Opinião

A posição do STJ sobre a valoração da confissão no ANPP

Autores

  • Thiago Nicolai

    é advogado criminalista e sócio do escritório Donelli Abreu Sodré e Nicolai Advogados Associados (DSA).

  • Renata Rodrigues de Abreu Ferreira

    é advogada criminalista do escritório DSA doutoranda em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu e especialista em Compliance e Direito Penal ambos pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra.

8 de outubro de 2022, 6h36

No início de 2020, logo após a introdução do acordo de não persecução penal (ANPP) no nosso ordenamento jurídico, publicamos um artigo com uma série de apontamentos sobre a questão da valoração das confissões de corréus formuladas no ANPP.

Eis que dois anos depois, temos o primeiro pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça sobre um dos pontos discutidos. No último dia 13 de setembro, a 6ª Turma do STJ [1] decidiu que "a assunção extrajudicial de culpa [2] no acordo de não persecução penal (ANPP) não tem capacidade probatória para, por si só, levar à condenação" [3], pois, para isso, seria "imprescindível sua reprodução em juízo, durante a ação penal, e a constatação de sua coerência com provas judicializadas, submetidas ao contraditório" [4].

Essa conclusão se deu com fulcro no artigo 155 do CPP, ou seja, no sentido de que a decisão do juiz não poderia ser fundamentada exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas [5].

Implica dizer que, na perspectiva da Corte Cidadã, a confissão do celebrante do ANPP poderia ser utilizada em ação penal movida contra corréu não agraciado com a benesse processual, desde que fosse ele "demandado a confirmar [em juízo] o conteúdo de sua confissão", isto é, fosse sua confissão sabatinada sob o contraditório [6].

Inobstante o entendimento adotado, por ora, pela Corte Superior, subjazem, aqui, problemas teóricos que obstam uma tal compreensão. Vejamos.

Em primeiro lugar, o posicionamento parte de um conceito equivocado da confissão objeto do instituto. Segundo a Turma, para a celebração do ANPP, "bastaria a confissão formal e circunstanciada da infração penal pelos próprios anuentes para a oferta do acordo", todavia, o que a lei exige, a bem da verdade, é que seja a confissão formal e circunstancial [7] — o que é algo bastante distinto [8].

Dada a sua natureza circunstancial, não se lhe é exigível detalhamento, bastando uma simples declaração de vontade de adesão ao acordo assumindo, genericamente, os fatos narrados no inquérito ou na investigação privada como verídicos. Desse modo, por se tratar de uma espécie de confissão ficta, não haveria que se falar em sua reprodução em juízo, à luz do contraditório.

Há, ainda, outro problema [9] muito mais profundo que decorre da própria qualificação jurídica do celebrante do negócio jurídico.

Com efeito, testemunha "é o indivíduo que, não sendo parte nem sujeito interessado no processo, depõe perante um juiz sobre fatos pretéritos relevantes para o processo e que tenham sido percebidos pelos seus sentidos" [10]. Fato é que, por desempenhar um papel na prática delitiva — quer como coautor, quer como partícipe —, não pode o celebrante do ANPP ser considerado uma testemunha, não só por não possuir a qualidade e isenção que lhe é exigida, mas, sobretudo, por não recair sobre si o dever de dizer a verdade [11].

Pelo contrário. Tratando-se de hipótese de comparticipação em infração penal, faz ele jus tanto ao direito ao silêncio, quanto ao direito de não se autoincriminar, corolário do primeiro. Note-se que por cuidar-se de confissão ficta, ao depor em juízo, há a possibilidade de o seu próprio relato lhe implicar criminalmente – sobretudo quando a narrativa da denúncia destoe da realidade e/ou se subsuma a fatos mais gravosos e/ou que não permitiriam a celebração do pacto, ou seja, possa lhe autoincriminar. Além disso, de se pontuar inexistir qualquer obrigação legal de o celebrante prestar declarações.

A esse respeito, já por ocasião da ação penal nº 470/DF, o Supremo Tribunal Federal assentou que "o sistema processual brasileiro não admite a oitiva de corréu na qualidade de testemunha ou, mesmo, de informante" [12]. Certo é que, ainda que pudesse prestar declarações em juízo — e, portanto, suprimir a exigência do respeito ao contraditório —, suas palavras não seriam de grande valia, ou seja, não poderiam ser valoradas para fins de condenação.

Igualmente não possui o celebrante a posição de colaborador da justiça, o qual está, consoante o §14 do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, sujeito ao compromisso de dizer a verdade [13]. E a própria decisão do tribunal denota isso, ao assinalar a inexistência de acordo de colaboração premiada no caso e, consequentemente, a ausência de necessidade de identificação dos demais coautores e partícipes e das infrações penais por eles praticadas.

Aliás, nem mesmo o delator pode ser ouvido na qualidade de testemunha, mas na sua particular condição de colaborador, tendo o seu depoimento valor probatório atenuado, ao passo em que assenta a legislação a impossibilidade de se proferir sentença condenatória lastreada apenas nas suas declarações (artigo 16, §4º, da Lei nº 12.850/2013 [14]). Afinal de contas, a delação se trata de prática que pode "converter o processo penal em uma autêntica frente de chantagens, acordos interessados entre alguns acusados, entre a polícia e o Ministério Público, com a consequente retirada de acusações contra uns, para conseguir a condenação de outros" [15]. A ratio por trás desse imperativo de valoração diminuída reside na própria potencialidade do instituto de gerar injustiças.

