Diário de Classe

O Direito está imune às evoluções da filosofia?

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  • Óliver Vedana

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos bolsista Proex/Capes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos especialista em Direito Processual Civil e pós-graduando em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica ambos pela ABDConst.

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29 de outubro de 2022, 8h00

As evoluções científicas do conhecimento não têm sido ignoradas pela comunidade em cada uma de suas áreas. No campo das chamadas "ciências duras", como o da física, por exemplo, conceitos tradicionais como espaço-tempo, objetividade científica e certeza, foram ressignificados [1] e as pesquisas desenvolvidas a partir de cada revolução de seus marcos teóricos têm avançado, abandonando os conceitos superados.

Importantes viradas paradigmáticas, como a protagonizada pela hermenêutica filosófica de Gadamer, influenciaram outras áreas do pensamento, como a arquitetura [2].

Parece óbvio que novas pesquisas científicas/acadêmicas considerem as principais reviravoltas e se desenvolvam a partir de então. Porém, aparentemente essa "máxima" não tem sido recepcionada em sua integralidade pela comunidade jurídica brasileira, isso porque, nessa quadra da história, nos vemos não só repetindo conceitos superados como ignoramos importantes contribuições da evolução do pensamento ocidental, em especial a virada-ontológica linguística.

Ainda reproduzimos conceitos como o livre convencimento motivado, utilizamos o processo como um instrumento [3], estamos presos ao processo interpretativo clássico, e cindimos teoria e prática, para citar apenas estes.

Tais máximas, tão repetidas no cotidiano forense brasileiro, não mais se sustentam se considerarmos o papel da linguagem difundido pelo linguistic turn e a ruptura paradigmática na filosofia, que superou a filosofia da consciência.

A linguagem, desde então, não é mais tida como um mero instrumento, mas sim como condição de possibilidade para a compreensão de mundo. Houve o ingresso do mundo prático na filosofia, e, a partir disso, "descobriu-se que para além do elemento lógico-analítico, pressupõe-se sempre uma dimensão de caráter prático-pragmático e que o sujeito surge na linguagem e pela linguagem" [4], ou seja, rompeu-se com o esquema sujeito-objeto e com os paradigmas metafísicos clássico e moderno.

O sujeito não é mais fundamento do conhecimento, nem senhor dos sentidos. Não se sustenta mais a ideia de uma linguagem privada que define os sentidos do mundo, mas sim uma linguagem compartilhada como condição de possibilidade de ser no mundo. Em suma, o sentido não pertence ao intérprete.

Daí o porquê, por exemplo, ser impossível teoricamente sustentar o livre convencimento. O sujeito não é livre para atribuir um sentido, e não importa a forma que ele fundamente se a atribuição de sentido se dá num prisma de linguagem privada, e não a partir da exterioridade do sujeito, de uma linguagem pública [5].

O processo interpretativo clássico, no qual a interpretação se dá em partes (primeiro compreendo, depois interpreto, para só então aplicar) também foi alvo de superação por esse movimento, pelas lições de Gadamer, que nos "condenou a interpretar". Neste sentido

"para Gadamer, fundado na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung). O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes, porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmo. E essa atribuição de sentido não se dá em dois “terrenos separados”, como o sentido da lei e dos fatos. Não. Tudo se dá em um processo de compreensão, em que sempre já existe uma pré-compreensão. Ninguém pode falar em inconstitucionalidade sem saber o que é constituição" [6].

O Direito está inserido em uma intersubjetividade racional, chamada por Herbert Schnädelbach de razão hermenêutica, e deve, portanto, ser produzida e garantida a partir de processos de compreensão [7], logo, não está imune aos avanços do campo filosófico.

As contribuições e influências dessa "invasão" da filosofia pela linguagem não param nesses singelos exemplos. Há um campo denso e importante a ser explorado nessa imbricação com o Direito.

