Tribunal do Júri

Preparo da defesa para o plenário: a efetivação da plenitude de defesa

Autores

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Renata Tavares

    é defensora pública titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro ex-defensora pública interamericana (2021-2022) mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos da Universidade de Buenos Aires pós-graduação nas "100 Regras de Brasília e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos" da Faculdade de Direito da Universidade do Chile pós-graduação em "Derechos Humanos y Derecho Internacional Humanitario" pelo Washington College of Law da American University e pós-graduada em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

10 de setembro de 2022, 8h00

O procedimento do tribunal do júri, em geral, caracteriza-se por compreender um elevado número de circunstâncias fáticas que precisam ser confirmadas e refutadas, no intuito de realizar a decisão final através do efetivo contraditório com respeito aos princípios basilares constantes no inciso XXXVIII, do artigo 5º da Constituição da República.

Spacca
Torna-se ponto notório que a acusação conta com o apoio direto da atividade apuratória sobre os fatos, que envolve investigadores e técnicos para fazer a prova que irá embasar a imputação e, mais adiante, o debate probatório e argumentativo em busca da comprovação da responsabilidade criminal do acusado.

O tema a ser analisado segue na postura processual exercida pela defesa. Por um lado, limitada a contestar a acusação ou, diante de um viés diametralmente oposto, contar com o planejamento e preparo para realizar o efetivo contraditório através da formação de elementos de prova e/ou a produção de contraprovas.

Somado à necessidade do contraditório em seu aspecto funcional, tem-se ainda a questão do necessário "controle de qualidade" probatório realizado pela defesa em um espaço republicano, em especial, após a discussão desenvolvida pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos após o julgamento do Caso Ruano Torres.

Spacca
Trata-se do primeiro caso em que o Sistema Interamericano enfrentou o tema da responsabilidade internacional de um Estado por ato da defesa pública. A corte faz análise sobre a política, tipicamente dos países americanos de implementar as Defensorias Públicas como forma de cumprir o mandamento convencional descrito no artigo 8º, 2, e da CADH [1].

Neste ponto, a corte estabelece o ponto crítico sobre a nomeação de um defensor de oficio apenas com o objetivo de cumprir formalidades processuais, o que equivaleria a não reconhecer uma defesa técnica efetiva. Logo, mostra-se imprescindível a atuação diligente da defesa pública e privada objetivando a proteção das garantias fundamentais e processuais do acusado [2].

Consequentemente, reconhece a responsabilidade internacional pela atuação da defesa que:

Spacca
"la Corte considera que, para analizar si ha ocurrido una posible vulneración del derecho a la defensa por parte del Estado, tendrá que evaluar si la acción o omisión del defensor público constituyó una negligencia inexcusable o una falla manifiesta en el ejercicio de la defensa que tuvo o puede tener un efecto decisivo en contra de los intereses del imputado. En esta línea, la Corte procederá a realizar un análisis de la integralidad de los procedimientos, a menos que determinada acción o omisión sea de tal gravedad como para configurar por sí sola una violación a la garantía" [3].

No intuito de averiguar os casos de negligência inescusável ou de uma falha manifesta, aquele tribunal cita algumas hipóteses:

a) No desplegar una mínima actividad probatoria.

b) Inactividad argumentativa a favor de los intereses del imputado.

c) Carencia de conocimiento técnico jurídico del proceso penal.

d) Falta de interposición de recursos en detrimento de los derechos del imputado.

e) Indebida fundamentación de los recursos interpuestos.

f) Abandono de la defensa.

Para tanto, a defesa deve estar resguardada com garantias suficientes, diante de aparato propício para sua atuação eficiente e em correspondente isonomia com o poder persecutório.

Nesta linha, a defesa diligente e efetiva exige que o advogado ou defensor público, ao traçar sua estratégia de defesa [4], se depare com a necessidade de formar a produção probatória ao invés de apenas se resumir no embate à versão acusatória [5]. Muitas vezes, esta necessidade surge desde os primeiros momentos da investigação para o planejamento e organização da atuação defensiva em prol da formação de argumentos para a prova e não apenas argumentos pela prova, o que caracteriza o contraditório em seu aspecto formal.

