Seguros Contemporâneos

Tendências para o setor de (res)seguros em 2022 (Parte 2)

Autores

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

3 de fevereiro de 2022, 8h00

1) Introdução
Na primeira parte desta coluna, examinamos três tendências para o setor de (res)seguros em 2022: 1) posicionamento mais incisivo do setor para questões ASG; 2) surgimento de novas coberturas e modalidades de seguros antes inimagináveis; e 3) emprego do legal design e do visual law pelos seguradores.

Spacca
Nesta semana trataremos das três tendências pendentes de análise, quais sejam: 1) desenvolvimento do open insurance; 2) contratempos com questões de privacidade e proteção de dados dos consumidores de seguros; e 3) procura pelo balanceamento entre o avançar da tecnologia e a manutenção do toque humano.

2.1) Desenvolvimento do open insurance
O open insurance, tal como o open banking, é um sistema que permite o compartilhamento padronizado de alguns dados de clientes, nesse caso entre empresas do ramo de seguros, por meio de sistemas integrados, formando o que tem sido qualificado como open finance — sistema financeiro aberto — e que visa a beneficiar os consumidores, proporcionando um maior leque de opções, experiências customizadas, inovação e produtos sob medida [1].

Muito se debate atualmente sobre qual será efetivamente o futuro do open insurance no Brasil. Embora a sua primeira fase tenha se iniciado em dezembro de 2021, não se sabe se o cronograma previsto será mantido. Uma pista foi dada pelo superintendente da Susep, Alexandre Camillo, em recente entrevista: "Vamos manter o open insurance, não tem como querer refrear, esse movimento não é somente do Brasil, tem similares mundo afora, apenas quero, se necessário, alguns ajustes que façam com que os atores do mercado sejam aderentes ao processo e ajudar na consolidação do open insurance" [2].

Spacca
É curioso notar que o open insurance vem despertando amor e ódio. Muito já se escreveu sobre os seus aspectos positivos [3], estando agora sob escrutínio alguns dos seus desafios, como não fazer com que os consumidores sejam seduzidos por preços mais baixos de seguradores concorrentes, mas tendo como pano de fundo produtos algo distintos. Nesse particular, os deveres de informação por parte dos seguradores e dos próprios corretores — que, eventualmente, terão de alertar que o preço mais convidativo justifica-se pela cobertura mais restrita do risco segurado — terão papéis de destaque.

Em síntese essencial, ainda é cedo para cravar o destino do open insurance no país. Entre as principais variáveis, pode-se destacar a real aderência dos consumidores e os próximos passos dos órgãos reguladores.

Diante dos aspectos positivos envoltos, porém, no geral as perspectivas para 2022 são favoráveis. Esse é mais um motivo pelo qual a tendência exposta a seguir deve ser levada a sério pelo setor.

2.2) Contratempos com questões de privacidade e proteção de dados dos consumidores de seguros
Em maio de 2021, a Lemonade, talvez a mais importante insurtech no cenário global, postou em seu Twitter: "Por exemplo, quando os usuários fazem o aviso de sinistro, eles gravam um vídeo em seu celular e explicam o que aconteceu. A nossa IA analisa cuidadosamente esses vídeos em busca de sinais de fraude. Ela consegue captar sinais não-verbais que seguradoras tradicionais não conseguem, uma vez que não utilizam processos de regulação de sinistros digitais. Isto nos ajuda, em última análise, a reduzir nossos índices de sinistralidade (também conhecido como o valor que pagamos em sinistros vs. o valor que podemos receber) e nossos custos operacionais gerais".

Em razão da repercussão negativa do post (vários internautas questionaram se a utilização dessa inteligência artificial não seria discriminatória), a Lemonade apagou-o e publicou um artigo sobre o tema no seu blog, onde pode-se ler: "O termo sinais não-verbais foi uma má escolha de palavras para descrever a tecnologia de reconhecimento facial que utilizamos para sinalizar reivindicações de sinistros apresentadas pela mesma pessoa sob identidades diferentes. Estas reivindicações específicas depois são analisadas por nossos investigadores humanos. Tal confusão levou a uma propagação de inverdades e suposições incorretas, por isso estamos escrevendo para esclarecer e confirmar que nossos usuários não são tratados de forma diferente com base em sua aparência, comportamento, ou qualquer característica pessoal/física" [4].

O pronunciamento da insurtech não convenceu a todos acerca da legitimidade do referido tratamento de dados. Com efeito, desde julho de 2021, tem-se notícia de pelo menos uma ação coletiva ajuizada em face da Lemonade sob o argumento de tratamento de dados biométricos sem o consentimento por escrito do titular de dados, requisito obrigatório à luz do Illinois Biometric Information Privacy Act [5].