Por outro lado, como já afirmamos no artigo anterior, não nos parece que a intenção do legislador tivesse sido de fornecer um atalho para contornar a colaboração premiada. Destarte, caso pretenda a autoridade usufruir de eventuais declarações de um dos réus para condenar o outro, ofertando-lhe, em permuta, um benefício, deve recorrer, então, ao regramento da colaboração premiada, e não ao dos acordos de não persecução penal.

Justamente por isso é que defendemos que, em casos de coautoria nos quais não haja proposta de acordo a todos os corréus, se proceda ao desmembramento do processo — submetendo-os a juízes distintos — a fim de não se contaminar a imparcialidade do magistrado em relação àquele corréu para o qual a persecução prosseguirá.

De tudo isso se extrai uma única conclusão: a impossibilidade de valoração das confissões proferidas em sede de acordo de não persecução penal, mesmo que sob as vestes de depoimento (do sujeito celebrante) submetido ao contraditório.

 


[1] STJ, Habeas Corpus nº 756.907/SP, relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, DJ 13/9/2022.

[2] Note-se que, conforme alhures já assentado, na realidade, o que há nos acordos de não persecução penal, é “uma assunção de responsabilidade — sem haver, contudo, reconhecimento de culpa (a não ser em sua dimensão moral), dado que esta pressuporia o devido processo penal —, com a aceitação de cumprimento de condições menos severas do que a sanção penal aplicável ao fato imputável” (Cfr. NICOLAI, Thiago Diniz Barbosa. FERREIRA, Renata Rodrigues de Abreu. O valor das confissões no acordo de não persecução penal. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-08/nicolai-ferreira-valor-confissoes-anpp).

[3] No caso em questão, “a sentença condenou o paciente por falsidade ideológica e reconheceu a autoria delitiva exclusivamente com lastro em elementos produzidos na fase extrajudicial (depoimentos prestados durante o inquérito policial e ao Promotor de Justiça, além de confissão do celebrante de ANPP), não reproduzidos durante a instrução criminal e não submetidos ao devido contraditório, é de rigor reconhecer a insuficiência do standard probatório que autorizaria a condenação”.

[4] Nos termos do acórdão, ter-se-ia deixado de observar a garantia do art. 5º, LV, da Constituição Federal, na medida em que “a defesa não pôde refutar a prova produzida contra o acusado durante a confissão extrajudicial que antecedeu o ANPP, não reproduzida ao longo da instrução criminal. O Juiz deixou de ser assegurar à parte a paridade de tratamento em relação ao Ministério Público. No mais, a sentença faz referência a outros elementos informativos (depoimentos prestados ao Promotor de Justiça e no âmbito de inquérito policial, durante as investigações) que também não possuem valor para formar a convicção judicial”.

[5] No caso, a sentença prolatada contra o paciente estava fundamentada exclusivamente em testemunhos e em confissões extrajudiciais, relacionadas aos acordos de não persecução penal e declarações proferidas em sede de inquérito policial.

[6] Sob o argumento de que, "por ser uma prova extrajudicial, seria retratável em juízo e não tem standard probatório para, exclusivamente, levar à condenação", devendo "ser confrontada com outros elementos que possam confirmá-la ou contraditá-la, durante a instrução criminal".

[7] "Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente".

[8] Como outrora já apontado, quando concebido o instituto, pelo Conselho Nacional do Ministério Público, a intenção do órgão claramente era interpretar desta forma, tanto que, no artigo 18 da Resolução nº 181/2017 do CNMP se exigia que o investigado confessasse "formal e detalhadamente a prática do delito". Igualmente parecia ser esse o objetivo inicial do legislador, cuja redação primeva no projeto contemplava o oferecimento do ANPP "se o investigado tiver confessado circunstanciadamente a prática de infração penal" (Projeto de Lei nº 10.372/2018). Sem embargo, essa dicção não foi promulgada pelo legislador. No meio do caminho foi apresentado um substitutivo do projeto e aprovado o texto: "Tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal". Uma tal alteração não foi despropositada. Ao consultar os vocábulos no dicionário, é possível se notar que a palavra "circunstanciadamente" é definida como advérbio que "abrange todas as circunstâncias e particularidades: circunstanciadamente, analisava as provas do crime". Circunstanciado, por sua vez, significa "exposto minuciosamente; em que há excesso de pormenores; pormenorizado, detalhado"; "que expõe todas as circunstâncias de algo: termo circunstanciado; a narrativa mostrava todos os detalhes bem circunstanciados". Por outo lado, a palavra circunstancialmente é advérbio de circunstancial. A seu turno, circunstancial significa algo "relativo a circunstância, situação ou condição"; "que tem relevância, mas não é extremamente necessário; de caráter secundário"; "(Jurídico) Que de pauta em sinais, deduções ou indícios, e não na evidência concreta do fato: prova circunstancial". "(Gramática) Que exprime as circunstâncias (causa, tempo etc.) ou os elementos secundários de uma ação, subordinados a uma proposição principal: complemento, adjunto circunstancial” (Cfr. NICOLAI, Thiago Diniz Barbosa. FERREIRA, Renata Rodrigues de Abreu. op. cit.).

[9] Isso sem contar a possível questão da preclusão temporal. É que o momento processual para o oferecimento da denúncia e do acordo de não persecução aos corréus é, por norma, simultâneo. Questão, esta, no entanto, passível de ser contornada, bastando que o Ministério Público celebre o ANPP antes de oferecer a denúncia contra o(s) outro(s) corréu(s).

[10] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal, 6ª ed., São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018, p. 483.

[11] Previsto no art. 203, CPP ("A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade").

[12] AP nº 470 AgR-sétimo/MG, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe 2/10/2009.

[13] "Art. 4º. […] § 14. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade".

[14] Exige-se a regra da corroboração.

[15] BADARÓ, Gustavo Henrique. Op. cit., p. 476.

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