Se levarmos à sério o giro ontológico-linguístico, poderemos avançar significativamente em campos muito caros à jurisdição brasileira, como a teoria da decisão, sem repetirmos fórmulas do passado, muitas vezes tidas como novidades, mas que são, na verdade, o mesmo sobre novas vestes. A Crítica Hermenêutica do Direito, com suas matrizes teóricas fundadas nesses paradigmas e desenvolvida de há muito pelo professor Lenio Streck, é um exemplo de como essa recepção pode trazer soluções para o ordenamento jurídico pátrio [8].

É preciso deixar claro que não é nosso intuito impor a fórceps a recepção integral dos fenômenos protagonizados pela invasão da filosofia pela linguagem, mas sim chamar atenção para que tais avanços sejam mais bem observados e debatidos.

Ainda que esse fenômeno não seja recepcionado por parcela da comunidade jurídica, o seu enfrentamento não pode ser deixado de lado, ou simplesmente mencionado sem a devida atenção que merece. É um dever epistêmico, ou, o que Lenio Streck chama de fair-play epistemológico.

 


[1] "De um lado, Einstein inserindo a dúvida no universo 'disciplinado' tridimensional de Newton (sempre em absoluto repouso e imutável vindo da geometria euclidiana); de outra parte, a teoria quântica de Heinsenberg que desmantelou completamente o ideal clássico da objetividade científica. Por sua vez, foi Prigogine que envolveu a física no estudo das estruturas dissipativas e da desordem criadora de modo inédito afirmando o fim das certezas. Suas pesquisas dispostas sobre um campo de análise inerente a física dos processos de não-equilíbrio (dissipativos) trouxeram conceitos novos como o de auto-organização, bem como a caracterização de um tempo unidirecional que confere nova significação à irreversibilidade." (JOBIM DO AMARAL, A. Ética, velocidade e processo penal: aportes críticos desde a criminalidade econômica. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 10, n. 19, p. 362-389, 3 nov. 2020. p. 369-370).

[2] BATISTA, G. S. Gadamer e a experiência hermenêutica da arquitetura. Veritas (Porto Alegre), [S. l.], v. 65, n. 2, p. e37243, 2020. Disponível em: https://pucrs.homologacao.emnuvens.com.br/veritas/article/view/37243. Acesso em: 26 out. 2022.

[3] Para compreender o porquê não é possível usar essa expressão, ver: STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; DIETRICH, William Galle. O que o processo civil precisa aprender com a linguagem? Revista Brasileira de Direito, [S.L.], v. 13, n. 2, p. 317, 18 ago. 2017. Complexo de Ensino Superior Meridional S.A.. http://dx.doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v13n2p317-335.

[4] BARBOSA, Ana Julia Silva; QUARELLI, Vinicius. O que é isto – a crítica hermenêutica do Direito? 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-11/diario-classe-isto-critica-hermeneutica-direito#:~:text=Introduzir%20algo%20%C3%A9%20sempre%20um,um%20desenho%20geral%20da%20Teoria. Acesso em: 27 fev. 2022.

[5] Sobre o desenvolvimento do tema, ver STRECK, Lenio; JUNG, Luã. Livre convencimento judicial e verdade: crítica hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán. Novos Estudos Jurí­dicos, [S.L.], v. 27, n. 1, p. 2-21, 27 jun. 2022. Editora Univali. http://dx.doi.org/10.14210/nej.v27n1.p2-21. Acesso em: 26 out. 2022.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Estamos condenados a interpretar. Estado da Arte – revista de cultura, artes e ideias. Acesso em 20 out. 2022. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/hermeneutica-juridica-streck/

[7] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 501

[8] São exemplos da influência da Crítica Hermenêutica do Direito a retirada do termo "livre convencimento motivado" do art. 489 do CPC, as Três Perguntas Fundamentais, entre tantas outras.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Público pela Unisinos Bolsista Proex/Capes, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos Especialista em Direito Processual Civil e em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica, ambos pela ABDConst.

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