Opinião

Equivocado acolhimento da teoria da descoberta inevitável das provas pelo CPP

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18 de outubro de 2022, 6h45

A teoria da descoberta inevitável das provas (inevitable discovery exception) foi desenvolvida pela Suprema Corte norte-americana, no julgamento do caso Nix v. Williams, em 1984. Considerou-se que a confissão obtida através de perguntas realizadas por um policial que conduzia o acusado de homicídio, da cidade onde foi preso até a cidade onde o crime ocorrera, sem a presença de um defensor, não afetaria a legitimidade da descoberta do corpo da criança desaparecida, ao fundamento de que a existência de uma busca comunitária, que já estava sendo realizada no local por populares, inevitavelmente, redundaria no mesmo resultado, que seria a localização do corpo [1]

Portanto, mesmo reconhecendo que a informação sobre a localização do corpo fora obtida de forma irregular, porque o acusado não estava devidamente acompanhado de um defensor quando confessou o crime e indicou o local onde havia enterrado o corpo, a Suprema Corte norte-americana considerou que a prova não deveria ser excluída, uma vez que seria inevitavelmente obtida por outro meio regular, qual seja, a busca popular, a qual se iniciou antes da entrevista do acusado com a polícia. Trata-se, portanto, de um caso muito específico e envolto por peculiaridades.

O tratamento da prova ilícita no CPP
A Lei 11.690/2008, que alterou a redação do artigo 157, do Código de Processo Penal, dispôs que "São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais". No §1º, a mesma lei acrescentou que "São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras". E, no §2º, esclareceu que "Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova".

Pois bem, inicialmente, o código reforça a norma constitucional e acrescenta a questão do desentranhamento da prova obtida por meios ilícitos, acolhendo a doutrina americana denominada exclusionary rule, construída no julgamento do caso Weeks v. United States, de 1914.

Na sequência, estende a inadmissibilidade às provas obtidas por derivação ou como consequência de uma prova anterior obtida de forma ilegítima. Ou seja, uma prova obtida a partir da busca e apreensão determinada por juiz competente, porém baseada em informação colhida através de interrogatório no qual o investigado tenha sido submetido a tortura não terá validade. É a chamada teoria da prova ilícita por derivação, surgida no julgamento do caso Silverthorne lumber & Co v. United States, em 1920, ou dos frutos da árvore venenosa (Fruit of poisonous tree doctrine), como ficou conhecida após o julgamento do caso Nardone v. United States, de 1939.

Entretanto, se não houver nexo de causalidade ou se tratarem de fontes independentes, vale dizer, voltando ao exemplo acima, se a busca e apreensão for determinada com base em outra informação legitimamente obtida, que não seja decorrente da confissão sob tortura, não há que se falar em ilicitude da prova angariada. Trata-se da independent source doctrine, construída no julgamento do caso Murray v. United States, de 1988.

Ocorre que, na sequência, o legislador brasileiro apresenta um conceito equivocado de "fonte independente", ao dizer que "Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova".

O problema é que, ao utilizar o verbo "ser" no futuro do pretérito (seria), o legislador brasileiro indica uma potencialidade, algo que não necessariamente precisa ocorrer para tornar válida a prova. É dizer, no caso específico, "seria" indica que se uma prova pode ser eventualmente obtida por meio lícito, tal aspecto basta para que a prova obtida de forma ilícita seja considerada válida.

De imediato, percebe-se que o legislador pretendeu introduzir no ordenamento brasileiro a teoria da descoberta inevitável, ampliando a concepção de fonte independente, o que é um flagrante equívoco. A ideia de "fonte independente", além do sentido léxico, indica, do ponto de vista jurídico, prova efetivamente obtida de forma regular porque lícita a sua origem, e não prova que poderia vir a ser obtida de forma regular.

 Ou seja, a fonte independente não tem qualquer relação lógica com a fonte paradigma, e é por isso que não se pode falar em contaminação da prova. Por sua vez, a prova que decorre de uma descoberta inevitável, conforme a jurisprudência norte-americana, nunca será obtida de forma lícita, mas em decorrência de elementos previamente obtidos de forma ilícita. Portanto, é descabido falar em fonte independente quando o assunto for descoberta inevitável.

