Território Aduaneiro

Contencioso aduaneiro: uma luz no fim do túnel?

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

20 de setembro de 2022, 8h00

Tecnicamente, ao cruzarmos a linha que demarca a metade da extensão de um túnel, já podemos dizer que dele estamos saindo, ainda que o caminho restante a percorrer possa ser mais íngreme ou tormentoso. Estamos terminando o mês de setembro, e já é possível enxergar um pouco de luz no fim do túnel de 2022.

Spacca
Em 18/1/2021, trouxemos nesta coluna algumas "previsões aduaneiras para 2022" [1]. Em nossa "bola de cristal", antecipamos que era preciso ser muito otimista para acreditar que o problema do contencioso comercial internacional (questão da resolução de controvérsias no âmbito da Organização Mundial do Comércio) seria resolvido no decorrer do ano, mas que o contencioso doméstico aduaneiro teria dois desafios a serem enfrentados em 2022: (a) a questão do duplo grau de jurisdição em face do início da aplicação da Convenção de Quioto Revisada, da Organização Mundial das Aduanas; e (b) a problemática da insegurança jurídica causada no contencioso aduaneiro pecuniário, regido pelo Decreto 70.235/1972, com o advento do artigo 28 da Lei 13.988/2020, que alterou o critério de desempate em determinados julgamentos administrativos, com discussão sobre constitucionalidade submetida ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Estávamos entrando no túnel de 2022, e prevenimos que ao longo do ano conversaríamos sobre várias das "previsões", verificando os desfechos do mundo real para os temas que foram aleatoriamente apresentados naquela esotérica coluna. Advertimos, no entanto, que, seja no Direito Aduaneiro, ou na vida, o importante é que muitas das "previsões" necessitam, às vezes, de um "empurrãozinho" para se concretizarem.

O "empurrãozinho", nesse caso, não teve preocupação especificamente aduaneira, sendo direcionado ao contencioso "tributário e administrativo", com a criação de comissão de juristas pelos presidentes do Senado Federal e do STF, como também destacamos em coluna anterior [2], na qual trouxemos ainda considerações sobre o documento intitulado "Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo" [3].

Nesse contexto, é importante mencionar que há alguns dias foi divulgado o resultado final dos trabalhos de dita comissão, em documento que contém nove anteprojetos, de: (a) "lei ordinária para a reforma da Lei 9.784/1999" — Lei de Processo Administrativo; (b) "lei complementar sobre normas gerais de prevenção de litígios, consensualidade e processo administrativo em matéria tributária"; (c) "lei ordinária do processo administrativo tributário da União"; (d) "lei ordinária sobre o processo de consulta tributária da União"; (e) "lei de Mediação Tributária da União"; (f) "lei ordinária de arbitragem em matéria tributária e aduaneira"; (g) "lei de Código de Defesa dos Contribuintes"; (h) "lei ordinária de execução fiscal"; e (i) "lei ordinária de custas da justiça federal". Além dos anteprojetos, que totalizaram 250 páginas, o relatório final acrescentou "recomendações de proposições colaborativas" sobre "Reforma do Decreto-Lei nº 401/1968", e juntou proposta da Aconcarf (contendo "Anteprojeto de Lei Orgânica do Conselheiro Representante do Contribuinte no Carf") e documentos técnicos (entre eles o "Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo"), perfazendo 1.238 páginas.

É desafiante comentar tal documento, amplo e complexo, em tão curto espaço, pelo que já advertimos que esse será apenas o "episódio que dá origem à série", um voo panorâmico inicial sobre como a temática aduaneira foi tratada pela comissão de juristas, e por que entendemos que o relatório se apresenta, ao menos nesta avaliação preliminar, como uma luz no fim do túnel.

Pelo que percebemos nos títulos dos anteprojetos, a palavra "aduaneiro" aparece apenas na "lei ordinária de arbitragem em matéria tributária e aduaneira". Mas tal percepção é ilusória, bastando examinar os textos propostos pela comissão pra notar, por exemplo, que o anteprojeto denominado "lei ordinária sobre o processo de consulta tributária da União" trata, conforme a própria ementa proposta, de "…processo de consulta quanto à aplicação da legislação tributária e aduaneira federal". Da mesma forma, o anteprojeto denominado "lei de Mediação Tributária da União" versa, de acordo com o artigo 2o, § 5o da proposta, sobre mediação "…em matéria tributária e aduaneira". Aparentemente, bastaria a adequação terminológica dos textos, pois o escopo de praticamente [4] todas as normas propostas é claramente dirigido tanto à temática tributária quanto à aduaneira, compreendendo-se, de forma geral, que não há entre elas relação de continência. Em relação aos vários projetos, portanto, deveria haver uniformidade no que se refere à abrangência dos termos "tributário" e "aduaneiro", o que certamente aumentaria a segurança jurídica e diminuiria a litigância, endossando as premissas básicas que nortearam os trabalhos da comissão [5].

