Opinião

Extinção da punibilidade após incorporar empresa denunciada por crime ambiental

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15 de setembro de 2022, 20h34

Decisão inédita da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de que a incorporação de empresa acusada de crime ambiental conduz à extinção da punibilidade destoa de entendimento anterior da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) e denota retrocesso no combate à macro criminalidade econômica ambiental protagonizada por pessoas jurídicas [1].

A Lei nº 9.605/1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, é omissa quanto à extinção da punibilidade do agente e o seu artigo 79 prevê que a ela se aplicam, subsidiariamente, as disposições do Código Penal (CP) e do Código de Processo Penal (CPP). Em razão da sucessão empresarial do ente coletivo por incorporação acarretar baixa no CNPJ e fim da personalidade jurídica da sociedade incorporada, o STJ equiparou os efeitos jurídicos da reorganização societária à morte de um ser humano denunciado e decretou a punibilidade extinta, por analogia ao disposto no artigo 107, inciso I, do CP.

No caso concreto, a Agrícola Jandelle S/A respondia sozinha ação penal por ter alegadamente causado poluição mediante lançamento de resíduos sólidos em desacordo com as exigências legais e capazes de causar danos à saúde humana. O Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) concedeu a segurança para declarar extinta a punibilidade por perda superveniente de capacidade processual, com a incorporação da impetrante pela Seara Alimentos Ltda. Interposto recurso especial pela acusação estatal, o Ministério Público Federal (MPF) opinou pelo seu conhecimento e provimento. A 5ª Turma, por unanimidade, afetou o julgamento à 3ª Seção, que negou provimento ao recurso, com maioria apertada de cinco a quatro votos.

O acordão do STJ ostenta a autoridade de um precedente da Seção que unifica o posicionamento da Corte em matéria penal e tem a consequência não pretendida de criar grave vulnerabilidade para a responsabilidade penal de pessoas jurídicas (RPPJ) prevista na Lei de Crimes Ambientais. A questão jurídica, entretanto, foi sido decidida de forma contrastante com entendimento anterior de órgão fracionário do STF, conforme passo a expor.

Em 2013, a 1ª Turma do STF, em julgamento de grande repercussão e com maioria igualmente apertada, de três a dois votos, descartou a obrigatoriedade da dupla imputação no processo penal ambiental. Em outros termos: determinou-se que a imputação penal de pessoas jurídicas por crimes ambientais não está condicionada à simultânea identificação e persecução penal da pessoa física em tese responsável, no âmbito da empresa [2].

Do paradigmático voto condutor da ministra Rosa Weber podem ser extraídas três advertências interpretativas atinentes à RPPJ, (sem eficácia vinculante, mas de relevante autoridade persuasiva) sintetizadas nos seguintes trechos, que peço vênia para transcrever:

1) "A finalidade da imposição de uma pena aos entes coletivos não pode se guiar por critérios embasados na comparação ou na pretensão de correlação das pessoas jurídicas com as pessoas físicas, tornando-se indispensável, portanto, a elaboração de novos  exclusivos ou conglobantes  conceitos de ação e de culpabilidade válidos para as pessoas jurídicas" (fl. 48/49);
2) "Ainda que se conclua não tenha, o legislador ordinário, estabelecido por completo os critérios de imputação da pessoa jurídica por crimes ambientais, não há como simplesmente pretender transpor o paradigma de imputação das pessoas físicas aos entes coletivos. O mais adequado, com vista à efetividade da norma constitucional, será que doutrina e jurisprudência desenvolvam esses critérios (…), mas sem que tal desenvolvimento acarrete o esvaziamento do mandamento constitucional de apenação da pessoa jurídica". (fl. 55)
3) "Eventuais lacunas da legislação quanto à criminalização dos entes morais não autoriza o estabelecimento de pressupostos que contrariam e esvaziam a razão de ser da apenação das pessoas jurídicas". (fl. 56).

A Constituição Federal estabelece, de forma inequívoca, a precedência da preservação do meio ambiente em relação a quaisquer outras considerações de ordem econômica. Trata-se de limitação constitucional explícita à liberdade de empreender (artigo 170, VI, CF). O constituinte originário reconhece a prevalência desse direito fundamental indisponível de terceira geração e para cumprir a missão de resguardá-lo para as futuras gerações, lhe confere um regime jurídico especial, que exorbita o Direito comum.

Nesse sentido, o plenário do STF, ao apreciar o Tema 999 da repercussão geral, reafirmou, de forma categórica, a excepcionalidade da tutela jurídica ambiental, ao determinar a imprescritibilidade da pretensão de reparação civil de danos. Os princípios constitucionais de proteção, preservação e reparação do meio ambiente são inderrogáveis pelo tempo e prevalecem sobre o princípio da segurança jurídica, que beneficia o autor do dano diante da inércia do Poder Público.

A Carta de 1988 dedica um capítulo inteiro ao meio ambiente, onde suscita o emprego de todos os meios necessários à sua efetiva e integral proteção, inclusive a tutela penal, considerada ultima ratio. A RPPJ constitui mandado expresso de criminalização do constituinte originário, preocupado em conferir efetividade à tutela constitucional do bem jurídico ambiental e com a prevenção criminológica de atividades delituosas corporativas.

Ao materializar a vontade constitucional, o legislador ordinário apresentou, no artigo 3º da Lei de Crimes Ambientais, dois critérios explícitos para atribuição do injusto penal ao ente moral: 1) a prática de ato típico por representante legal, contratual, ou órgão colegiado, com pertinência à pessoa jurídica e 2) o interesse ou benefício do ente coletivo.

