Seguros Contemporâneos

Seguros para os riscos impostos pelo uso da inteligência artificial

Autor

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

13 de outubro de 2022, 8h00

1. Introdução
Na posição de destacado instrumento de proteção dos segurados, o setor de seguros acompanha o desenvolvimento da sociedade. Se, por exemplo, os seguros marítimos floresceram a partir do período das grandes navegações do século XIV, a industrialização que marcou os séculos seguintes ampliou consideravelmente os seguros terrestres (e.g., os seguros de incêndio e de responsabilidade civil), e a sociedade da informação ora vivenciada tem colaborado para que os seguros cibernéticos sejam cada vez mais vitais [1].

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À luz dessas considerações, convém questionar: qual será o próximo grande passo do setor? Seria a disponibilização de um seguro em face dos riscos da inteligência artificial (IA) [2]? Esses riscos já estariam cobertos pelas apólices comercializadas atualmente no mercado ou seria necessária a criação de novas modalidades securitárias para protegê-los? Mais: é possível assegurar riscos ainda não muito bem avaliados, que têm tanto a sua frequência quanto a sua severidade desconhecidas, como os riscos oriundos da IA?

Muito já se escreveu sobre os impactos da IA nos seguros privados [3]. O presente artigo visa a examinar uma faceta diversa e praticamente inexplorada do tema, qual seja, se — e em que medida — os seguros podem auxiliar na proteção financeira dos riscos causados pelo emprego da IA.

Certamente um dos principais desafios para setor de seguros neste século será o adequado endereçamento desse tema — que, em igual medida, se trata de uma carência da sociedade e uma grande oportunidade para os seguradores.

2. Aproximação e principais contornos do tema
Não há dúvidas de que estamos em direção a uma era movida pela IA. Conforme mencionado por Martin Eling: "Há um consenso crescente de que a inteligência artificial (IA) transformará fundamentalmente nossa economia e nossa sociedade. Uma ampla gama de aplicações comerciais está sendo adotada em muitas indústrias. Entre elas estão a detecção de anomalias (por exemplo, para mitigação de fraudes), reconhecimento de imagem (v.g., para segurança pública), reconhecimento de fala e geração de linguagem natural (por exemplo, para assistentes virtuais), motores de recomendação (v.g., para robo-advice) e sistemas automatizados de tomada de decisão (por exemplo, para aplicações de fluxos de trabalho)" [4].

Na sequência, o autor complementa: "Embora os benefícios potenciais da IA sejam enormes, as preocupações também são substanciais. Existem receios quanto à discriminação potencial, segurança, privacidade, ética e responsabilização por resultados indesejados. Há preocupações ainda de que a IA usurpará a humanidade e colocará em perigo valores sociais caros" [5].

De fato, não obstante as inúmeras vantagens provenientes do emprego de mecanismos dotados de IA, não se pode ignorar que vários são os riscos presentes no seu uso.

Em didática taxonomia dos riscos oriundos da IA, Martin Eling elenca os seguintes: riscos de desempenho (erros, vieses, opacidades, ausências de "explicabilidade" e instabilidade de desempenho das IAs), riscos de segurança (intrusão cibernética e não resguardo à privacidade), riscos de controle (incapacidade de controle da IA malévola), riscos sociais (v.g., proliferação de armas autônomas e "divisão da inteligência", com inequidades entre grupos devidas ao diferente nível de acesso aos dados/algoritmos/hardwares capazes de promover a saúde, a prosperidade e a segurança), riscos econômicos (perda de empregos, responsabilização civil e danos à reputação) e riscos éticos (falta de "valores" e desalinhamento entre valores/objetivos) [6].

Apesar de tais riscos estarem mapeados, a verdade é que pouco se sabe acerca de sua respectiva frequência e severidade, bem como a maneira pela qual eles se concretizariam em diferentes contextos. Faltam certezas, ainda, sobre o modelo e a extensão da responsabilidade civil dos produtores e dos proprietários das IAs, no Brasil e alhures (subjetiva, objetiva ou até mesmo uma terceira via?). Tudo isso a colaborar, a um só tempo, tanto para a necessidade de modelos securitários capazes de garanti-los, quanto para os nada desprezíveis desafios de implementá-los.

3. Setor de seguros e IA: respostas insuficientes na quadra atual
Como se sabe, por meio dos seguros privados cria-se um fundo mutual gerido pela seguradora no qual o risco é pulverizado entre as partes que delem integram, com cada segurado pagando um valor denominado prêmio, equivalente ao risco por ele inserido no fundo. Na ocorrência de um sinistro coberto, é provida pela seguradora uma indenização ao segurado ou a um terceiro lesado, respeitados os limites contratuais.

Ao se examinar a ligação entre os riscos postos pela utilização da IA e o universo dos seguros, deve restar claro ao estudioso que não há atualmente a comercialização de um seguro próprio para cobrir aqueles. Significa isso dizer que, a depender do contexto, uma modalidade tradicional de seguro eventualmente poderá se aplicar ou não, pois, conforme mencionado, não há hoje um seguro específico para riscos oriundos da IA.

