Garantias do Consumo

"Pacote do Veneno" e as orientações da ONU em matéria de produção sustentável

Autores

  • Luciane Klein Vieira

    é doutora em Direito Internacional pela Universidad de Buenos Aires (UBA) professora do programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e diretora para o Mercosul do Brasilcon.

  • Victória Maria Frainer

    é mestranda bolsista Capes/Proex em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e advogada.

12 de outubro de 2022, 8h00

A defesa dos consumidores conta, desde 1985, com um instrumento internacional de soft law, de grande potencial, que orienta a formulação de ações, legislação e políticas públicas nos Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU): as Diretrizes das Nações Unidas de Proteção ao Consumidor. O documento foi atualizado por primeira vez em 1999, oportunidade em que o consumo sustentável foi incluído no rol de objetivos e metas a serem perseguidos, objetivando o suprimento das necessidades de bens e serviços das gerações presentes e futuras, de modo tal que seja sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental. Em 2015, as diretrizes foram revisadas novamente, para contemplar as modificações ocorridas no mundo do consumo, sobretudo aquelas derivadas do aumento do comércio eletrônico, do superendividamento do consumidor e dos impactos no meio ambiente, ocasião que teve importante atuação brasileira no processo de revisão [1]. No mesmo ano, os Estados membros da ONU adotaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, um ambicioso e necessário plano de ação, no qual um de seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é a mudança nos padrões atuais de produção e consumo (ODS 12).

Sobre o tema, cabe destacar que o Brasil é reconhecido por ter uma das legislações consumeristas mais avançadas do mundo, no sentido da implementação das orientações das Nações Unidas. Contudo, algumas ações ultimamente adotadas pelo país colocam em dúvida se, de fato, a saúde do consumidor, o seu direito à informação (clara, verídica e acessível), além do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado estão sendo observados [2] conforme orienta a organização internacional em referência.

Por exemplo, a título de informação, até junho de 2022, o Brasil já havia aprovado o registro de 326 agrotóxicos, componentes e afins, conforme dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) [3]. Para fins de comparação, no ano de 2015 foram autorizados somente 139 registros, já em 2021, o número foi para 562, demonstrando o constante aumento das concessões.

Aliado a esse preocupante cenário, após 20 anos tramitando na Câmara dos Deputados, o texto-base do Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002 foi finalmente aprovado, em 9 de fevereiro de 2022, em regime de urgência [4]. A proposta original partiu do Senado Federal (nº 526/1999), iniciativa do senador Blairo Maggi, sendo que o PL retornou para pauta após um requerimento de urgência apresentado em 16 de dezembro de 2021 pelo deputado Luiz Nishimori (PL/PR), também relator do projeto. O texto agora tramita sob o número 1.459/2022, no Senado Federal.

Apelidado de "Pacote do Veneno", vez que tramita com 46 outras proposições apensadas, o texto aprovado foi mais ambicioso que a proposta inicial, na medida em que pretende revogar, entre outros dispositivos, a principal norma do país sobre a matéria, a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, almejando tornar-se um novo marco regulatório. Assim, conforme a ementa, o PL "dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e a rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e das embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de pesticidas, de produtos de controle ambiental e afins (…)" [5]. É estruturado em 16 capítulos, dispostos da forma que segue: Capítulo I – Disposições Preliminares (artigos 1º a 3º); Capítulo II – Dos Órgãos Registrantes (artigo 4º); Capítulo III – Das Competências (artigos 5º a 11); Capítulo IV – Dos Procedimentos de Registro (artigos 12 a 25); Capítulo V – Das Alterações, da Reanálise e da Análise dos Riscos de Pesticidas e de Produtos de Controle Ambiental (artigos 26 a 33); Capítulo VI – Da Repressão às Infrações Contra a Ordem Econômica (artigos 34 e 35); Capítulo VII – Do Controle de Qualidade (artigos 36 a 38); Capítulo VIII – Da Comercialização, das Embalagens, dos Rótulos e das Bulas (artigos 39 a 45); Capítulo IX – Do Armazenamento e do Transporte (artigos 46 e 47); Capítulo X – Da Inspeção e da Fiscalização (artigo 48); Capítulo XI – Da Responsabilidade Civil e Administrativa (artigo 49 a 55); Capítulo XII – Dos Crimes e das Penas (artigos 56 e 57); Capítulo XIII – Do Sistema Unificado de Informação, Petição e Avaliação Eletrônica (artigo 58); Capítulo XIV – Da Criação da Taxa de Avaliação e de Registro (artigo 59); Capítulo XV – Da Destinação dos Valores Arrecadados com a Taxa de Avaliação e de Registro (artigos 60 a 62); Capítulo XVI – Disposições Finais e Transitórias (artigos 63 a 67).

