Interesse Público

Decisão coordenada no processo administrativo e a Constituição

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6 de outubro de 2022, 8h00

Em meio à entrega, no último dia 6/9/2022, do relatório final da Comissão de Juristas, presidida pela ministra e professora Regina Helena Costa, com sugestões para o aperfeiçoamento e modernização do processo administrativo e tributário em nível nacional, eis que veio a lume a necessidade de enfrentar aspectos recentes inseridos na Lei de Processo Administrativo Federal em vigor (Lei 9.784/99), pela Lei 14.210/21.

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Referida lei incluiu disposições na Lei 9.784/99 relativas à "decisão coordenada" (artigo 49-A a 49-G), importante instrumento para buscar celeridade processual e segurança jurídica nas decisões mais complexas e controvertidas da administração pública em todos os níveis.

Diz-se em todos os níveis, porque a Lei 9.784/99, a despeito de se tratar, em essência, de lei federal, positivou princípios constitucionais e conceitos gerais de direito administrativo, que permitiram sua aplicação também às esferas estaduais e municipais, a ponto de o Superior Tribunal de Justiça reconhecer sua transcendência a essas esferas, à guisa de legislação própria (Súmula 633, STJ).

Com efeito, o artigo 49-A da Lei 9.784/99, incluído pela Lei 14.210/21, dispõe que as decisões administrativas que exijam a participação de três ou mais setores, órgãos ou entidades da administração poderão ser tomadas mediante decisão coordenada, sempre que: (1) for justificável pela relevância da matéria; (2) houver discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório.

Considera-se como decisão coordenada a instância de natureza interinstitucional ou intersetorial que atua de forma compartilhada com a finalidade de simplificar o processo administrativo, mediante participação concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios envolvidos e dos responsáveis pela instrução técnico-jurídica, observada a natureza do objeto e a compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente (artigo 49-A, §1º).

Note-se que mesmo que a priori o instrumento das decisões coordenadas seja direcionado a uma única esfera federativa (União), a composição do colegiado decisório a cada caso poderá contar com a participação de diferentes esferas, proporcionando-se uma espécie de instância de diálogo institucional entre as entidades político-administrativas, em ordem a dar concretude à noção de federalismo cooperativo (artigo 1º e 18 da Constituição).

Bem de ver que a decisão coordenada não exclui a responsabilidade instrutiva e decisória originária de cada órgão ou autoridade envolvida no caso, subordinando-se aos princípios da legalidade, da eficiência e da transparência, com utilização, sempre que necessário, da simplificação do procedimento e da concentração das instâncias de decisão (artigo 49-A, §§4º e 5º).

Nesse sentido, dispõe o artigo 49-E da Lei 9.784/1999, que cada órgão ou entidade participante da decisão coordenada é responsável pela elaboração de documento específico sobre o tema atinente à respectiva competência, a fim de subsidiar os trabalhos e integrar o processo da decisão coordenada, abordando a questão e possíveis precedentes. Em hipótese de dissenso entre os partícipes da decisão coordenada este deverá ser manifestado durante as reuniões, de forma fundamentada, acompanhado das propostas de solução e de alteração necessárias para a resolução da questão (artigo 49-F da Lei 9.784/1999).

Convém registrar que as novas disposições da Lei 9.784/99 haverão de se alinhar ao que dispõe a LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), que, como norma de sobre direito, projeta uma espécie de hierarquia funcional sobre as demais normas de direito público, mas fundamentalmente esse alinhamento tem que se estabelecer com as disposições constitucionais atinentes ao processo administrativo (artigo 5º, LIV e LV).

Nessa perspectiva, convém alertar sobre um aspecto que traz preocupações relativamente às disposições legais sobre a decisão coordenada. Trata-se do direito à participação dos legitimados no processo administrativo em que ela será instaurada (interessados, terceiros, representantes e substitutos processuais).

Deveras, de acordo com o disposto do novo artigo 49-B da Lei 9.784/99 poderão habilitar-se a participar da decisão coordenada, na qualidade de ouvintes, os interessados de que trata o artigo 9º desta Lei. Tal participação, que se dará na reunião, poderá incluir direito a voz, e será deferida por decisão irrecorrível da autoridade responsável pela convocação da decisão coordenada.

Pela disposição, tem-se a impressão de que a participação dos legitimados ao processo administrativo de decisão coordenada (sejam eles interessados, terceiros interessados, representantes e substitutos processuais) é um mero detalhe, um capricho, a depender da benevolência dos órgãos participantes, outorgando-lhes a condição de ouvinte com direito à voz na reunião.

Ora, não é só porque uma decisão administrativa pode vir a ser melhor adotada no curso de um processo dialógico e organicamente conjunto que o direito ao contraditório e à ampla defesa dos interessados, garantia constitucionalmente assegurada pelo artigo 5º, LIV e LV da Constituição, pode ser esmaecido em conteúdo e intensidade. A própria conectividade da nova disposição com outras regras da Lei 9.784/99 deixa ver que assim não deve ser (v.g., artigo 2, caput e parágrafo único, X).

Sobre o tema, é luminar o voto condutor do ministro Gilmar Mendes, do STF, no Acórdão no MS 24.268, relator Min. Ayres Brito, j. 8/9/2010, public. 10/2/2011, Tribunal Pleno, a respeito da dimensão constitucional das garantias processuais no âmbito do processo administrativo. De acordo com sua excelência, no direito alemão existe a chamada "Anspruch auf rechtliches Gehör" (pretensão à tutela jurídica), que envolve não só o (1) direito de manifestação e (2) o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também (3) o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar (Cf. Decisão da Corte Constitucional alemã — BVerfGE 70, 288-293).

"[A] pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: 1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; 2) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; 3) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (Cf.Pieroth e Schlink, Grundrechte – Staatsrecht II, Heidelberg, 1988, p. 281; Battis e Gusy, Einführung in das Staatsrecht, Heidelberg, 1991, p. 363- 364; Ver, também, Dürig/Assmann, in: Maunz-Dürig, GrundgesetzKommentar, Art. 103, vol IV, nº 85-99)".

Como se vê, ao direito do interessado (ou de quem lhe faça as vezes) no processo administrativo de manejar aos autos seus argumentos e razões (Recht auf Berücksichtigung), corresponde o dever de a Administração lhes conferir atenção (Beachtenspflicht), envolvendo não só o dever de tomar conhecimento (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerar e levar a sério as razões apresentadas (Erwägungspflicht) (Cf. Dürig/Assmann, in: Maunz-Dürig, GrundgesetzKommentar, Artigo 103, vol. IV, nº 97).

É por conta desses aspectos, que derivam da Constituição brasileira, além de outras disposições da Lei 9.784/99, que a decisão coordenada no processo administrativo deve garantir a ampla possibilidade de participação dos interessados, com o espectro dimensional exposto, todas as vezes que a matéria ou o objeto da discussão, puder, direta ou indiretamente, afetar-lhes direitos e interesses legitimamente protegidos.

Em suma, não seria interessante que a novidade da decisão coordenada no processo administrativo já nascesse descoordenada com a Constituição.

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