Interesse Público

Convênios com entidades privadas sem fins lucrativos depois da MROSC

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18 de agosto de 2022, 8h00

A expressão "terceiro setor" começou a ser utilizada nos Estados Unidos da América a partir do início da década de 1970, para descrever realidades pertinentes ao conjunto das organizações de caráter não lucrativo, que atuavam, sem objetivos egoísticos, na distribuição de bens e na prestação de serviços de interesse social (educação, saúde, assistência social, meio ambiente, cultura, desporto).

Spacca
Em 1972, Amitai Etzioni, professor das universidades de Columbia e George Washington, publicou, na revista Business and Society Review, o artigo "The Untapped Potential of the Third Sector" (O potencial inexplorado do terceiro setor), no qual defendeu uma mudança de orientação na política social do governo Nixon (EUA), que deveria, na provisão de serviços sociais, incentivar a criação e o fomento de organizações privadas sem fins lucrativos, no lugar de empresas com finalidades lucrativas [1].

No Brasil, em nível federal, foram as organizações religiosas que deram início, ainda na década de 1930, ao movimento (depois batizado terceiro setor) [2], culminando com a edição da Lei Federal nº 91, de 15 de agosto de 1935, que cuidou de estabelecer regras para a concessão de títulos de utilidade pública às referidas entidades [3].

Na segunda metade dos anos 1990, ocorreram mudanças significativas no ambiente do terceiro setor. O desenho e implementação do PDRAE/1995 (Plano de Reforma do Aparelho do Estado) foi decisivo ao disciplinar ajustes, de natureza convenial, vertidos às relações entre o setor público (primeiro setor) e o terceiro setor (público não-estatal), se lhes prescrevendo um regime de parcerias, como alternativa adequada à exploração direta de serviços sociais pelo Estado.

Com esse propósito, a União Federal editou as Leis nº 9.637/98  [4] e nº 9.790/99, que cuidaram, respectivamente, do projeto das Organizações Sociais (OS) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), qualificações jurídicas destinadas às entidades do terceiro setor [5]. Posteriormente, editou a Lei 13.019/14 (bastante alterada pela Lei 13.204/15), para tratar, de maneira mais uniforme, de parcerias voluntárias residuais em todas as esferas federativas (esta era a intenção primitiva). Referida lei ficou conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC).

Embora essas três qualificações enumerativas atribuíveis a pessoas jurídicas sem finalidades lucrativas pela legislação federal (OS, Oscip e OSC) se afigurem muito próximas, quando examinadas do ponto do vista substancial e da finalidade a que se destinam, existe uma diferença normativa fundamental entre as duas primeiras (OS e Oscip) e as parcerias tratadas pela Lei 13.019/14 (OSC).

É que as leis disciplinadoras das OS e das Oscip têm aplicabilidade restrita ao âmbito federal (elas próprias limitam a aplicação do fomento típico à esfera federal, permitindo, portanto, que haja disciplina diversa em nível estadual e municipal), ao passo que a última, pelo menos em tese, almejou estabelecer regra nacional, com repercussão direta ao nível da União, dos estados e dos municípios.

Decerto, pela a leitura do art. 1º da Lei 13.019/14 compreende-se que ela intentou estabelecer normas gerais para parcerias voluntárias, buscando, por dedução lógica, fundamento de validade no art. 22, XXVII da Constituição da República, à semelhança das Leis 8.666/93 e 14.133/21. Veja-se a disposição constitucional:

"Art. 22 — Compete à União privativamente à União legislar sobre:

XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, §1º, III."

Depreende-se que, diferentemente das demais matérias previstas no artigo 22 da Constituição (à exceção dos incisos IX, XXI e XXIV), a competência legislativa citada é outorgada sem exclusividade à União, existindo espaço de legislação a ser exercido por estados e municípios, convindo ressaltar que o fato de o constituinte ter encartado a competência para legislar sobre normas gerais de licitações e contratos administrativos no artigo 22, XXVII não a transforma em matéria típica da competência concorrente, ao contrário do que sustenta prestigiada doutrina nacional [6].

A tal respeito, o STF possui importante leasing case, no julgamento da ADI 927-3/RS, relator ministro Carlos Velloso, onde se lê:

"CONSTITUCIONAL. LICITAÇÃO. CONTRATAÇÃO ADMINISTRATIVA. Lei n. 8.666, de 21.06.93. I. – Interpretação conforme dada ao art. 17, I, "b" (doação de bem imóvel) e art. 17, II, "b" (permuta de bem móvel), para esclarecer que a vedação tem aplicação no âmbito da União Federal, apenas. Idêntico entendimento em relação ao art. 17, I, "c" e par. 1. do art. 17. Vencido o Relator, nesta parte. II. – Cautelar deferida, em parte" [7].