Precedentes do Supremo Tribunal Federal
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já aplicou a teoria da descoberta inevitável como argumento de reforço para denegar ordem em Habeas corpus em que se pretendia a nulidade de prova obtida a partir de busca exploratória no aparelho celular de indivíduo preso em flagrante. No julgado em questão, concluiu-se que as informações obtidas a partir do celular de um suspeito, que comprovavam a sua ligação com outro suspeito, poderiam ser consideradas, uma vez que o curso normal das investigações conduziria a elementos informativos que vinculariam os pacientes ao fato investigado [2].

Em outro caso, ao examinar a possibilidade de preservação de prova obtida mediante cumprimento de mandado de busca e apreensão, expedido por juiz de primeira instância, em residência de agente político detentor de foro por prerrogativa de função, o STF reconheceu que "o artigo 157, CPP, preceitua a higidez probatória na hipótese em que exista fonte que, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova" [3].

Em ambos os caso, o STF se vale de uma eventual investigação regular, que poderia ter ocorrido, mas que não ocorreu, como justificativa para convalidar prova obtida de forma irregular.   

Comparação entre Nix v. Williams e os precedentes do STF
Em Nix v. Willians, a Suprema Corte norte-americana considerou válida a localização do corpo da vítima após um irregular procedimento de confissão porque havia em andamento, simultaneamente ao interrogatório, uma busca popular iniciada antes da confissão, a qual estava prestes a localizar o corpo e somente não o fez em razão da confissão obtida pela polícia. Nesse caso, portanto, a questão não é "se" a prova seria descoberta, mas "quando" e independentemente da atuação dos agentes de persecução penal. Assim, considerando que a descoberta do corpo seria inevitável, naquele caso concreto, entendeu-se que não haveria porque desqualificar a prova obtida a partir de métodos ilícitos, porque ela seria necessariamente obtida por um meio lícito.

Perceba-se que a Suprema Corte norte-americana não fala em "curso normal das investigações", como o STF, ou "seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal", como o CPP brasileiro, mas, tão somente, em busca pelo corpo concomitante ao interrogatório informal do acusado, o que é bem distinto, casuístico e muito mais restritivo.

A descoberta inevitável norte-americana está conectada a uma fonte necessariamente independente de produção probatória em pleno andamento, como a busca popular pelo corpo da vítima que se desenvolvia enquanto o acusado estava sendo interrogado.

A "descoberta inevitável à brasileira", pela forma como está redigida a lei processual penal, permite a compreensão de que uma potencial ou possível adoção de outros meios lícitos por parte dos agentes de persecução penal (ainda que não venham a ser efetivamente adotados) teria a força de validar a prova obtida anteriormente por meios ilícitos.

O problema é que, em tese, qualquer prova pode ser obtida por meio lícito e, se assim for, não haverá mais que se falar em prova ilícita. Exemplificando, um documento falso encontrado na casa de um investigado por policiais que nela adentraram sem mandado de busca e apreensão poderá ser aceito como prova porque, em tese, seria possível a expedição de mandado de busca e apreensão em tais circunstâncias, mesmo que não tenha havido qualquer iniciativa nesse sentido naquele momento.

Conclusão
Evidencia-se, portanto, que o legislador brasileiro não compreendeu o contexto fático em que surgiu a teoria da descoberta inevitável, sendo presumível que também não tenha acompanhado a evolução da doutrina e sua aplicação em outros casos no seu país de origem.

Além disso, sob a roupagem da restritiva teoria da descoberta inevitável, criou-se, no cenário brasileiro, uma esdrúxula hipótese de fonte independente com potencial para convalidar a ilicitude de qualquer meio de obtenção de prova, porque, em tese, como dito, qualquer elemento de prova, ilicitamente obtido, poderia ter sido obtido de forma lícita se a investigação seguisse seu trâmite normal.

Mantida essa compreensão, o que se vislumbra é a inversão no procedimento investigativo: ao invés de as agências de investigação e persecução penal solicitarem autorização judicial para obterem as provas, elas próprias diligenciarão sem qualquer limite e, posteriormente, quando confrontadas em juízo, apresentarão justificativas para uma descoberta que seria inevitável, caso fosse seguido o "curso normal da investigação".

Em conclusão, a interpretação literal do confuso §2º do artigo 157 do Código de Processo Penal, em desarmonia com os pressupostos que influenciaram a construção da teoria norte-americana da inevitabilidade da descoberta da prova, e em confronto com a própria norma constitucional brasileira, poderá gerar o aniquilamento da garantia da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos.