Em outro giro, é importante destacar a questão constitucional referente ao método do contraditório que inclui, além da necessária paridade de armas, a viabilidade de atribuição para os acusados no processo penal o direito de colher elementos de prova. Esta referência já vem sendo discutida e implementada na prática [6], por intermédio da indicação da possibilidade das partes realizarem atividade investigativa vez que seria ínsita ao sistema dialético de processo [7].

Na oportunidade, deve ser observado que o poder de gestão da introdução de elementos probatórios interfere diretamente da cultura processual inquisitorial vez que a prova não mais deve restar nas mãos exclusiva do julgador, mas em um atuar probatório e argumentativo das partes, reforçando o processo penal acusatório, típicos de Estados Republicanos [8]. Por isso, além do planejamento estratégico, a investigação defensiva forma um apoio necessário ao direito à prova e a atividade do "direito a defender-se provando" [9].

No sistema continental o tema é novo e merecedor de maiores análises [10]. É dizer, ao contrário de países como a Itália e os Estados Unidos, o Brasil, embora boa parte do sistema de justiça se autoproclame acusatório, não tem uma legislação para regulamentar uma atividade proativa da prova pela defesa.

As técnicas investigativas sempre foram monopólio (inclusive acadêmico) dos órgãos de persecução penal. É justamente no atuar prático que há a inclinação da busca de uma defesa penal efetiva. Surge deste foco de análise a necessidade da defesa em realizar um aprimoramento técnico e estratégico na busca de produção de provas e informações que estruture sua efetiva atuação.

Por outro lado, o legislador constituinte originário foi enfático em reconhecer a importância da menção do exercício da plenitude de defesa como princípio basilar na instituição do Tribunal do Júri, para além da garantia constitucional da ampla defesa. O fez para garantir que diante de um Tribunal Popular, não haja qualquer mácula ao exercício amplo e efetivo da defesa do acusado.

Embora pareçam sinônimos, a distinção constitucional merece aplausos, na medida em que identifica um princípio-regra específico para o Tribunal do Júri. Como não há palavras inúteis nos preceitos constitucionais, não se podem reconhecer como sinonímias as expressões "ampla defesa" e "plenitude de defesa". Há reais diferenças na via interpretativa, seja no contexto semântico bem como de aplicabilidade normativa. A defesa plena "de ver completa, perfeita, absoluta, ou seja, deve ser oportunizada ao acusado a utilização de todas as formas legais de defesa possíveis, podendo causa, inclusive, um desequilíbrio em relação à acusação" [11].

Consequentemente, o(a) leitor(a) deve interpretar esse artigo não apenas com uma visão ao plenário do júri, mas para qualquer atuação defensiva nos processos criminais. No entanto, é no plenário do júri que se permite verificar, com mais especificidade, ferramentas analíticas para o preparo defensivo e a implementação daquilo que é imposto e garantido pela constituição: a plenitude de defesa.

Para uma atuação defensiva estratégica, torna-se extremamente importante, quiçá imprescindível, estar em plenário com uma teoria do caso [12] muito bem definida. Neste ponto, a teoria do caso organiza a combinação da abordagem jurídica, a análise fática e uma estrutura estratégica sobre como as provas e os argumentos devem ser produzidos em plenário.

O objetivo estratégico segue na organização da atuação defensiva para a identificação do que se mostra irrefutável ou mesmo a abordagem em teses alternativas ou antagônicas à imputação acusatória. Neste ponto, a busca de informações e elementos de prova para refutar/testar a imputação acusatória segue como principal atributo defensivo.

Mas, como fazer, sem contar com o aparato destinado aos órgãos de persecução penal?

Desta dificuldade, surgem alguns pontos de relevante reflexão:

1º) há necessidade de alterarmos nossa cultura inquisitória para entendermos que a atuação defensiva tem como finalidade a busca da coparticipação na formação do quadro probatório e, ao final, decisório;

2º) ampliarmos nossa visão sobre o método do contraditório que não se resume apenas na estrutura informação/reação;

3º) entendermos que o bom diálogo processual é aquele revestido de planejamento de ambas as partes e, em especial, pela defesa que possui a atribuição da refutação ("controle de qualidade") da imputação e da qualidade das informações probatórias;

4º) a melhor ambiência para essa reflexão pode ser dirigida ao plenário do júri, justamente porque os julgadores possuem, em regra, originalidade cognitiva e, por isso, se tornam, teoricamente, mais "atentos" [13] às informações probatórias e os argumentos essenciais levados pelas partes.

