Deixa para o juiz

Tribunal é livre para afastar dolo eventual e despronunciar réu, diz STJ

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7 de setembro de 2022, 7h31

Mesmo na hipótese em que o juiz de primeiro grau entender presentes elementos indicativos de dolo eventual em um caso de homicídio, o Tribunal de Justiça é livre para, ao receber o recurso, reapreciar as provas, afastar sua existência e despronunciar o réu.

Gilmar Ferreira
Decisão do juiz sobre existência de dolo não é soberana, destacou o ministro Noronha
Gilmar Ferreira

Com esse entendimento e por maioria de votos, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu não conhecer de um recurso interposto contra acórdão que impediu um homem de ser julgado pelo Tribunal do Júri sob acusação de matar a namorada por overdose.

O caso trata de um casal em relacionamento estável que tinha por costume se drogar com injeções de morfina. Em uma das oportunidades em que ambos usaram a substância, a mulher morreu de overdose devido à quantidade injetada nela pelo namorado.

Para o Ministério Público do Ceará, o caso é de dolo eventual. Apesar de o réu não desejar a morte da namorada, ele previu e aceitou a possibilidade disso acontecer. Reforçou essa argumentação o fato de ele declarar em juízo que não existe nível seguro de consumo de droga.

O juízo de primeiro grau decidiu pronunciar o réu, deixando para o Conselho de Sentença decidir sobre a hipótese de culpa consciente, alegada pela defesa. Nela, o agente prevê a possibilidade do evento danoso, mas acredita sinceramente que isso não irá acontecer. Por esse viés, o homicídio é culposo, a ser julgado por um juiz togado.

O Tribunal de Justiça do Ceará, por sua vez, reanalisou as provas e concluiu pela ausência completa de dolo. Segundo o acórdão, o réu não assumiu, porque não cogitou, o risco de matar a namorada ao injetar nela a droga, inclusive porque consumiam morfina juntos frequentemente.

Deixa para o juiz
A corte cita a dificuldade técnica de estabelecer, com segurança, a diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente, a qual é extremamente sutil e confunde até os mais experientes operadores do Direito. A proposta é que essa diferenciação seja feita pela prudente avaliação do julgador.

Rafael Luz/STJ
Para Paciornik, diferenciação entre dolo e culpa ficara para o Conselho
Rafael Luz/STJ

"Se o conceito jurídico-penal acerca do que é dolo eventual já produz enormes dificuldades ao julgador togado, que emite juízos técnicos, apoiados em séculos de estudos das ciências penais, o que se pode esperar de um julgamento realizado por pessoas que não possuem esse saber e que julgam a partir de suas íntimas convicções, sem explicitação dos fundamentos e razões que definem seus julgamentos?", indagou o TJ-CE.

O assistente da acusação recorreu ao STJ contra a decisão de despronúncia. Relator, o ministro Joel Ilan Paciornik deu provimento para restabelecer a pronúncia do réu, por entender que o TJ-CE extrapolou os limites do que poderia decidir no recurso.

Para isso, citou jurisprudência do STJ que indica que a discussão sobre dolo eventual ou culpa consciente é tarefa do júri popular, juiz natural da causa, a partir da narrativa dos fatos e com auxílio das provas produzidas.

"Comprovada a materialidade do delito e elencados indícios, à corte estadual é vedado analisar o elemento subjetivo do crime no intuito de despronunciar o réu, em franca usurpação da competência do Conselho de Sentença", disse, nesta terça-feira, o ministro Joel Ilan Paciornik.

Abriu a divergência vencedora o ministro João Otávio de Noronha, para quem o tribunal de segundo grau tem toda a liberdade para analisar e reclassificar a existência do dolo eventual ou da culpa consciente.

"O juiz de primeiro grau interpreta os fatos para verificar se há dolo ou não. Se houver, ele manda para o júri. Esse exame pode ser feito pelo tribunal. A ele se devolve todo esse conhecimento. Ele tem liberdade para verificar se há dolo ou não. O juiz de primeiro grau não é soberano nessa análise. A decisão é revisável em sede de recurso", disse.

"Nas vias ordinárias, onde foi esgrimada toda a prova, o tribunal entendeu que se tratava de homicídio culposo. Nós, para darmos uma definição diversa, teríamos que esgrimar e mergulhar nessa prova. Seria mais do que apenas revalorar", concordou o ministro Jorge Mussi.

Com isso, aplicaram a Súmula 7, que veda justamente a reanálise de fatos e provas em sede de recurso especial. "Para que tivéssemos outra conclusão diferente da do acórdão, seria necessário algo mais do que uma mera revaloração das provas", concordou o ministro Ribeiro Dantas, ao formar a maioria vencedora.

AREsp 1.980.372

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