Interesse Público

Normas gerais sobre concursos públicos: modernização ou retrocesso?

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

1 de setembro de 2022, 8h00

Em 8 de agosto passado, a Câmara dos Deputados restituiu ao Senado Federal o substitutivo ao PL 252-A, de 2003, que "dispõe sobre as normas gerais relativas a concursos públicos", tendo merecido, em julho deste ano, o signo de urgência. A iniciativa revela uma miríade de contradições entre a proposição legislativa e desafios que se experimenta em relação à garantia de oferta de agentes públicos em volume e qualificação compatíveis com os novos desafios postos à administração pública.

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Primeiro ponto de atenção que o PL 252-A suscita diz respeito à permanente pretensão de ampliação do conceito do que sejam "normas gerais". A afirmação de que o diploma cuide dessa tipologia jurídica, com ou sem o uso explícito da expressão "normas gerais", para com isso buscar fundamento no artigo 24, § 1º CF à atuação legiferante da União, é fenômeno que se manifesta em distintas áreas temáticas. O campo de pessoal e seus desdobramentos não se apresenta exceção, com a transposição para o domínio da União de temas afetos ao regime público de previdência, da perda do cargo por excesso de despesa e, agora, com a pretensão de disciplinamento uniforme do procedimento de seleção de pessoal para provimento de cargos.

Classicamente, gestão de pessoal se compreende no domínio da autoadministração, donde inequívoca a competência de cada qual dos respectivos entes federados para a respectiva normatização. A evocação da qualificação como "normas gerais" pretende abrir espaço para a disciplina dos concursos públicos, mas o conteúdo do PL 252-A desautoriza essa versão. A proposição compreende elementos instrutórios exigíveis à decisão pela convocação do concurso (artigo 3º); competências das comissões organizadoras (artigo 5º), conteúdo do edital (artigo 7º) e até mesmo disciplina do eventual curso de formação (artigo 11).

Moreira Neto [1] já qualificava as normas gerais como espécie revestida de generalidade intermediária (entre os princípios e as normas em sentido estrito), identificadas como conceito-limite, eis que conformariam o exercício da competência legislativa dos demais entes federados. O grau de especificação empreendido pelo referido PL 252-A praticamente exaure a parametrização legislativa da realização de concurso público, revelando se tenha por ultrapassadas as fronteiras da categoria normativa que se está a manejar como argumento legitimador. Mas não é só esse o problema que a proposição legislativa sugere.

Embora não se tenha qualquer justificativa a orientar a intenção do legislador em sua proposição original, o Parecer Preliminar de Plenário nº 4 PLEN, ofertado pelo deputado Eduardo Cury alude a "oferecer ao país uma lei para modernização dos concursos públicos, que seja arrojada e condizente com a concepção contemporânea que a sociedade brasileira tem em relação aos fins e papel do Estado e da necessidade de aprimorar o processo de seleção dos quadros para o exercício do serviço público" [2], o que parece sugerir seja a iniciativa presidida por uma racionalidade substantiva, fundada nos valores em abstrato postos à administração pública pelo artigo 37, caput CF. Ocorre que, na lição de García-Pelayo [3], a racionalidade política, administrativa e econômico-social devem operar como termos interatuantes. Disso decorre que a dimensão instrumental da racionalidade é de estar igualmente presente — e nestes termos, é de se ter em conta a aptidão da proposta a reger uma realidade tão diversificada quanto aquela dos concursos públicos.

Dois são os principais conteúdos das cláusulas legislativas propostas: 1) reiteração de padrões de comportamento que já exsurgem da Constituição ou de assentada jurisprudência constitucional; e 2) robustecer os componentes de planejamento do concurso, seja na instrução da decisão pela sua convocação, seja no desenho de atribuições da comissão organizadora.

Na reiteração do caráter isonômico, impessoal, não discriminatório do procedimento, nada mais se tem do que redundância, em nova manifestação de um vício corrente segundo o qual a tautologia normativa favoreça o cumprimento do preceito. Mais ainda, o uso de expressões revestidas de indeterminação como "discriminação ilegítima de candidatos" (artigo 2º, § 4º do PL 252-A), "adequação do provimento dos cargos" (artigo 3º, IV do PL 252-A), dentre outros, pode abrir ensejo à judicialização do certame, com os efeitos negativos associados ao bloqueio, ainda que temporário, ao provimento dos cargos públicos.

Já na intenção de robustecimento do planejamento do concurso, a proposição, ainda que meritória, parece desconhecer a realidade da administração pública nos rincões do país, com exigências que, mais uma vez, podem bloquear o desenvolvimento do recrutamento de pessoal. Assim é que a exigência, como elemento de instrução à decisão pela convocação de concurso, de "evolução do quadro de pessoal nos últimos cinco anos e estimativa das necessidades futuras em face das metas de desempenho institucional para os próximos cinco anos" (artigo 3º, I do PL 252-A) pressupõe uma sofisticação da programação de atividades da administração que se revela inexistente — e quiçá inalcançável — em expressivo número, em especial, de municípios Brasil afora.