Em que pese a supratranscrita exortação aduzida no emblemático voto condutor da ilustre ministra Rosa Weber, a práxis judicial brasileira não se ocupou em dar lastro jurídico à opção política do legislador, nem desenvolveu uma teoria do delito cujo ponto de partida fosse a capacidade de agir da própria pessoa jurídica. Ateve-se à gramática da teoria clássica, na qual o conceito ontológico de ação, inadequado para entes abstratos, resulta em criticável responsabilização penal objetiva por fato alheio. Não se cogitou, tampouco, em eleger uma teoria de culpabilidade corporativa destinada aos entes morais, com categorias dogmáticas compatíveis com a natureza e especificidades das estruturas coletivas, tais como o déficit organizacional e a responsabilidade social.

A referida lacuna teórica causa perplexidades ao aplicador da lei, em razão da estrutura normativa da responsabilidade penal no direito positivo brasileiro não ter sido originalmente concebida para o ente coletivo. O seu ponto de referência é um ser humano autorresponsável que pratica a conduta vedada por uma norma penal cuja prática poderia evitar; esse indivíduo tem capacidade de compreender e se motivar de acordo com lei e no caso concreto, lhe é exigível atuar de outra forma.

Garantias penais e processuais penais atribuídas ao indivíduo, identificado na sua singularidade, e forjadas em longo e árduo processo de afirmação dos direitos humanos, não devem ser estendidas acriticamente a pessoas jurídica. O princípio da intranscendência da pena, por exemplo, faz sentido onde a imposição da sanção penal é legitimada por aferição de culpabilidade pessoal. O mesmo raciocínio se aplica à proibição constitucional da pena de morte, destinada exclusivamente a humanos e que não autoriza aplicação analógica para desqualificar a pena de liquidação forçada e perdimento patrimonial de empresas utilizadas como instrumento para a criminalidade ambiental, nos termos do que dispõe o artigo 24 da Lei de Crimes Ambientais.

Nessa linha de entendimento, comparar a incorporação de uma sociedade empresária à morte de um ser humano constitui flagrante incongruência. Ao contrário dos indivíduos (mortais, unos e indivisíveis), as sociedades empresárias geralmente nascem com pretensão de perpetuidade. O seu aparato econômico organizado para produzir ou comercializar bens e serviços pode, de forma reversível, ser transformado, acrescido, cindido ou absorvido por outra sociedade e continuar a operar na empresa sucessora, sem solução de continuidade, com outra nomenclatura.

Não se controverte que sociedades empresárias dispõem de ampla liberdade para reestruturação da forma que melhor lhes aprouver, de modo a se tornarem mais eficientes, rentáveis e competitivas.  Sob o prisma da função social da propriedade e da liberdade de empreender limitada pela tutela ambiental, todavia, tais mudanças estruturais não podem ser invocadas para afastar a incidência de normas de defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A prevalecer a tese ora criticada, empresas poluidoras terão carta branca para efetuar reestruturações societárias abusivas, como subterfúgio para eximir-se de responsabilização penal. A sugestão de que a incorporação pode ser desconsiderada se comprovada fraude ou má-fé da empresa poluidora em reestruturar-se para eximir-se da RPPJ é impraticável, considerando a notória dificuldade probatória do elemento subjetivo em contextos decisórios empresariais.  

Melhor sorte não assiste à alegação de que não há proteção deficiente ao bem jurídico ambiental, em razão da empresa sucessora continuar responsável, na esfera cível, pela reparação dos danos causados pela sociedade incorporada. Conforme dito acima, o constituinte originário reputou insuficiente a tutela oferecida por outras esferas de responsabilização, onde, frequentemente, o dano é precificado no orçamento empresarial com o singelo pagamento de uma multa. Fez-se a opção política, de clareza meridiana, de lançar mão da RPPJ, com o seu alto poder simbólico e de intimidação. O mandado de criminalização do constituinte originário deve ser fielmente concretizado pelos aplicadores da lei e não infirmado por escolhas políticas alternativas impostas pela via hermenêutica.

Afirmar que a baixa de um CNPJ equivale juridicamente à certidão de óbito de uma pessoa humana constitui analogia inadequada e com desdobramentos jurídicos preocupantes, tais como: 1) esvaziar a concretização do mandado constitucional expresso de estabelecimento de RPPJ em crimes ambientais; 2) afrontar a livre concorrência, ao conceder a empresas poluidoras incorporadas uma vantagem competitiva em relação as que investiram em conformidade ambiental; 3) produzir o efeito sistêmico de leniência na imputação de pessoas jurídicas, em outras esferas sancionadoras.

Em conclusão: a controvérsia acerca da transferência da RPPJ em sucessão empresarial constitui tema inédito, de grande importância e estatura constitucional. O tratamento jurídico conferido à matéria pelo STJ nos parece divergente de entendimento anterior do STF e limitador da potência do sistema judicial no enfrentamento de uma realidade criminológica impossível de ser desconsiderada, onde há censurável déficit de punição de grandes corporações responsáveis por danos ambientais causadores de graves prejuízos ao bem-estar e ao desenvolvimento social no Brasil.


[1] STJ, RESP 1.977.172, 3ª Seção, julgamento em 24.08.2022

[2] STF, RE 548.181, 1a Turma, DJe 30.10.2014.

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