz maquínico que recebe a lei posta como comando suficientemente apto para legitimar qualquer ação ou regime de força, por mais distante que os efeitos estejam com relação às suas crenças" [10].

Um exemplo disso é a equivocada leitura que parte da doutrina e da jurisprudência fizeram do § 2º do artigo 94 do Decreto-Lei nº 37/66, reproduzida nos regulamentos de 1985 [11], 2002 [12] e 2009 [13], decretando-se a responsabilização "objetiva" de qualquer pessoa física ou jurídica que concorra para uma violação da legislação aduaneira, por ação ou omissão. O dispositivo, ao cominar a pena "independente da intenção" do agente ou responsável, pouco importando a efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato, tornou prescindível a comprovação do dolo (salvo disposição expressa em contrário, ou seja, aqueles casos em que a demonstração da intenção dolosa é textualmente exigida), e jamais da culpa, como demonstramos em outras oportunidades [14].

Na esfera penal, rejeita-se esse tipo de responsabilização, pois caracterizado em razão da produção de um resultado, passando-se ao largo do aspecto subjetivo da conduta. A inflição da pena decorre da mera produção de um resultado [15] e, ao se aproximar do direito penal do inimigo, considera o importador ou exportador como fonte de perigo permanente [16], o que é incompatível com a constitucionalização do Direito Administrativo [17], com a remissão explícita às garantias de culpabilidade da CF/88 [18], com a retroatividade benigna [19], ou a individualização da pena [20] para o campo das sanções administrativas.

Não obstante tais garantias serem comumente associadas ao Direito Penal, é inegável a sua influência sobre o Direito Administrativo Sancionador [21], sendo este compreendido como ordenamento punitivo que pode substituir (despenalização) ou complementar o sistema punitivo estatal de ilicitudes, havendo igualmente a análise de integração (convivência) desses dois regimes sancionatórios, visando, racionalmente, harmonizá-los na atuação punitiva estatal [22], sobretudo a se ter em vista que "(…) a Aduana (…) deve observar princípios informadores do Direito Administrativo" [23].

Na aplicação dessa vertente, tomamos emprestada a expressão do Direito Administrativo Sancionador às "sanções aduaneiras", pois estas, enquanto sanções administrativas de um ramo didaticamente autônomo [24] do Direito, podem ser entendidas como integrantes do espectro do Direito Aduaneiro Sancionador. Tal campo tem por escopo tutelar o controle do comércio exterior [25] propriamente dito, objetivo que, em tese, escapa do Direito Penal, porquanto não há a ideia de ofensividade a um bem jurídico tutelado na esfera penal. No entanto, apesar de cada conjunto sancionador possuir uma finalidade própria, muitas vezes a penalização por infração a este controle invade o espaço inerente ao próprio Direito Penal, havendo efetiva existência de bens jurídicos coletivos cuja tutela transita em ambos [26] os subsistemas jurídicos [27].

Esse é o caso das operações transfronteiriças, cujos interesses tutelados pelo artigo 237 da CF/88 são justamente o controle do comércio exterior que, no que tange à fiscalização pela Receita Federal do Brasil, pode ser dividido em controle tributário e controle aduaneiro. O descumprimento do primeiro, caracterizado pela falta dolosa de pagamento, no todo ou em parte, de direito ou imposto devido, é criminalizado como descaminho [28]; o do segundo, caracterizado pelo ato importar ou exportar mercadoria proibida, irregular, ou clandestina, é criminalizado como contrabando [29].

A caracterização desse espaço de convivência entre o Direito Penal e o Aduaneiro não é tarefa fácil. Por isso, o ponto de partida é a necessidade de contenção de arbitrariedades, inclusive na configuração do Direito Penal e do Direito Aduaneiro Sancionador. Não há livre escolha legislativa para se legitimar a substituição da intervenção penal pelo regime jurídico-administrativo sancionador ("penalização do direito administrativo"). De igual modo, não é tolerável que determinados ilícitos sejam conduzidos para o Direito Penal ("administrativização do Direito Penal"), para indicar o fenômeno expansivo do jus puniendi para hipóteses em que o Direito Aduaneiro Sancionador pode cumprir os objetivos constitucionais [30].

