Prática Trabalhista

Teletrabalho e horas extras: qual regra deve ser aplicada?

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

8 de setembro de 2022, 8h00

No último dia 2 de setembro foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República a nova legislação do teletrabalho representativa da Lei nº 14.442/2022 [1]. Tal inovação legislativa, aliás, já se encontra em vigor por força da então Medida Provisória nº 1.108.

Dito isso, muitas dúvidas surgem no que diz respeito à aplicação do direito intertemporal, ou seja, o momento de cumprimento da norma, sobretudo de parte das empresas que continuam a adotar o teletrabalho.

Nesse sentido, ficam aqui os seguintes questionamentos: há necessidade de observância imediata da nova legislação? Devem ser realizados ajustes contratuais dos empregados admitidos antes da vigência da então MP e agora da nova lei ordinária? Como ficam os contratos de trabalho que se iniciaram antes e findaram na vigência da atual regra jurídica? E, por fim, as empresas devem ser compelidas a pagarem horas extras para aqueles que, doravante, estiverem no sistema de trabalho à distância?

De início, impende destacar que tal problemática já foi objeto de muita discussão quando da promulgação da Lei 13.467/2017, conhecida como a Lei da Reforma Trabalhista. Na ocasião, não se pode perder de vista que muitos direitos trabalhistas foram reduzidos e/ou suprimidos, justificando intensos debates nos processos judiciais pela aplicação imediata das novas diretrizes legislativas aos contratos de trabalho à época em curso.

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Bem por isso, para que se disponha de bases seguras para a solução dos conflitos envolvendo uma nova legislação, necessário se faz revisitar os mandamentos legais apropriados, em particular aqueles que digam respeito ao direito material e ao direito processual do trabalho.

Com efeito, de acordo com o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro [2], "a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada". Tal diretriz, inclusive, também está estampada no artigo 5º, XXXVI, da Constituição [3], como uma efetiva garantia fundamental.

De outro norte, o artigo 14 do Código de Processo Civil preceitua que "a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada".

Entrementes, com o advento da Lei 13.467/2017 e, diante das inúmeras dúvidas de toda a comunidade jurídica, o Colendo Tribunal Superior do Trabalho editou a Instrução Normativa nº 41 [4]. A referida instrução refletiu o posicionamento daquela corte superior no que dizia respeito acerca da aplicação das normas processuais contidas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que foram alteradas ou acrescentadas ao texto celetário.

É certo que a normativa buscou trazer ao jurisdicionado uma segurança jurídica, estabilidade nas relações processuais, redução de futuros desentendimentos, além de obstar problemas processuais. Frise-se, por oportuno, que o ato editado pelo C. TST abarcou somente as questões de direito processual, e não de direito intertemporal material.

Oportunos são aqui os ensinamentos de Henrique Correa [5]:

"A reforma trabalhista modificou substancialmente o Direito do Trabalho, o que trará diversos impactos paras as relações individuais e coletivas de trabalho. Um dos pontos mais polêmicos envolve a questão acerca do direito intertemporal, para se estabelecer as regras que deverão ser aplicadas para os contratos de trabalho extintos e em curso.

(…) O maior ponto de discussão refere-se, no entanto, as normas aplicáveis aos contratos ainda vigentes. A Reforma Trabalhista entrará em vigor e as alterações promovidas terão aplicação imediata para todos os trabalhadores contratados após a sua entrada em vigor. Portanto, a partir de 11/11/2017, todos os empregados contratados estarão sujeitos às novas regras da Lei nº 13.467/2017. Ocorre que é necessário estabelecer a situação dos empregados contratados antes da alteração da legislação nesse regime de trabalho. A nova lei será aplicada, também, a esses empregados, em razão da aplicação imediata das normas trabalhistas".

Logo, vale dizer que, inobstante a nova legislação deva ser aplicada imediatamente aos contratos de trabalho vigentes, devem ser respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Isto porque, sob o enfoque do direito intertemporal, e em consideração ao princípio da irretroatividade da lei, aplicam-se as normas Direito Material do Trabalho do tempo dos fatos, não se adotando a eventos anteriores.

Entrementes, nada obstante a proximidade dos cinco anos de vigência da Lei 13.467/2017, hoje a jurisprudência em torno da (in)aplicabilidade da Reforma Trabalhista aos contratos de trabalho à época em curso se encontra literalmente dividida no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho.