Ultrapassa a presente abordagem o tema da discriminação e das possíveis mitigações de vários direitos fundamentais dos consumidores oriundas do tratamento automatizado dos dados pelos seguradores [6]. Convém ressaltar, todavia, que esse tópico é apenas a ponta do iceberg.

Por exemplo, na Europa, algumas seguradoras já foram alvo de multas pelas autoridades de proteção de dados em virtude de: 1) não estarem em conformidade com os princípios gerais de processamento de dados (Holanda e Finlândia); 2) não cumprirem suficientemente as obrigações de informação relacionadas ao tratamento de dados (Croácia); e 3) não implementarem medidas técnicas e organizacionais suficientes para garantir a segurança de informação (Alemanha e Luxemburgo, entre outros países) [7].

Salta aos olhos, portanto, que o "cartão amarelo" já foi apresentado às seguradoras. Em um negócio que é lastreado na confiança [8], como ocorre no mercado securitário, parece claro que não podem ser desconsiderados aspectos reputacionais ligados ao tratamento inadequado dos dados, sob pena de o "cartão vermelho" vir em forma de graves danos midiáticos e comerciais.

Além do amadurecimento da cultura de proteção de dados e privacidade pelas empresas, está na ordem do dia a necessidade de aumento da transparência e accountability dos seguradores em relação aos dados que são coletados e aos modos de sua utilização (controle dos inputs e dos outputs).

No contexto brasileiro, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709, de 2018) estatui alguns instrumentos para compelir o tratamento adequado de dados pelos seguradores, como: 1) a necessidade de base legal para o tratamento de dados e a restrição ao uso dos dados sensíveis (categoria na qual se inserem os dados biométricos); 2) a consagração de direitos individuais aos titulares de dados — v.g., direito de acesso aos dados tratados e o direito à explicação e à revisão das decisões automatizadas; 3) a imperiosidade, em alguns casos, de feitura de um relatório de impacto à proteção de dados pessoais; 4) a possibilidade de auditoria para verificação de aspectos discriminatórios nos tratamentos automatizados de dados; e 5) a necessidade de observância da noção de privacidade por design.

Caso não haja o cumprimento dessas e outras balizas legais aplicáveis, não será surpreendente se ainda em 2022 surgirem notícias sobre a punição de seguradoras e outros importantes players do mercado que se valem do emprego da inteligência artificial para a tomada de decisões que impactem na vida dos titulares de dados.

Além do balanceamento entre os riscos e benefícios das novas tecnologias — que inclui a promoção de medidas como a "explanibilidade", a "auditabilidade" e a transparência dos algoritmos utilizados e a intervenção de seres humanos na revisão das decisões automatizadas —, a preservação do toque humano na relação securitária é tendência que não pode ser descurada, conforme demonstra-se a seguir.

2.3) Procura pelo balanceamento entre o avançar da tecnologia e a manutenção do toque humano
Há um ditado que resume bem a tendência anunciada acima: a tecnologia deve ser disponibilizada quando o cliente quer, e o toque pessoal, quando o cliente precisa [9]. De fato, seria tudo, menos satisfatório, impossibilitar o contato do segurado com um atendente humano em um momento de necessidade, como geralmente ocorre após o sinistro.

Se no período do surgimento das insurtechs falava-se que a profissão do corretor de seguros estaria fadada a sumir, uma vez que a contratação dos seguros seria feita de forma direta, hoje há ampla convergência no sentido de que na verdade ele terá "apenas" que se reinventar, de modo a continuar oferecendo valor para o cliente.

Salvo em algumas modalidades de seguros mais simples, como os seguros de residência e de celular, em que a atuação do corretor possa se fazer pouco útil, diante da complexidade dos produtos e da diversidade de coberturas disponibilizadas por diferentes seguradoras, o auxílio do intermediário continuará sendo essencial para que o consumidor consiga contratar e postular a indenização adequada.

Esse é apenas um exemplo para demonstrar que, em vez de totalmente digitalizado, o futuro do seguro terá uma fórmula híbrida, conforme lição de Ken Gregg: "Para o futuro da indústria de seguros, o poder reside em combinar os melhores aspectos tanto das instituições tradicionais quanto das empresas movidas pela tecnologia. Os agentes de seguros devem repensar sua relação com a tecnologia e aproveitá-la para fazer melhor o seu trabalho, mantendo-se focados nos elementos mais humanos do seguro — transmitindo o know-how da indústria e as conexões de network para obter o melhor valor e serviço para os clientes" [10].