Numa análise mais aprofundada, percebe-se também que o Direito Aduaneiro Sancionador não tem relevância menor que o Direito Penal. Isso porque a CF/88 assegura direitos e garantias fundamentais nos dois campos [31]. Ademais, as penalidades integrantes do Direito Aduaneiro Sancionador podem assumir grau elevadíssimo de restrição da esfera jurídica dos responsáveis [32]. Os interesses públicos são igualmente relevantes em confronto com bens jurídicos penalmente protegidos. Também não há distinção entre ilícitos no Direito Aduaneiro Sancionador e Direito Penal.

O abandono do Direito Aduaneiro do Inimigo é a promessa de que, por cada lágrima rolada, amanhã há de ser outro dia. Os últimos cinco anos andaram reinventando a Lei Aduaneira de 1966, tendo o Brasil aderido a acordos e convenções internacionais que explicitaram a não mais poder a culpabilidade [33], o duplo grau recursal administrativo independente [34], ou, ainda, a individualização da pena e o direito de arrependimento [35], pois quem inventa o pecado não pode se esquecer de inventar o perdão. Esse arcabouço normativo externo oxigena, como água nova brotando, o Direito Aduaneiro Sancionador.

 


[1] BUARQUE, Chico. Apesar de você. Universal Music Ltda, 1978. Disponível neste link. Acesso em 12.09.22. A crítica velada à ditadura feita pelo compositor foi proibida até 1978, podendo neste intervalo ser tocada apenas em forma instrumental ou, nos shows, cantadas apenas pela plateia. (vide MEMÓRIAS DA DITADURA. Disponível neste link. Acesso em: 12.09.22)

[2] Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, art. 5º, § 2º.

[3] Uma década depois, o Decreto-Lei nº 1.455/1976 instituía a “pena capital” aduaneira, isto é, o perdimento de mercadorias, a ser decidido em instância única pelo então Ministro da Fazenda. Vide TREVISAN, Rosaldo. Alice no país do "dano ao erário" e o Decreto-Lei 1.455/1976, Coluna Território Aduaneiro de 16.08.22. Disponível neste link.

[4] Exposição de Motivos nº 867, publicada em 21.11.1966.

[5] NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1999.

[6] Expressão utilizada pelo Ministro Celso de Mello, Medida Cautelar na ADIN nº 293/DF, 16.04.1993.

[7] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 11ª edição, 2022, Capítulo II, item 4.6.1: “(…) parece óbvio o interesse do regime instaurado em 1964, de caráter nitidamente centralizador, em ver promulgado o código em tempo rápido”.

[8] TREVISAN, Rosaldo. "Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização". In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 571-630.

[9] COMTE, Auguste. Catecismo Positivista. Madrid: Editora Nacional. Colección Clásicos para una Biblioteca Contemporánea, nº 11.

[10] BRANCO, Leonardo. Argumentação tributária de lógica substancial. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Direito da USP, 2016, p. 131, disponível neste link.

[11] Decreto nº 91.030, de 5 de março de 1985, art. 500.

[12] Decreto nº 4.543, de 26 de dezembro 2002, art. 603.

[13] Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009, art. 674.

[14] TAKANO, Caio Augusto; BRANCO, Leonardo. Responsabilidade por infrações em matéria tributária: reconsiderações acerca do art. 136 do CTN. Revista Direito Tributário Atual, v. 29. São Paulo: Dialética e IBDT, 2013, p.114-13, disponível neste link.

[15] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, parte geral. 2ª Ed. São Paulo: RT, 1999, p. 522.

[16] JAKOBS, Günther; e MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del enemigo. Colombia: Departamento

de Publicaciones de la Universidad Externado de Colombia, 2005.