Em uma das principais normas propostas — a que substituirá o Decreto 70.235/1972 ("processo administrativo tributário") — acabou sendo mantida uma amplitude titubeante de "tributário". Ainda no artigo 1º, que trata do âmbito de abrangência, estabelece-se que a lei rege o "processo administrativo tributário", que tem por objeto a "revisão administrativa referente a tributos administrados" pela RFB, versando o inciso I sobre "tributos… e penalidades correspondentes"; o inciso III, sobre direitos antidumping, compensatórios e salvaguardas comerciais [6]; e o IV, a respeito de "…créditos relativos à imposição de penalidades pecuniárias previstas na legislação tributária e aduaneira, exceto os submetidos a legislação processual específica".

O que se parece ter buscado com a redação do referido artigo 1º foi assentar: (a) o caráter revisional do processo administrativo tributário (hoje controverso, constituindo importante questão a ser cuidadosamente analisada em face, entre outros, do novel critério de dosimetria atribuído ao julgador administrativo [7], que pode tomar em conta fatores materiais eventualmente sequer sopesados no lançamento); e (b) que o "processo administrativo tributário" abrange não só a exigência de "tributos" (sejam eles aduaneiros ou não), mas também das multas decorrentes da falta de seu pagamento (inciso I), ou de outros descumprimentos da legislação tributária ou aduaneira que ensejem penalidades pecuniárias (inciso IV), aplicando-se ainda a direitos antidumping e compensatórios (parte do inciso III), visto que as salvaguardas ou são tributos (tema já tratado no inciso I) ou sequer são exigências pecuniárias (caso em que assumem a forma de restrição quantitativa).

Chama a atenção o texto do inciso IV do referido artigo 1º, que deixa em aberto a decisão de manter (ou não) no "processo administrativo tributário" multas que decorrem, de violação ao controle aduaneiro, sem relação direta com falta de pagamento de tributos (v.g., multas por falta de licença de importação, multas por cessão de nome para acobertamento de intervenientes, e multas substitutivas de perdimento).

Hoje, essas multas são aplicadas no rito do "processo administrativo tributário" (Decreto 70.235/1972), mas, a partir do texto do inciso IV do artigo 1º da proposta, passarão, em tese, a ser ressalvadas de tal rito, se forem submetidas a legislação processual específica.

Abrem-se as portas, assim, ao estabelecimento de um "contencioso aduaneiro pecuniário autônomo" para multas, à margem do que figura hoje no "processo administrativo tributário" (e de outros contenciosos aduaneiros, como o referente a perdimento e o relativo a sanções administrativas). Tal disciplina conviveria, em tese, com a "tributária", tratada no Decreto 70.235/1972, e com a "administrativa", que permanece disciplinada na Lei 9.784/1999 (e que admite que processos específicos possam reger-se por lei própria, com aplicação apenas subsidiária da "lei de processo administrativo" — artigo 69).

Torna-se possível, então, pelo texto da proposta, v.g., que se insira em eventual codificação aduaneira rito processual próprio para multas aduaneiras, à exceção daquelas que residam na área de intersecção com o Direito Tributário (multas decorrentes diretamente da falta de pagamento de tributos e direitos aduaneiros, tratadas nos incisos I e III do artigo 1º do projeto em comento), que permaneceriam sob a égide da norma que substituiria o Decreto 70.235/1972.

Estamos saindo do túnel de 2022, e o projeto apresentado, especificamente no que se refere aos temas principais (reforma do "processo administrativo" e do "processo administrativo tributário", e seus impactos na área aduaneira), é bem mais promissor que o estudo que comentamos em coluna de maio/2022, ainda que tenhamos aqui apenas apontado notas introdutórias de análise [8]. Já é possível visualizar uma luz no fim do túnel, mostrando o horizonte do que seria um "processo administrativo aduaneiro", quiçá alocado em uma codificação aduaneira.

O Decreto-Lei nº 37/1966, que tinha o desejo (quase) oculto [9] de ser nosso Código Aduaneiro, já ultrapassa meio século de vida (embora estejam vigentes na redação original apenas 42 de seus 172 artigos) [10], e passa a adaptar-se paulatinamente à nova roupagem do comércio internacional, sob a perspectiva de uma Aduana do Século XXI, com premissas expressas em tratados internacionais aduaneiros, entre os quais se destacam o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC/OMC), promulgado pelo Decreto nº 9.326/2018, e a Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA), promulgada pelo Decreto nº 10.276/2020, e que apresentam comandos sobre o contencioso, entre outros temas aduaneiros.

Reitere-se, no entanto, a necessidade do "empurrãozinho", seja para que se regule um processo administrativo especificamente aduaneiro, inclusive com a apresentação de solução ainda em 2022 para a questão posta na CQR/OMA sobre o duplo grau de jurisdição, ou para que tenhamos efetivamente um código aduaneiro brasileiro moderno, alinhado às melhores práticas internacionais.

Por certo que no conjunto de documentos entregue pela comissão de juristas visualizamos ampla gama de contribuições para a evolução do contencioso tributário/administrativo, temas que analisaremos futuramente. Hoje, basta-nos a percepção de que tal projeto, apesar de não construir norma processual específica aduaneira, nem um código aduaneiro, e nem um estudo de benchmarking [11] internacional, mostra uma luz no fim do túnel, sinalizando para essas oportunidades.