Deve ficar claro também que, além da responsabilidade civil em si, outras coberturas poderão ter grande importância no tema sob análise, como as coberturas de interrupção de negócios, vazamento de dados, danos reputacionais, lucros cessantes e danos a direitos da personalidade de terceiros. Mas de qual seguro efetivamente estar-se-ia tratando aqui?

Depende. Por exemplo, para os administradores de companhias que fizerem um ato de gestão baseado na tomada de decisão de um algoritmo movido pela IA, poder-se-ia cogitar na sua cobertura por meio de um seguro de diretores e administradores (conhecido como seguro D&O). Todavia, se como resultado dessa decisão automatizada for gerado um dano ambiental, em vez de um seguro D&O, a depender da situação a apólice aplicável poderá ser a de um seguro ambiental [7].

Naturalmente, o seguro de automóvel é a modalidade securitária mais alinhada com a cobertura de danos causados por automóveis guiados integralmente ou parcialmente pela IA. Nesse particular, há notícias de uma seguradora britânica que expressamente cobre os riscos de carros autônomos [8], fato esse que ainda não se vê no mercado nacional.

Por outro lado, se um médico cometer uma falha durante uma cirurgia na qual ele se vale de uma tecnologia de IA e que resulte em danos ao paciente, a apólice eventualmente aplicável será a de um seguro de responsabilidade civil profissional (seguro E&O).

Embora geralmente se cogite da aplicação dos seguros cibernéticos para os danos oriundos da IA — e, em casos de vazamento de dados e interrupção de negócios, eles poderão mesmo oferecer alguma proteção —, em muitas oportunidades não será esse o caso. À guisa de ilustração, é comum que tal modalidade securitária não dê cobertura para danos corporais e danos à propriedade em geral [9].

Mesmo nos outros exemplos citados anteriormente, diante da ausência de expressa cobertura nas apólices atuais e do grau diverso de risco envolvido quando um segurado utilize um sistema de IA, é bastante questionável se, na quadra atual, haveria cobertura para esses casos. Poder-se-ia até mesmo afirmar que, em regra, não haverá cobertura.

Diante desse contexto, é preciso refletir sobre os próximos passos do setor, conforme será demonstrado a seguir.

4. Setor de seguros e IA: possíveis respostas para o futuro
Entre as possíveis respostas para o endereçamento do tema no futuro, pode-se cogitar algumas medidas, como: 1) a ampliação de coberturas para os seguros atuais (que passariam a abarcar expressamente os riscos causados pela IA); 2) a criação e comercialização de seguros facultativos específicos para o uso de IA, a serem contratados por produtores e/ou proprietários; 3) a instituição de seguros obrigatórios para produtores e/ou proprietários; e 4) a criação dos designados fundos de compensação [10].

Extravasa o horizonte do presente artigo examinar em detalhes cada uma dessas alternativas. Por ser muito comum entre os cultores da responsabilidade civil a defesa pela via da implementação de seguros obrigatórios, convém fazer uma breve nota sobre esse ponto.

Se por um lado os seguros obrigatórios têm o benefício de cobrir em certa medida o risco de insolvência dos fornecedores e garantir alguma proteção aos lesados, por outro, ela pode desaguar em um desincentivo para o uso responsável da IA (aumento do designado "risco moral") e uma afronta à autonomia privada das partes. Não necessariamente, diga-se de passagem, haveria, em um primeiro momento, seguradoras a cobrir tais riscos no mercado nacional, o que poderia desacelerar o avanço tecnológico; sem dizer ainda que tais seguros costumam ter uma cobertura baixa, incapaz de compensar efetivamente eventuais danos causados pela IA.

O tema, logo se nota, é complexo e repleto de ramificações, exigindo crescente reflexão por parte da doutrina e dos reguladores.

5. Considerações finais
O presente artigo buscou tirar da sombra aspectos essenciais sobre o elo entre os contratos de seguros e os riscos oriundo do uso da IA. Mais do que respostas, pretendeu-se expor o seu estado da arte e convidar o leitor a participar desse importante debate.

Como conclusões incipientes na matéria, pode-se afirmar que:

1) os seguradores, até o momento, estão mais engajados em implementar a IA em suas cadeias de seguros do que em forjar novas modalidades securitárias em face dos riscos da IA;

2) os seguradores serão essenciais para o crescente uso da IA na sociedade, tal qual ocorreu em outras épocas e modalidades securitárias. Nesse particular, cabe realçar que, além da cobertura dos sinistros em si, que deverá ocorrer a partir dos próximos anos, os seguros serão importantes mecanismos para a avaliação, sinalização e controle do risco por parte dos agentes econômicos;

3) algumas apólices atualmente disponíveis no mercado podem oferecer proteções laterais aos riscos oriundos da IA, conforme os seguros cibernéticos e os seguros de lucros cessantes;

4) a correta alocação da apólice aplicável ao sinistro afigura-se tarefa complexa, especialmente no corrente estágio. Bem-vistas as coisas, existem vários pontos de interseção entre as distintas modalidades securitárias e os riscos no uso da IA, de modo que apenas à luz do caso concreto será possível fazer a alocação adequada;