[17] As normas jurídicas que regem a atividade administrativa vêm aumentando em número, sendo incorporadas em princípios e regras constitucionais fundamentais do regime jurídico-administrativo. (PEREZ, Adolfo Carretero; SANCHEZ, Adolfo Carretero. Derecho Administrativo Sancionador. 2. ed. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1995. p. 76).

[18] CF/88, art. 1º, inc. III: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.

[19] CF/88, art. 5º, XL: A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

[20] CF/88, art. 5º, inc. XLV: nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.

[21] Eduardo García Enterría foi autor que se destacou pela demonstração da necessidade de aplicação e matização dos princípios jurídico-penais no direito administrativo sancionador. (ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNANDÉZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Revisor técnico Carlos Ari Sundfeld. São Paulo: RT, 2014. v. II, p. 187-228).

[22] OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades, Int. Público – IP, Belo Horizonte, ano 22, n. 120, p. 83-126, mar./abr. 2020, p. 89.

[23] FLORIANO, Daniela e BATISTA JUNIOR, Onofre Alves. “Reflexões sobre autonomia do Direito Aduaneiro e seus princípios informadores”. In: BATISTA JUNIOR, Onofre Alves e SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Aduaneiro e Direito Tributário Aduaneiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022, pp. 17-58.

[24] ANDRADE, Thális. Curso de Direito Aduaneiro: Jurisdição e Tributos em Espécie, Dialética: Belo Horizonte, 2021, p. 25-27.

[25] CF/88, art. 237: “A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda”.

[26] A identidade de bens jurídicos foi julgada pelo STF em agosto de 2022 no ARE nº 843.989, em que se fixou a tese de que de exigiu a necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa por força da Lei nº 14.230/2021.

[27] BECHARA, Ana Elisa. Bem Jurídico-Penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 246.

[28] Art. 334 do Código Penal.

[29] Art. 334-A do Código Penal.

[30] OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades, Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 22, n. 120, p. 83-126, mar./abr. 2020, p. 106.

[31] Vide por exemplo os artigos 1º, inc. III (dignidade humana), art. 5º, LIV (devido processo legal), LV (contraditório e ampla defesa), LXXVIII (razoável duração do processo), todos da CF/88.

[32] Vide por exemplo as alíneas “b”, “c” e “e” do inciso XLVI do artigo 5º da CF/88, que prescreve que a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, a perda de bens, multa e suspensão ou interdição de direitos. Essas penalidades encontram paralelo nas infrações ao controle do comércio exterior descritas no artigo 675 do RA, isto é, a pena de perdimento de bens, veículos e moeda, as multas aduaneiras, e, as sanções administrativas.

[33] AFC negociado no âmbito da OMC, Artigo 6º, item 3.3. (Decreto nº 9.326, de 03 de abril de 2018).

[34] Inovação posta pela Convenção de Quioto Revisada, Norma 10.5 (Decreto nº 10.276/ 2020).

[35] Dispositivos constantes no Protocolo ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica entre Brasil e os EUA (ATEC) Artigo 15, itens 2 e 7 (Decreto nº 11.092/2022). Vide ainda o artigo “Acordo Brasil-EUA: uma nova fase para a facilitação do comércio”, publicado nesta coluna em 21/06/2022, disponível neste link.

Autores

  • é conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Carf, doutorando, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU-Münster) como bolsista DAAD, coordenador do curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio internacional" no IBDT e do curso "Tributação do Mercado Financeiro e de Capitais" no IBDT e na Apet, professor de Direito Tributário e Aduaneiro no IBDT, Ibet, FGV, FIA, Fipecafi, Inova e IDP (pós-graduação) e FK-Partners (exame CFP). Pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV-Direito/SP.

  • é advogado, doutorando em Direito pela USP, mestre em Direito pela UFSC e pelo World Trade Institute (Suíça), professor de Legislação Aduaneira e Comércio Internacional em cursos de pós-graduação, subsecretário de Facilitação de Comércio substituto no Ministério da Economia, autor de diversas publicações na área aduaneira, como a obra Curso de Direito Aduaneiro: Jurisdição e Tributos em Espécie (Dialética, 2021).

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