Prática Trabalhista

Reflexões sobre o uso da inteligência artificial nas relações de trabalho

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

1 de setembro de 2022, 8h00

É certo que a pandemia contribuiu decisivamente para o avanço e o desenvolvimento da tecnologia, de sorte que a inteligência artificial se torna uma realidade cada vez mais presente no mundo moderno e, sobretudo, nas relações de trabalho.

Segundo um recente levantamento, as empresas brasileiras devem investir aproximadamente R$ 2,61 bilhões em inteligência artificial neste ano de 2022, perfazendo um aumento de 28% comparado ao ano anterior [1].

Dito isso, impende destacar que a inteligência artificial também já é ferramenta utilizada no âmbito do Poder Judiciário. Nesse sentido, uma pesquisa realizada pelo Centro de Inovação, Pesquisa e Administração do Judiciário da FGV-Rio apontou que a inteligência artificial está sendo adotada na maioria dos tribunais brasileiros [2].

De outro norte, um estudo feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) identificou que somente no ano 2022 houve um aumento expressivo dos números de projetos no Poder Judiciário envolvendo a inteligência artificial [3]. Na Justiça do Trabalho, por exemplo, existem alguns projetos relacionados com a temática e que se encontram em diferentes fases de implementação [4].

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Aliás, desde o ano de 2018 o Tribunal Superior do Trabalho possui o sistema Bem-te-vi, que se utiliza da inteligência artificial para gerenciar e fazer a análise automática da tempestividade dos processos [5]. De igual modo, o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, através da sua Secretaria de Tecnologia e Comunicação, avalia tecnicamente a possibilidade do uso do aplicativo de inteligência artificial [6].

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal aprimora a inteligência artificial para auxiliar os magistrados e os servidores a identificar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU) [7].

Claro está, portanto, a partir dos exemplos acima referidos, que não há dúvidas de que com o avanço de tais novidades tecnológicas — que, frise-se, têm acontecido em uma velocidade sem precedentes durante a pandemia — as relações de trabalho serão fortemente impactadas.

E no tocante a este novo cenário contemporâneo que se apresenta, oportunos são os ensinamentos do professor João Leal Amado [8]:

"A pandemia obrigou ao confinamento, ao distanciamento, ao isolamento, sendo que, em muitas empresas e em muitos setores, a prossecução da atividade laboral foi mantida em novos moldes, à distância, com o preciso e indispensável auxílio das tecnologias hoje disponíveis.

A pandemia veio, pois, acelerar um processo que já se encontrava em curso, de transição digital, em que o virtual toma o lugar do presencial, em que a comunicação e a interação humana se processam com o largo recurso aos dispositivos tecnológicos hoje disponíveis para a generalidade da população (o computador, a internet, o smartphone, etc.). A inteligência artificial, as apps que para tudo servem, a robotização que vai se alastrando, tudo sinais de um mundo novo (quiçá não tão admirável assim…) que já chegou e que vai continuar a surpreender a espécie humana nas próximas décadas.

Os reflexos de tudo isso no plano das relações laborais são óbvios, são incontestáveis, são imparáveis e são irreversíveis".

No Brasil, hoje se encontra em andamento o Projeto de Lei nº 21/2020 que cria o Marco Legal do Desenvolvimento e Uso da Inteligência Artificial pelo poder público, por empresas, entidades diversas e pessoas físicas [9]. O projeto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e, caso seja recepcionado pelo Senado Federal sem alterações, seguirá para a sanção do presidente da República.

De igual modo, tramita outrossim no Senado Federal o Projeto de Lei nº 872/2021 [10], que dispõe sobre o uso da inteligência artificial, além do Projeto de Lei nº 5.051/2019 [11], que estabelece os princípios para o uso desta tecnologia no Brasil.

Entrementes, a Resolução nº 332, de 21.08.2020, do Conselho Nacional de Justiça, dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de inteligência artificial no Poder Judiciário [12].

Do ponto de vista normativo no Brasil, a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 [13], garante aos trabalhadores o direito à informação clara e precisa da utilização dos dados que sejam titulares, assim como a finalidade a que estes se destinam. Bem por isso, uma questão que tem sido objeto de debate e estudo se refere à criação de mecanismos para impedir a discriminação por inteligência artificial, ou seja, evitar que a tecnologia crie padrões de excludentes [14].

Se, por um lado, é verdade que a inteligência artificial pode trazer efeitos positivos nas relações de trabalho; lado outro, se constatada que esta tecnologia pode causar prejuízos, como por exemplo, a discriminação no tratamento de dados na relação de trabalho, isto poderá acarretar consequências e responsabilização de ordem civil.

É cediço que a inteligência artificial é escorada em algoritmos e, claro, a partir de uma análise dados, fato é que a máquina passa a "aprender" a se desenvolver com as experiências adquiridas. Nesse sentido, é factível que em decorrência de um conjunto de dados a máquina possa ser induzida a uma tendência, e, por conseguinte, ocorra a discriminação de trabalhadores, em virtude de sua programação.

Frise-se, a título de exemplo, que a empresa Amazon constatou que o seu sistema de inteligência artificial adquiriu uma certa orientação sexista, em razão dos dados dos currículos recebidos ao longo de 10 anos [15].

É fato que a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho veda qualquer discriminação em matéria de emprego ou profissão [16]. Por isso, é imperioso lembrar que conquanto a inovação tecnológica seja inevitável, deve-se sempre ter o cuidado para não haver afronta aos direitos humanos fundamentais nas relações de trabalho.

Em arremate, é importante que seja feita uma reflexão a fim de evitarmos o retrocesso social, afinal, a tecnologia deve servir para que o ser humano tenha uma melhoria da sua condição social e, por conseguinte, uma vida equilibrada e feliz.

 


[5] Disponível em https://www.csjt.jus.br/web/csjt/justica-4-0/bem-ti-vi. Acesso em 30/8/2022.

[9] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2236340. Acesso em 30/8/2022.

[12] Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429. Acesso em 30/8/2022.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto "Prática Trabalhista" (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo "O Trabalho Além do Direito do Trabalho", da USP.

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