Entre as preocupações que circundam o PL estão os riscos para o meio ambiente, a saúde daqueles que manipulam os agrotóxicos, além do acesso à informação e a saúde dos consumidores que como destinatários finais consomem os alimentos produzidos a base de agrotóxicos.

Entre as principais mudanças, sem a intenção de esgotar a reflexão, cita-se a troca do termo "agrotóxico" por "pesticida" e "produto de controle ambiental". Nesse sentido, o primeiro refere-se aos produtos a serem utilizados em plantações, pastagens ou em florestas plantadas, enquanto o segundo refere-se aos produtos destinados a florestas nativas. Na Lei nº 7.802/89, por outro lado, a divisão não existia e todos os produtos eram tidos como agrotóxicos.

Com isso, se antes a autorização para uso era dos órgãos federais responsáveis pelos setores de agricultura, saúde e meio ambiente (art. 8º do Decreto nº 4.047/02), com o PL, os pesticidas tornam-se objeto de decisão do Mapa, enquanto os produtos de controle ambiental são do órgão federal responsável pelo setor do meio ambiente. A mudança gerou preocupação [6] diante da diminuição do poder decisório e participação do Ministério da Saúde e de órgãos reguladores como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Outra proposição do "Pacote do Veneno" envolve as condutas das autoridades competentes ante o alerta ou desaconselhamento do uso de agrotóxico por organizações internacionais das quais o país faça parte. A Lei nº 7.802/89 determina o dever de serem tomadas as providências referidas, sob pena de responsabilidade. Já o texto do PL é confuso e um tanto permissivo, o que se denota a partir da leitura do art. 28, conforme o qual "o órgão federal registrante poderá instaurar procedimento para reanálise do produto", enquanto no §14º do artigo 3º, a autoridade competente deverá "tomar providências de reanálise dos riscos considerando aspectos econômicos e fitossanitários e a possibilidade de uso de produtos substitutos", ambos sem prever algum tipo de penalização em caso de inércia. Um detalhe importante quanto ao procedimento de reanálise, o PL dispõe que enquanto não está finalizado, os pedidos de registros que usam o mesmo ingrediente ativo em pesticidas (§2º do artigo 29) ou em produtos de controle ambiental (§2º do artigo 30) poderão ser deferidos, uma medida que pode ser tomada à revelia dos impactos ambientais e da própria saúde do consumidor.

Ainda, as razões para a vedação da importação e da produção de determinados agrotóxicos passariam a contar com uma cláusula aberta derivada da expressão "riscos inaceitáveis", na medida em que o PL não especifica quais seriam estes riscos ou o que se entenderia como aceitável. Atualmente, a legislação define claramente que todos os agrotóxicos com características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas e que repercutam em distúrbios hormonais ou em danos ao aparelho reprodutor serão proibidos.

Em relação aos prazos de conclusão para análise do requerimento de registro, cabe destacar que antes não existia um prazo fixo para manifestação dos órgãos federais, o que mudou desde a Lei nº 13.874/19 e o Decreto nº 10.178/19 que a regulamenta, que prevê como regra o prazo máximo de 60 dias para conclusão do processo administrativo e decisão sobre aprovação ou não do registro [7]. O PL, por sua vez, dispõe que a conclusão da análise do requerimento do registro deve observar uma série de prazos máximos (§1º, do artigo 3º), sendo o maior deles de 24 meses, sob pena de responsabilidade (§4º do artigo 12). Por fim, na ausência de manifestação conclusiva do órgão registrante e diante da circunstância de ter o solicitante cumprido com os requisitos da lei, será expedida uma autorização temporária ou um registro especial temporário enquanto se aguarda a decisão final, outra medida de teor duvidoso do projeto, que permite o uso de um agrotóxico sem a chancela definitiva do órgão competente, revelando uma falta de comprometimento com os danos presentes e futuros que possivelmente possam vir a ser causados no meio ambiente e na saúde do consumidor.