Os referidos pontos não exaurem a reflexão. Indicamos apenas como norte para avançarmos em atividades teóricas e práticas sobre a efetividade de uma defesa plena. Porém, o foco conclusivo desta pequena análise segue na linha do avanço preparatório da defesa técnica através de instrumentos e ferramentas que se harmonizam com um atuar defensivo condizente com a proteção de inocentes, bem como a característica do direito à prova e a efetividade do contraditório em seu viés substancial.

 


[1] OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Ruano Torres. §§156, 159.

[2] Idem. § 153.

[3] Idem. § 164

[4] A atuação no Júri não deve ser uma atuação de "iluminados", mas fruto da adoção de uma estratégia de defesa trabalhada. COSTA, Renata. LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA NO TRIBUNAL DO JURI:"“TEORIA DO CASO". Disponível em https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/25739/RENATA_TAVARES_DA_COSTA.pdf; Acesso em 8 set 2022.

 

[5] O que se propõe é a mudança de postura defensiva, que não obstante vigilante e atenta, mas, em regra, passiva à atuação da acusação e do juiz. Por isso, propõe-se a alteração de uma defesa de disposição — "difesa disposizione" —, para uma defesa de movimento "difesa di movimento". Expressões utilizadas por TRIGGIANI, Nicola. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. In Archivo della Nuova Procedura Penale. nº 1, gennaio/febbraio, 2011, p. 1. Endereça aqui a tentativa de um papel ativo na busca de melhores resultados defensivos e de contribuição efetiva na construção do quadro probatório e na formação da decisão penal.

[6] Diversos movimentos podem ser observados nesse foco. O Conselho Federal da OAB editou o Provimento 188/2018 que regulamenta o exercício da prerrogativa profissional do advogado de realização de diligências investigatórias para a instrução em procedimentos administrativos e judiciais. Em evento realizado no dia 30.08, na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio de Janeiro, foi constituída a Comissão de Investigação Defensiva pela OAB-RJ. No dia 22.09 deste ano, durante o Encontro Brasileiro da Advocacia Criminal (Ebac), será lançado a primeira edição do Código Deontológico de Boas Práticas da Investigação Defensiva estruturado pela Comissão Nacional de Investigação Defensiva e Inovação Tecnológicas da Abracrim; a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro está estruturando o primeiro Núcleo de Investigação Defensiva, conforme matéria veiculada no dia 24/8/22. https://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/20445-Defensoria-do-Rio-tera-novo-nucleo-de-Investigacao-defensiva

[7] Já tivemos a oportunidade de enfrentamento do tema. SAMPAIO, Denis. Reflexões sobre a investigação Defensiva: Possível renovação da influencia italiana pós "Código Rocco" sobre indagine difensive. In Advocacia Criminal. Coord. Diogo Malan e Flavio Mirza. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004. p. 97.

[8] Idem. p. 101.

[9] Ibdem, p. 102.

[10] Para uma abordagem mais profunda ver SILVA, Franklyn Roger Alves. Investigação criminal direta pela defesa. 3ª ed. São Paulo: JusPodivm, 2022; BULHÕES, Gabriel. Manual Prático de Investigação Defensiva: um novo paradigma na advocacia criminal brasileira. 2ª ed., Florianópolis: EMais, 2022

[11] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 138.

[12] Sobre o tema ver BARILLI, Raphael Jorge de Castilho. Teoria do Caso e sua aplicação ao processo penal brasileiro. Curitiba: CRV, 2019.

[13] O "efeito atenção" como imprescindível tema a partir das reflexões de SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. In Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). Trad. Luís Greco. Marcial Pons: Madri, 2013, pp. 205/221

Autores

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

  • é defensora pública titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, ex-defensora pública interamericana (2021-2022), mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos da Universidade de Buenos Aires, pós-graduação nas "100 Regras de Brasília e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos" da Faculdade de Direito da Universidade do Chile, pós-graduação em "Derechos Humanos y Derecho Internacional Humanitario" pelo Washington College of Law da American University e pós-graduada em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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