Em outras palavras, a prova que “poderia” vir a ser produzida seguindo os trâmites legais não pode ser confundida com prova decorrente de fonte independente por se tratar de verdadeiro salvo-conduto persecutório.


[1] "Após o desaparecimento de uma menina de dez anos em Des Moines, Iowa, o réu foi preso e indiciado em Davenport, Iowa. A polícia informou ao advogado do réu que eles levariam o réu de volta a Des Moines sem questioná-lo, mas durante a viagem um dos policiais iniciou uma conversa com o réu que acabou resultando em declarações incriminatórias e direcionando os policiais para o corpo da criança. Uma busca sistemática da área que estava sendo realizada com o auxílio de 200 voluntários, e que havia sido iniciada antes do réu fazer as declarações incriminatórias, foi encerrada quando o réu guiou a polícia até o corpo". Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/467/431/ Acesso em: 16 de outubro de 2022.

[2] "[…] 2. Ilicitude da prova produzida durante o inquérito policial  violação de registros telefônicos de corréu, executor do crime, sem autorização judicial. 2.1 Suposta ilegalidade decorrente do fato de os policiais, após a prisão em flagrante do corréu, terem realizado a análise dos últimos registros telefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos. Não ocorrência. 2.2 Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados. 2.3 Artigo 6º do CPP: dever da autoridade policial de proceder à coleta do material comprobatório da prática da infração penal. Ao proceder à pesquisa na agenda eletrônica dos aparelhos devidamente apreendidos, meio material indireto de prova, a autoridade policial, cumprindo o seu mister, buscou, unicamente, colher elementos de informação hábeis a esclarecer a autoria e a materialidade do delito (dessa análise logrou encontrar ligações entre o executor do homicídio e o ora paciente). Verificação que permitiu a orientação inicial da linha investigatória a ser adotada, bem como possibilitou concluir que os aparelhos seriam relevantes para a investigação. 2.4 À guisa de mera argumentação, mesmo que se pudesse reputar a prova produzida como ilícita e as demais, ilícitas por derivação, nos termos da teoria dos frutos da árvore venenosa (fruit of the poisonous tree), é certo que, ainda assim, melhor sorte não assistiria à defesa. É que, na hipótese, não há que se falar em prova ilícita por derivação. Nos termos da teoria da descoberta inevitável, construída pela Suprema Corte norte-americana no caso Nix x Williams (1984), o curso normal das investigações conduziria a elementos informativos que vinculariam os pacientes ao fato investigado. Bases desse entendimento que parecem ter encontrado guarida no ordenamento jurídico pátrio com o advento da Lei 11.690/2008, que deu nova redação ao artigo 157 do CPP, em especial o seu §2º. […]". BRASIL. STF. HC 91.867, relator ministro Gilmar Mendes, DJ de 20.09.2012.

[3] "Irregularidade processual e preservação da colheita probatória. Como é sabido, salvo as hipóteses de flagrante delito ou para prestar socorro em desastre, o ingresso no domicílio sem o consentimento do morador desafia ordem judicial (artigo 5°, XI, CF). O Código Penal (artigo 150, §4°), por sua vez, prescreve que 'a expressão casa compreende compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade'. Esse cenário sinalizaria, em relação aos agentes detentores de foro por prerrogativa, a nulidade do resultado da diligência. No entanto, ao disciplinar as nulidades, o Código de Processo Penal (artigo 573) prescreve que os 'atos, cuja nulidade não tiver sido sanada, na forma dos artigos anteriores, serão renovados ou retificados'. Nota-se, nessa esteira, que a legislação volta-se, na medida do possível, à preservação das provas colhidas, desde que a renovação ou retificação revele-se apta a suplantar o vício anteriormente verificado. Em linha semelhante, em sintonia com a Teoria da Descoberta Inevitável, construída pela Suprema Corte americana no caso Nix v. Willians (1984), o artigo 157, CPP, preceitua a higidez probatória na hipótese em que exista fonte que, 'seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova'. Indevida, aqui, sanção de invalidade ou supressão de eficácia na medida leva a efeito". (BRASIL. STF. Rcl 25.537 relator ministro Edson Fachin, DJ de 11/03/2020).

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