Segundo levantamento feito pelo advogado Fernando de Almeida Prado Sampaio [6], há decisões pela inaplicabilidade da reforma trabalhista exaradas pela 1ª, 2ª e a 6ª Turma do TST [7]. Em sentido oposto, ou seja, pela aplicabilidade das normas materiais da reforma trabalhista para contratos em curso, há precedentes de lavra da 4ª 5ª e 8ª Turmas do TST [8].

Até que a SBDI-1 do TST venha uniformizar tal divergência entre os órgãos turmários do Tribunal Superior do Trabalho, tem-se como exemplo jurisprudencial consolidado de aplicação do direito intertemporal o item III da Súmula nº 191 do TST [9], que aborda a base de cálculo do adicional de periculosidade do eletricitário originada pela Lei 12.740/2012.

Na ocasião, o adicional de periculosidade que, até então, refletia sobre a remuneração do eletricitário passou a incidir sobre o salário-base. Contudo, na época a alteração não impactou os contratos de trabalho firmados antes da promulgação da nova lei, em decorrência da condição mais benéfica ao trabalhador que foi incorporada ao seu contrato de trabalho.

De resto, é forçoso lembrar que a temática da eficácia da lei no tempo é de ordem constitucional, de sorte que, na omissão da lei, a regra geral é sua irretroatividade. Contudo, a grande problematização que surge atualmente é que, naquele tempo, as empresas defendiam veementemente a aplicação das novas diretrizes da Lei da Reforma Trabalhista, pois, em certa medida, reduziram e/ou suprimiram direitos dos trabalhadores.

E agora, por fim, a nova legislação do teletrabalho impõe, dentre outras obrigações às empresas, o pagamento de horas extras para os trabalhadores que estiverem executando suas atividades remotamente, por jornada. Trata-se de situação indubitavelmente mais benéfica ao empregado que, não se sabe hoje, se contará doravante com o apoio dos empresários, afinal, em se tratando de direito material do trabalho, a alteração legislativa (benéfica ou "in pejus") deve respeitar ou não "tempus regit actuam", protegendo, assim, as situações jurídicas firmadas antes da sua vigência?

 


[3] Art. 5º — Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…). XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

[5] Curso de Direito do Trabalho. 6ª revista atualizada ampliada. Editora JusPodivm, página 119.

[7] Ag-ED-ARR-26400-26.2009.5.02.0464, 1ª Turma, redator desembargador convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 25/8/2021; RR-11259-03.2019.5.03.0071, 2ª Turma, relator desembargador convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 8/4/2022; RR-759-44.2019.5.09.0091, 6ª Turma, relator ministro Augusto Cesar Leite de Carvalho, DEJT 1/7/2022.

[8] RR-10263-91.2021.5.03.0052, 4ª Turma, relator ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 10/6/2022; Ag-RRAg-10893-26.2018.5.15.0083, 5ª Turma, relator ministro Douglas Alencar Rodrigues, DEJT 1/7/2022; AIRR-10331-17.2021.5.03.0060, 8ª Turma, relator ministro Aloysio Correa da Veiga, DEJT 04/07/2022.

[9] Súmula nº 191. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. INCIDÊNCIA. BASE DE CÁLCULO (cancelada a parte final da antiga redação e inseridos os itens II e III) – Res. 214/2016, DEJT divulgado em 30.11.2016 e 01 e 02.12.2016 I – O adicional de periculosidade incide apenas sobre o salário básico e não sobre este acrescido de outros adicionais. II – O adicional de periculosidade do empregado eletricitário, contratado sob a égide da Lei nº 7.369/1985, deve ser calculado sobre a totalidade das parcelas de natureza salarial. Não é válida norma coletiva mediante a qual se determina a incidência do referido adicional sobre o salário básico. III – A alteração da base de cálculo do adicional de periculosidade do eletricitário promovida pela Lei nº 12.740/2012 atinge somente contrato de trabalho firmado a partir de sua vigência, de modo que, nesse caso, o cálculo será realizado exclusivamente sobre o salário básico, conforme determina o § 1º do art. 193 da CLT.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto "Prática Trabalhista" (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo "O Trabalho Além do Direito do Trabalho", da USP.

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