Portanto, percebe-se que a atuação brasileira dos últimos anos, no que se refere ao fomento da produção e do consumo sustentável, parece estar na contramão das orientações das Nações Unidas, e distante de uma agricultura alternativa, que preze pela redução do uso de agrotóxicos, medida que inclusive é uma exigência para o ingresso de produtos brasileiros em mercados estrangeiros, a exemplo dos requerimentos provenientes dos países europeus. Ao contrário, parece que estamos tomando medidas cada vez mais concretas no sentido da crescente liberalização do uso de produtos químicos que colocam em risco a nossa própria saúde, a saúde do povo brasileiro, na condição de consumidor e que contribuem para o aumento das emissões de gases de efeito estufa e outros poluentes que terminam por agredir o meio ambiente e por incrementar o aquecimento global. Estas e outras reflexões deveriam pelo menos estar presentes no processo de tomada de decisão no âmbito do Congresso Nacional, a fim de impedir a aprovação do projeto de lei que tramita com o pseudônimo de "Pacote do Veneno", como medida de saúde coletiva em prol da preservação ambiental.

 


[1] COM participação do Brasil, ONU aprova novas diretrizes para relações de consumo. Revista Consultor Jurídico. 24 dez. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-dez-24/onu-aprova-novas-diretrizes-melhorar-relacoes-consumo. Acesso em: 19 jul. 2022.; CIPRIANO, Ana Cândido Muniz. A defesa do consumidor ganha importância em âmbito internacional. Revista Consultor Jurídico. 31 jul. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-31/garantias-consumo-defesa-consumidor-ganha-importancia-ambito-internacional. Acesso em: 19 jul. 2022.

[2] VIEIRA, Luciane Klein; FRAINER, Victória Maria. A implementação das Diretrizes das Nações Unidas de Proteção ao Consumidor em matéria de consumo sustentável, no direito brasileiro. São Leopoldo: Casa Leiria, 2022.

[3] BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Informações Técnicas. Dispo­nível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/insumos-agropecuarios/insumos-agricolas/agrotoxicos/RegistrosConcedidos200020222.xlsx. Acesso em: 19 jul. 2022.

[4] Os detalhes da tramitação bicameral podem ser consultados em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pls-526-1999

[5] BRASIL. Câmara dos Deputados. Texto aprovado em 9 de fevereiro de 2022 do Projeto de Lei nº 6.299, de 2002. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e a rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e das embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de pesticidas, de produtos de controle ambiental e afins; altera a Lei Delegada nº 8, de 11 de outubro de 1962; revoga as Leis 7.802, de 11 de julho de 1989, e 9.974, de 6 de junho de 2000, partes de anexos das Leis nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 9.782, de 26 de janeiro de 1999, e dispositivo da Lei nº 12.873, de 24 de outubro de 2013; e dá outras providências. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2135466. Acesso em: 19 jul. 2022.

[6] FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ). Comunicado do GT Agrotóxicos e Saúde da Fiocruz aos Senadores da República e à população: gravidade para a saúde pública decorrente da aprovação do PL 6.299/2002. 14 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/sites/agencia.fiocruz.br/files/u35/comunicado_fiocruz_senado_2022-4.pdf. Acesso em: 19 jul. 2022.

[7] BRASIL. Decreto n.º 10.178, de 18 de dezembro de 2019. Disponível em: http://www.planal­to.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10178.htm. Acesso em: 15 jul. 2022.

Autores

  • é doutora em Direito (área: Internacional) pela Universidad de Buenos Aires (UBA), professora do programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e diretora para o Mercosul do Brasilcon.

  • é mestranda bolsista Capes/Proex em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e advogada.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!