Em sentido convergente, confira-se o seguinte trecho de relatório sobre as perspectivas para o setor de seguros: "Embora a digitalização seja uma prioridade, as seguradoras também não devem negligenciar o valor do toque humano, dadas as complexidades do produto e do processo inerentes a todo o ciclo de vida do seguro. Uma mudança para o 'canal correto' — pensando estrategicamente sobre quais interações de seguros requerem intervenção digital versus humana para criar a experiência ideal para cada consumidor — deve orientar as estratégias de distribuição e serviço das seguradoras" [11].

Tendo em vista as especificidades do produto (inclusive no que se refere ao uso de expressões técnicas), principalmente nas fases de subscrição e regulação do sinistro, o toque humano continuará sendo vital. Em 2022 e nos próximos anos, o ajuste fino entre tais variáveis será um dos grandes desafios a cargo dos incumbentes e entrantes do setor de seguros.


[1] A propósito dos principais contornos e desafios do open insurance, seja consentido remeter a GOLDBERG, Ilan; BERNARDES, Guilherme. Aspectos essenciais do open insurance no Brasil. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-05/seguros-contemporaneos-aspectos-essenciais-open-insurance-brasil. Advirta-se, por oportuno, que o acesso ao referido endereço eletrônico, bem como aos demais, mencionados em seguida, ocorreram pela última vez em 1/2/2022. Sublinhe-se, outrossim, que os trechos originários de idiomas estrangeiros e transcritos no presente estudo foram livremente traduzidos pelos autores.

[3] A Eiopa analisa as vantagens do open insurance por três diferentes perspectivas, destacando que: 1) para as empresas, ele oferece inovação, eficiência e colaboração; 2) para os consumidores, proporciona uma visão holística das apólices, facilitando a mutabilidade de serviços e oferecendo produtos customizados; e 3) para os supervisores, traz acesso em tempo real aos dados com capacidade de supervisão efetiva e tecnologia que facilita a regulação. (Cfr.: https://www.eiopa.europa.eu/sites/default/files/publications/consultations/open-insurance-discussion-paper-28-01-2021.pdf).

[4] Lemonade Blog. Lemonade's Claim Automation. Disponível em: https://www.lemonade.com/blog/lemonades-claim-automation/. Sobre a repercussão negativa do post, confira-se: Forbes. Insurance Unicorn Lemonade Backtracks Comments About Its AI After Accusations Of Discrimination. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/carlieporterfield/2021/05/26/insurance-unicorn-lemonade-backtracks-comments-about-its-ai-after-accusations-of-discrimination/?sh=7c71991b285f.

[5] A petição inicial da referida Class Action (Jones vs. Lemonade) pode ser acessada em: https://www.classaction.org/media/jones-et-al-v-lemonade-inc.pdf.

[6] Confira-se, nesse particular: JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.

[8] "A confiança no passado era frequentemente expressa por meio da arquitetura (grandes edifícios sólidos), enquanto hoje essa solidez é muitas vezes transmitida através de dados e analytics. As insurtechs parecem bastante rebeldes, buscando confiança através de uma narrativa de serem modernas e inteligentes. No entanto, é uma narrativa que às vezes pode fazê-las tropeçar, criando tempestades nas mídias sociais sobre a lisura do que está sendo feito com os seus engenhosos e poderosos algoritmos" MINTY, Duncan. Thoughts on the Future of Insurance. (https://ethicsandinsurance.info/2021/11/24/future-of-insurance/).

[9] MATHISEN, RYAN. Why Predictions That InsurTech Would Replace Agents Have Flopped. Disponível em: https://www.iamagazine.com/magazine/issues/2022/january/why-predictions-that-insurtech-would-replace-agents-have-flopped?hss_channel=tw-234791496.

[10] GREGG, Ken. The rise of InsurTech does not mean the fall of insurance agents. (https://www.propertycasualty360.com/2021/08/31/the-rise-of-insurtech-does-not-mean-the-fall-of-insurance-agents/). Na sequência, o autor arremata: "Existe um meio-termo entre as instituições de seguro tradicionais e as sagazes insurtechs interessadas em disruptar. As circunstâncias de vida que requerem apólices de seguro não são leves ou simples. É importante que um elemento de toque humano seja parte da fórmula. A tecnologia certamente pode ajudar a tornar a jornada do cliente mais fluida, mas os agentes de seguros estão aqui para ficar".

Autores

  • é doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra, professor da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros, diretor de relações internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil e sócio do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.

  • é advogado e parecerista, doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Ucam, professor convidado da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento, da Emerj e da Escola de Negócios e Seguros e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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