5) a definição mínima do modelo de responsabilidade civil utilizado para a IA será importante para que os seguradores deem esse próximo passo na criação de um seguro específico contra riscos da IA ou façam uma expansão de cobertura nas apólices atuais para expressamente garantirem pelo menos alguns desses riscos. Quando for caso, os seguradores provavelmente terão que negociar tal ampliação de cobertura junto aos resseguradores;

6) nesse meio tempo, é provável que surjam exclusões de coberturas ou coberturas adicionais, aplicáveis mediante o recebimento de prêmio próprio pelos seguradores;

7) há tendência de aumento de litigiosidade entre segurados e seguradores à medida que o emprego da IA se popularize e não reste claro nas apólices a previsão, seja de sua cobertura, seja de sua exclusão;

8) os seguros — obrigatórios ou facultativos — podem auxiliar na mitigação dos riscos da IA na sociedade. Mas eles não darão respostas para todos os riscos envolvidos; e

9) para além dos seguros, devem ser pensados outros instrumentos e formas de se garantir a conjugação entre os avanços tecnológicos e sociais gerados pelo emprego da IA e a essencial proteção dos lesados.

 


[1] Cfr. JUNQUEIRA, Thiago; GOLDBERG, Ilan. Tendências para o setor de (res)seguros em 2022 (Parte 1). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-20/seguros-contemporaneos-tendencias-setor-resseguros-2022-parte. Acesso em: 8/10/2022.

[2] De acordo com definição fornecida pelo grupo independente de peritos europeus de alto nível sobre a inteligência artificial, os sistemas de IA são sistemas de: "(…) software (e eventualmente também de hardware) concebidos por seres humanos, que, tendo recebido um objetivo complexo, atuam na dimensão física ou digital percepcionando o seu ambiente mediante a aquisição de dados, interpretando os dados estruturados ou não estruturados recolhidos, raciocinando sobre o conhecimento ou processando as informações resultantes desses dados e decidindo as melhores ações a adotar para atingir o objetivo estabelecido. Os sistemas de IA podem utilizar regras simbólicas ou aprender um modelo numérico, bem como adaptar o seu comportamento mediante uma análise do modo como o ambiente foi afetado pelas suas ações anteriores". GRUPO INDEPENDENTE DE PERITOS DE ALTO NÍVEL SOBRE A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. Orientações éticas para uma IA de confiança. Bruxelas: Comissão Europeia, 2019. p. 47, em que se pode ler ainda: "Enquanto disciplina científica, a IA inclui diversas abordagens e técnicas, tais como a aprendizagem automática (de que a aprendizagem profunda e a aprendizagem por reforço são exemplos específicos), o raciocínio automático (que inclui o planeamento, a programação, a representação do conhecimento e o raciocínio, a pesquisa e a otimização) e a robótica (que inclui o controle, a percepção, os sensores e atuadores, bem como a integração de todas as outras técnicas em sistemas ciberfísicos)".

[3] Sobre o tema, seja consentido remeter a JUNQUEIRA, Thiago. AI in the insurance industry: opportunities and risks. In: COPO, Abel Veiga; MUÑOS, Miguel Martínez (Coords). Seguro de personas e inteligencia artificial. Cizur Menor: Thomson Reuters, 2022.

[4] ELING, Martin. How insurance can mitigate AI risks. Disponível em: https://www.brookings.edu/research/howinsurancecanmitigate-ai-risks/. (Tradução livre). Acesso em: 8/10/2022.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Sobre o problema da alocação, consulte-se: GOLDBERG, Ilan. A propósito da silent cyber coverage. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-30/seguros-contemporaneos-proposito-silent-cyber-coverage. Acesso em: 9/10/2022.

[8] The Guardian. Insurer launches UK's 'first driverless car policy. Disponível em: https://www.theguardian.com/business/2016/jun/07/uk-driverless-car-insurance-policy-adrian-flux. Acesso em: 10/10/2022. Registre-se, por oportuno, que em virtude de uma série de fatores, como condições das estradas e falta de uma internet confiável, no Brasil a utilização de carros autônomos e semiautônomos ainda está engatinhando. Mesmo em outros países, ainda são poucos utilizados os carros autônomos (com níveis 4 e 5). O cenário deve se alterar radicalmente nas próximas décadas.

[9] KUMAR, Ram Shankar Siva; NAGLE, Frank. The case for AI Insurance. Disponível em: https://hbr.org/2020/04/the-case-for-ai-insurance. Acesso em: 8/10/2022.

[10] Para o exame de alguns desses instrumentos pela literatura pátria, confira-se: ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Tecnologias emergentes: seguros e fundos de compensação. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-22/seguros-contemporaneos-tecnologias-emergentes-seguros-fundos-compensacao. Acesso em: 8/10/2022; DIAS, Daniel. Implementação de seguro obrigatório de responsabilidade civil no contexto da inteligência artificial. In: O Direito Civil na era da Inteligência Artificial. TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (Coords). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. pp. 651-662; e MEDON, Filipe. Inteligência artificial e responsabilidade civil: autonomia, riscos e solidariedade, 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2022.

Autores

  • é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em ciências jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra, professor convidado da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros, diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil, advogado e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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