Nesse caso, resta o adequado trâmite legislativo, com o cuidado e com o caráter técnico que a complexidade do texto demanda, à luz da percepção de como outros países tratam, bem ou mal, da matéria.

Otimistas dirão que sempre há luz no fim do túnel quando se tem esperança; pessimistas, que a luz é de um trem em sentido contrário; e burocratas, que deve haver orçamento para manter a luz do fim do túnel acesa. E você, que estuda Direito Aduaneiro, já consegue avistar a luz? Se não consegue, continue caminhando.

 


[3] Documento esse que – como informamos na citada coluna de maio/2022 — sequer continha a palavra "aduana", seja em seu resumo executivo de 56 páginas, ou mesmo na versão completa/ampliada.

[4] Digo "praticamente" porque há alguns casos em que a solução será mais complexa. A nova redação dada ao art. 171 do Código Tributário Nacional – CTN, por exemplo, trata de "resolução de litígios aduaneiros" (que podem se referir a sanções administrativas, perdimento ou mesmo multas não regidas pelo Decreto no 70.235/1972). Nesse aspecto, mais apropriado seria estabelecer a previsão na legislação aduaneira (v.g., no Decreto-Lei nº 37/1966, norma aduaneira de ordem legal específica e contemporânea ao CTN). E todo o capítulo inserido no CTN sobre "processo administrativo tributário" aparentemente, volta-se apenas a temas aduaneiros na zona de intersecção com o Direito Tributário — tributos aduaneiros e multas decorrentes de inadimplemento tributário ou de "obrigação acessória tributária".

[5] Há ainda outras sugestões formais importantes, que demandam revisão pormenorizada do projeto, para evitar repetição de disposições em um mesmo texto normativo (como, v.g., a que ocorre na proposta de "processo administrativo tributário", entre o § 5º do art. 16 e o § 5o do art. 18), ou expressões com abrangência distinta (v.g., no art. 208-A inserido no CTN, sob o título "processo administrativo tributário" repete-se a denominação do título; entretanto, em um dos artigos seguintes, o art. 208-C, o comando é dirigido a "…processos de exigência de tributos e multas previstas na legislação tributária e de outros que lhe são correlatos", expressão que destoa da utilizada em outras normas propostas, mas que se repete no art. 20 do projeto de "Código de Defesa do Contribuinte"). O ideal a ser buscado é o da precisão, nos moldes do art. 11 da Lei Complementar nº 95/1998 (expressar a ideia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico). A utilização de terminologia distinta para tratar de mesmo conteúdo constitui potencial fonte de aumento da litigância.

[6] Cabe aqui recordar que as salvaguardas podem ser tributos (acréscimos ao imposto de importação) ou restrições quantitativas, como esclarece o Acordo sobre Salvaguarda, da Organização Mundial do Comércio, em seu Artigo 5, endossado pelo Regulamento Aduaneiro brasileiro (Decreto nº 6.759/2009, arts. 770 a 773) e pelo Decreto nº 1.488/1995 (art. 8º).

[7] Como se informa na Exposição de Motivos do Projeto, item 79, a "…grande inovação ficou a cargo do parágrafo único e suas alíneas a e b, em razão de ser autorizado à autoridade administrativa julgadora que, de maneira fundamentada, examine a penalidade aplicada, em qualquer fase do processo administrativo fiscal (sic), (a) podendo acolhê-la totalmente, confirmando a penalidade aplicada ou (b) rejeitá-la totalmente, fixando a penalidade". (entende-se aqui que o projeto usou a expressão "processo administrativo fiscal", na Exposição de Motivos, como sinônima de "processo administrativo tributário" — utilizada no texto da proposta de norma).

[8] É certo que temas sensíveis como o critério de desempate nos julgamentos, em função da paridade na composição, que afetam sobremaneira o índice de litigância, não foram expressamente enfrentados pela minuta (o que é até compreensível, tendo em vista que ao tempo da entrega do projeto o STF ainda não tem posicionamento definitivo sobre o tema), mas a redação dada ao art. 208-E do CTN parece apontar, salvo melhor juízo, para a possibilidade de discussão judicial de decisões administrativas definitivas favoráveis ao "sujeito passivo".

[9] A pretensão de que o Decreto-Lei no 37/1966 fosse um Código Aduaneiro está expressa nos itens 15 e 16 da Exposição de Motivos nº 867, publicada no Diário do Congresso Nacional de 21/11/1966, p. 13.403.

[10] Em relação aos demais artigos do Decreto-Lei no 37/1966, 39 tiveram nova redação dada por leis posteriores, como a Lei nº 10.833/2003 e a Lei no 12.350/2010; 24 foram expressamente revogados; e 67 já não produzem efeitos, e sequer foram disciplinados no Regulamento Aduaneiro (TREVISAN, Rosaldo. Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 622).

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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