Opinião

É possível a aplicação subsidiária da nova lei de licitações às empresas estatais?

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Luis Henrique Braga Madalena

    é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj mestre em Direito Público pela Unisinos vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

  • Pedro Henrique Braz de Vita

    é advogado professor doutorando mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation).

6 de outubro de 2022, 19h28

Nos termos do § 1º do artigo 1º da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), as normas ali previstas não se aplicam às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às suas subsidiárias, que são regidas pela Lei nº 13.306/2016 (Lei das Estatais). O objetivo do presente texto é compreender o alcance e sentido desse dispositivo, de modo a responder a uma pergunta específica: ele veda a aplicação subsidiária da Lei de Licitações às empresas estatais?

A resposta parece ser positiva, mas em termos. Inicialmente, é importante ter claro que a edição de lei específica para tratar do regime jurídico das empresas estatais é imposição constitucional (§ 1º do artigo 173) que tem por premissa o fato de que as normas de licitação contidas na Lei Geral são dotadas de rigidez incompatível com a atividade empresarial exercida pelas estatais. Em outras palavras, o regime jurídico das empresas estatais precisa ser (e de fato é) mais leve e flexível do que o adotado para as entidades administrativas de direito público, sob pena de restar inviabilizada a sua competição com as sociedades privadas.

Com efeito, a exploração empresarial inerente às atividades desenvolvidas pelas empresas estatais exige um regime jurídico flexível, capaz de colocar essas sociedades em condições capazes de competir com as empresas privadas no mercado nacional. Daí porque existe até mesmo o dever de cada empresa, à luz das particularidades de sua atuação, editar seus próprios regulamentos de licitações e contratos (artigo 40).

Nesse sentido, as soluções explicitadas na Lei nº 13.303/2016 derrogam as normas gerais de licitação porque ocupam um espaço constitucionalmente autônomo. O caráter de especialidade da Lei das Estatais interdita, em regra, a invocação de soluções analógicas em outras legislações, de modo que é inadequado pretender uma regência supletiva imediata da Lei de Licitações para as estatais, sob pena de se negar a sua autonomia, contrariando, via de consequência, o texto constitucional.

Nesse contexto, e sob a égide da Lei nº 8.666/1993, foi aprovado na I Jornada de Direito Administrativo organizada pelo Conselho Nacional de Justiça um Enunciado nº 17, com o seguinte teor: "Os contratos celebrados pelas empresas estatais, regidos pela Lei nº 13.303/2016, não possuem aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/1993. Em casos de lacuna contratual, aplicam-se as disposições daquela Lei e as regras e os princípios de direito privado". No mesmo sentido se posicionou o Plenário do TCU no Acórdão 739/2020: "Não se aplica subsidiariamente a Lei 8.666/1993 a eventuais lacunas da Lei 13.303/2016 [Lei das Estatais], exceto nas hipóteses nela expressamente previstas (arts. 41 e 55, III) , sob pena de violação aos arts. 22, XXVII, e 173, §1°, III, da Constituição Federal".

Com efeito, se sob a égide da antiga lei o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante era o da impossibilidade de aplicação subsidiária da Lei Geral de Licitações às empresas estatais, esse entendimento ganhou ainda mais substrato com o advento da Nova Lei de Licitações, que, como já visto, prevê expressamente que suas normas não regem as empresas estatais, sejam elas prestadoras de serviços públicos ou exploradoras de atividade econômica.

Isso, por outro lado, não significa que a aplicação subsidiária se encontra vedada em todo e qualquer caso, até mesmo porque, como já visto, em certos casos é a própria legislação que determina essa aplicação. A Nova Lei de Licitações, por exemplo, prevê a aplicação às estatais das normas penais previstas no artigo 178 (artigo 1º, § 1º). Além disso, a própria Lei das Estatais estabelece algumas remissões à Lei de Geral de Licitações, a exemplo do inciso III do artigo 55, segundo o qual se aplicam aos procedimentos licitatórios instaurados pelas empresas estatais os critérios de desempate previstos na Lei nº 8.666/1993 — agora Lei nº 14.133/2021.

Outro exemplo é o artigo 32 da Lei nº 13.303/2016, que determina que para a aquisição de bens e serviços comuns as estatais devem se utilizar preferencialmente de pregão, com a observância do rito estabelecido na Lei nº 10.520/2002. Como a Lei nº 14.133/2021 revogará a Lei do Pregão, pode-se afirmar que a partir desse momento o regime a ser aplicado a essas licitações será o previsto na Nova Lei de Licitações — não mais o da Lei do Pregão.

Não se pode desconsiderar, ainda, que embora a aplicação subsidiária fora das hipóteses expressamente previstas em lei esteja vedada, nada impede a aplicação às estatais de entendimentos construídos pela doutrina e pela jurisprudência à luz da Lei Geral de Licitações, haja vista que, embora se tratem de regimes jurídicos distintos (Lei das Estatais e Lei de Licitações), em muitos pontos há a utilização compartilhada dos mesmos conceitos e institutos [1].

Além disso, a aplicação mecânica do entendimento de que somente é permitida a aplicação subsidiária da Lei Geral de Licitações às empresas estatais quando expressamente previsto em lei pode se mostrar demasiadamente restritiva e contrária à própria efetividade da Lei das Estatais.

Nessa esteira, entende-se ser possível a invocação da Lei nº 14.133/2021 para trazer soluções a temas que deveriam ter sido disciplinados para as estatais e não o foram, desde que isso esteja previsto em regulamentos ou mesmo no edital de licitação.

Exemplo: a Lei das Estatais, ao disciplinar os requisitos de habilitação, não previu a necessidade de demonstração da regularidade fiscal e trabalhista do licitante, ao contrário do que consta na Lei Geral de Licitações (inciso III do artigo 62). Isso quer dizer que não é possível exigir essa demonstração nos procedimentos instaurados pelas estatais? A resposta é evidentemente negativa, sendo perfeitamente possível a aplicação por analogia da Lei de Licitações, desde que assim esteja previsto em regramento específico.

E mais: é preciso que a lacuna ou omissão a autorizar a aplicação supletiva da Lei nº 14.133/2021 seja analisada à luz da Lei das Estatais, e não à luz da Lei Geral de Licitações. Melhor dizendo, é necessário que a lacuna ou omissão seja verificada levando-se em conta premissas da própria Lei das Estatais, jamais com base na racionalidade da Lei nº 14.133/2021. Até mesmo porque a razão de ser da Lei das Estatais está na criação de um procedimento licitatório mais leve. Nesse contexto, a ausência de determinada norma pode ser daqueles silêncios eloquentes e cheios de sentido, que desautorizam que se fale em lacunas ou aplicação supletiva.

Em uma palavra final, entende-se que a Lei de Licitações, para além das hipóteses previstas em lei e no que toca a entendimentos jurisprudenciais acerca institutos de uso compartilhado entre as leis, poderá ser aplicada subsidiariamente à Lei nº 13.303/2016 no caso de que esta não contenha padrões de atuação que sejam necessários para sua efetividade, mas isso jamais pode acontecer de forma automática, sem previsão expressa em texto ou ato normativo editado pela administração.

 


[1] Nesse sentido foi a decisão TCU no Acórdão 2059/2020, julgado pelo Plenário, onde se aplicou a uma empresa estatal entendimento firmado pelo Tribunal à luz da Lei nº 8.666/93.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR, professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • é doutor em filosofia e Teoria do Direito pela Uerj, mestre em Direito Público pela Unisinos, vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

  • é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation) e advogado.

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