Diário de classe

Os paradigmas e a formação de tradições (in)autênticas

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22 de outubro de 2022, 12h45

Não de hoje — mas talvez hoje mais do que nunca — as discussões envolvendo as teses patrimonialistas são, não à toa, objeto de controvérsia entre estudiosos do Brasil, sobretudo, entre cientistas políticos e sociais. É que a leitura desatenta de muitos desses ensaios — como, por todos, aqueles produzidos por Raymundo Faoro — indicaria uma espécie de essência legada ao brasileiro — essência, aliás, que passaria a moldá-lo culturalmente —, determinando um futuro orientado no — e pelo — passado. Em nome dessa característica inexorável, esse mesmo futuro não poderia ser, nesse viés, recusado, mostrando-se como o caminho inevitável de corrupção — nosso grande tema na atualidade — nas relações entre o público e o privado no país.

Diante dessa tradição acadêmica, digamos, mais clássica — objeto de uma questionada crítica social moderna na contemporaneidade —, o presente brasileiro teria sido determinado no Brasil Colônia como a grande fazenda de Manoel Bomfim1, passando não por uma nação independente — mas monárquica e orientada à lógica da exploração determinada por uma elite colonial constituída já no país —, chegando à república que não republicaniza de José Murilo de Carvalho2. Por fim, fechando essa espécie de linha temporal a partir da proposta de Marcos Nobre — embora também não como um reforço ou endosso a essas teses —, essa mesma república teria se mantido imóvel, paradoxalmente, frente ao movimento necessário ao processo de redemocratização do Brasil na década de 19803. Teríamos, portanto, uma essência. E uma essência ruim.

Esse é, digamos assim, um retrato bastante sucinto não apenas do estado da arte bem moldado nos espaços acadêmicos nacionais desde os Anos 1930 — e dominantes pelo ineditismo projetado nas suas análises —, como também reflexivo da crítica que mais tarde receberia nos Anos 1990 (apesar das divergências nas chaves explicativas de suas teses, transitando de Marx a Weber). Mas o ponto — e talvez a atualidade desse debate — entretanto, seja: o paradigma mal lido, inserido na chamada grande tradição, não seria uma espécie de justificador para predar sem constrangimentos a autonomia do Direito, como se pretende, por exemplo, no combate à corrupção? De outro modo: uma essência corruptiva, que engessa sentidos, não figuraria bom álibi para ativismos, autoritarismos e flexibilizações de garantias, como comumente se vê, sobretudo nas tensões ideológicas dos debates político-eleitorais?

Talvez seja possível. Provável, na verdade. Afinal, paradigmas, em boa medida, informam imaginários. Ideologizados, esses mesmos imaginários reivindicam o poder de explicar tibiamente situações razoavelmente complexas — como demandas sociais politicamente não atendidas (fiquemos, mais uma vez, com o exemplo de nossa essência corruptiva), justificando a metamorfose do Direito em mero comando político. É ou não é assim que a banda tem tocado, ultimamente?

Penso que sim, embora seja bem verdade que essa mesma perspectiva, em certo aspecto, acabe soando exagerada ou alarmista para muitos. De todo modo, ela também tem lá suas razões de ser. Afinal, justificadas sob o tal paradigma, eventuais medidas excepcionais são ameaças, via de regra, silenciosas. Faz sentido. Paradoxalmente, a democracia não aparenta estar em xeque nesses contextos. Ao contrário. No limite da sobrevivência — no fio da navalha mesmo — estaria justamente o que se pretende combater.

Ocorre que na perigosa obviedade dessas conclusões está bem embutido o risco não apenas de um imaginário míope, mas também das tradições forjadas a partir de um paradigma mal compreendido. Para desvelar mais ainda esse estado de coisas, em boa medida truncado por um amplo conjunto de abstrações, vejamos, o exemplo do Peru de Fujimori. Lá, no fim do século XX, como bem lembram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt…

…os peruanos admiravam (o candidato à presidência Mário) Vargas Llosa, que depois ganharia um Prêmio Nobel de Literatura. Praticamente todo o establishment — políticos, mídia, líderes empresariais — apoiava Vargas Llosa, mas os peruanos comuns o viam como demasiado íntimo das elites, que se mostravam surdas às suas preocupações. Fujimori, cujo discurso capitalizava esse ódio, sensibilizou muitas pessoas como a única opção real de mudança. Ele ganhou. Em seu discurso de posse, Fujimori advertiu que o Peru enfrentava a ‘mais profunda crise de sua história republicana’. A economia, disse ele, estava ‘à beira do colapso’, e a sociedade peruana vinha sendo ‘despedaçada pela violência, a corrupção, o terrorismo e o tráfico de drogas’. (…) Em 05 de abril de 1992, Fujimori apareceu na televisão e anunciou que estava dissolvendo o Congresso e a Constituição. Menos de dois anos depois de sua surpreendente eleição, o outsider azarão tinha se tornado um tirano.4

O que desse imaginário — ancorado na subliminar ideia de que o futuro do Peru estava congelado nos limites de uma essência corrupta e violenta, imune a instituições — resultou é conhecido por muitos. À semelhança da Venezuela de Chávez e Maduro ou da Turquia de Erdogan, o Peru de Fujimori, dali em diante, viu em marcha um (não tão) silencioso processo de ruptura democrática. Claro. Se esse imaginário desnudava uma premissa (inquebrantáveis condições naturalmente postas), sua decorrência justificava medidas à margem da linguagem pública dessas mesmas instituições limitadas (o fim do Estado de Direito). O resultado? O óbvio: jogar o bebê junto com a água do banho, como fez o ex-professor universitário descendente de japoneses, alçado à presidência do Peru, não melhorou a vida dos cidadãos daquele país, menos ainda fez enfraquecer a ampla teia corruptiva entre eles.

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Pois bem. Dessas brevíssimas reflexões à brasileira (formação de paradigmas justificadores e inautênticas tradições engessadas), passando pelo exemplo peruano (a predação da democracia a partir da dissolução do Congresso e da Constituição), duas são as conclusões mais imediatas. A primeira diz que fugir dessa tentação populista, que tenta reescrever a Constituição, talvez seja nossa grande agenda, nossa ordem do dia, substituindo mesmo o intenso debate sobre transição aqui e em toda América Latina. A segunda, em tempos de anti-intelectualismo, permite desvelar a importância dos (bons) debates acadêmicos, principalmente aqueles voltados a complexidade de determinadas problematizações que, no limite, escoram a democracia e seus muitos imaginários.

É o caso, por exemplo, do V Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito a Teoria do Direito e o futuro da jurisdição, organizado pelo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos — do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, a ser realizado nos dias 25 e 26 de outubro. O evento contará com os professores Lenio Streck (Unisinos), Georges Abboud (Puc-SP), Clarissa Tassinari (Unisinos), Rafael Tomaz de Oliveira (Unaerp), Ziel Ferreira Lopes (Univasf), Gilberto Morbach (Unisinos), Luã Jung (Unesa), Luís Roberto Barroso (Uerj) e Juraci Mourão Lopes Filho (Unichristus).

E, claro, o texto de hoje bem poderia ser um convite aos interessados. A intenção, no fundo, era essa. Mas as inscrições disponíveis ao evento, online, esgotaram-se uma semana antes de sua realização. Ponto, enfim, para a democracia. (Ainda) não fracassamos.


1 BOMFIM, Manoel. A América Latina: Males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

2 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das letras, 1987.

3 NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: Da abertura democrática ao governo Dilma. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

 4 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

Autores

  • é doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Com bolsa Capes/PNPD, realiza estágio pós-doutoral na mesma instituição, junto ao Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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