Da mesma maneira, a modelagem da comissão organizadora parece excessivamente arrojada, conjugando a exigência de que seus integrantes exerçam "atividades de complexidade igual ou superior às dos postos a prover" (artigo 5º, § 1º do PL 252-A) e ainda de que lhes caiba "definir, com base nas atribuições dos postos, o conteúdo programático, as atividades práticas e os aspectos comportamentais a serem avaliados". Aqui, a proposição parece desconhecer uma estratégia comum à Administração para conciliar a dimensão operacional com a técnica de um concurso, a saber, a coexistência de duas comissões distintas — uma organizadora, e outra examinadora, esta última responsável pelas atividades que envolvam a aplicação e avaliação dos conteúdos técnicos em jogo.

A desconexão entre o que se aponta como exigível na proposição legislativa e o que se pode efetivamente obter nas organizações públicas revela a falta de abertura à realidade — atributo da boa administração, citado por Rodríguez-Arana Muñoz [4]. Uma aproximação aberta às condições objetivas da atividade que se pretende regular é chave de sucesso para o resultado pretendido, a saber, qualificação dos procedimentos de seleção para os quadros de pessoal da administração pública.

Mesmo naquilo que o PL 252-A parece pretender oferecer de novo ao procedimento de seleção de pessoal — a autorização legislativa para que este se dê em modalidade on line ou por plataforma à distância — a proposição é ambígua. Afinal, se de um lado ela explicita os atributos de que a ferramenta ou ambiente virtual deve se revestir ("acesso individual seguro e em ambiente controlado" — artigo 8º do PL 252-A); de outro lado ela alude à garantia de "igualdade de acesso às ferramentas e dispositivos do ambiente virtual", o que parece sinalizar para uma transferência dessa mesma asseguração à administração.

A inovação não se vê melhor esclarecida no Parágrafo Único do referido artigo 8º do PL 252-A, que subordina sua aplicação a uma regulamentação "que poderá ser geral para o ente da Federação, ou específica de cada órgão ou entidade, com consulta pública prévia obrigatória".

Inevitável vir à mente a referência por Justen Filho [5] a um "Estado do Espetáculo", cuja "preocupação central não é a alteração da realidade propriamente dita, mas o desenvolvimento de atividades destinadas a gerar imagens, sonhos e manter uma audiência entretida". Discute-se uma pretensa norma geral de concursos públicos, cujo resultado pode ser, na expressão do poeta Cazuza, um museu de grandes novidades.

Não é difícil antecipar quais sejam as alternativas que se apresentem a uma unidade administrativa que se veja em dificuldades para a convocação de concurso no novo modelo agora proposto — caso venha ele a efetivamente ser aprovado.

A primeira delas será a deletéria multiplicação de cargos em comissão, prática já censurada pelo STF quando da análise do Tema 1.010 da Repercussão Geral [6] — sem que se tenha, todavia, notícia de que a determinação da corte tenha sido suficiente ao bloqueio dessa proliferação abusiva de vínculos fiduciários. A par dos possíveis desvios à impessoalidade que essa possibilidade oferece, tem-se a precarização das instituições públicas, e a dissolução de uma cultura em relação aos temas a cargo da administração que é em tudo e por tudo a antítese da postulação constitucional de eficiência.

A segunda alternativa será a utilização de outros mecanismos que permitam a captação de mão de obra, como os variados vínculos que o quadro normativo hoje permite estabelecer com organizações da sociedade civil. Aqui, o risco está no desvirtuamento destes instrumentos, que não se destinam à pura e simples captação de mão de obra, como recurso paralelo às dificuldades na convocação do concurso.

Retornando ao ponto inicial, não é ociosa a construção teórica segundo a qual, em estados federados, às entidades que os integram é de se reconhecer a autonomia e, com ela, seu consectário da autoadministração. A calibragem entre o direcionamento finalístico traçado pela Constituição e a realidade de cada organização é de se fazer no plano de governo subnacional envolvido. A sanha de "enquadramento" dos entes subnacionais pelo exercício ampliado de competências (reais ou imaginárias) da União pode resultar em efeitos deletérios não antecipados. E no campo de pessoal, como são estes agentes o suporte principal da oferta dos serviços públicos, o prejuízo será sempre da cidadania.

 


[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa, v. 25, nº 100, p. 126-162, 1988.

[3] GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporâneo. Madrid: Alizan Universitaria, 2005, p. 37.

[4] RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. El buen Gobierno y la buena administración de instituciones públicas. Adaptado a la Ley 5/2006, de 10 de abril. Navarra: Thompson-Aranzadi, 2006, p. 27.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de espetáculo. in ARAGÃO, Alexandre dos Santos e MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (coord.). Direito Administrativo e seus novos paradigmas, 1ª reimp., Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 65-85.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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