Na decisão, a Suprema Corte divisa a competência da União para expedir normas gerais e normas específicas sobre licitação e contratos. O voto condutor do acórdão, da lavra do ministro Carlos Velloso, enfatiza que:

"Registre-se, entretanto, que a competência da União é restrita a normas gerais de licitação e contratação. Isto quer dizer que os Estados e Municípios também tem competência para legislar a respeito do tema: a União expedirá normas gerais e os Estados e Municípios as normas específicas. Leciona a respeito Marçal Justen Filho: ‘como dito, apenas as normas gerais são de obrigatória observância para as demais esferas de governo, que ficam liberadas para regular diversamente o restante (Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas, AIDE, Rio, 1993, p. 13) (…) Penso que essas 'normas gerais' devem apresentar generalidade maior do que apresentam, de regra, as leis. Penso que 'norma geral', tal como posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral. A norma geral federal, melhor será dizer nacional, seria a moldura do quadro a ser pintado pelos Estados e Municípios no âmbito de suas competências […] Não são normas gerais as que se ocupem de detalhamentos, pormenores, minúcias, de modo que nada deixam à criação própria do legislador a quem se destinam, exaurindo o assunto de que tratam […] São normas gerais as que se contenham no mínimo indispensável ao cumprimento dos preceitos fundamentais, abrindo espaço para que o legislador possa abordar aspectos diferentes, diversificados, sem desrespeito a seus comandos genéricos, básicos."

Como se vê, o artigo 22, XXVII, da Constituição dita uma peculiar fisionomia à competência legislativa atinente às licitações e contratos administrativos (de onde retira seu fundamento de validade a Lei 13.019/14), atribuindo-lhe regime de repartição diferenciado, relativamente às competências privativas e às concorrentes.

No contexto da Lei 13.019/14, é fundamental identificar quais são as verdadeiras normas gerais da União, cuja aplicabilidade dar-se-á automaticamente a estados e municípios, e quais são as normas específicas, aplicáveis apenas à esfera federal.

Neste último caso, estados e municípios podem exercer sua competência legislativa em plenitude, sem interferência da competência legislativa da União, porquanto "não é tudo sobre licitação que jaz sob a competência legislativo-federal-ordinária. A União somente foi autorizada a expedir normas gerais sobre licitação. E, com a locução "normas gerais", a Constituição abriu uma discriminação entre competência legislativa plena e competência legislativa limitada, no círculo das atribuições legiferantes que a União detém a título privativo" [8].

A MROSC pretendeu estabelecer normas gerais. E, talvez sem querer, não padeceu do mesmo defeito da Lei 8.666/93 (e da Lei 14.133/21), que é o de não prescrever quais são essas normas gerais e quais são as normas específicas.

É que as normas gerais da MROSC estão designadas expressamente na Seção I do Capítulo I (normas gerais), correspondendo aos artigos 5º e 6º da lei [9].

Bem de ver que, além delas, existem outras normas gerais (não declaradas), que, pela pertinência temática, terminam por se enquadrar como tal. É o que acontece com os seguintes dispositivos: artigo 2º (conceitos), artigo 2º-A (respeito às parcerias previstas em políticas setoriais), artigos 23 a 31 (procedimentos competitivos, dispensa e inexigibilidade), artigo 33, V, "a" (tempo mínimo de existência da entidade ou justificativa para a formalização do ajuste), artigos 39 a 42 (vedações), artigo 84, caput (afastamento da incidência da Lei 8.666/93), artigo 84 (exclusão de incidência da própria MROSC) e artigos 83 e 88 (vigência).

Convém advertir, de qualquer forma, que se a Lei 13.019/14 expressamente nomeia determinadas normas como tipicamente gerais (Secção I do Capítulo I), existe uma presunção (relativa) de que as demais normas sejam específicas e não o contrário. Assim, aquelas que não se enquadrarem como norma-diretriz ou norma-princípio serão consideradas como normas específicas.

Nesse sentido, por exemplo, as regras que tratam de termos de colaboração, termos de fomento e acordos de cooperação não assumem natureza de normas gerais, também não o artigo 84-A da MROSC, que veda a utilização do convênio para fins a que se destinam tais vínculos jurídicos.

Isto porque, a bem da verdade, todos esses ajustes possuem natureza jurídica contratual lato sensu e de convênio stricto sensu: "todos esses instrumentos, no fundo, têm a mesma natureza e retratam a pactuação entre a Administração e entidades do terceiro setor para finalidade de interesse público e recíproco" [10].

Se assim não fosse, o artigo 22, XXVII da Constituição não serviria de lastro de validade para a Lei 13.019/14, pelo que é imperioso concluir pela existência de convênios típicos e atípicos, podendo haver variações ao nível das legislações locais, com previsão de diferentes sortes de instrumentos, desde que assumam a natureza jurídica de convênio (lato sensu).

 


[1] ALVES, Mario Aquino. Terceiro Setor: origem do conceito. Disponível em Microsoft Word – enanpad2002-gpg-837.doc (ufjf.br). Acesso em 21/7/2022.

[2] LAZZAROTO, Aline. O Terceiro Setor e Sua História na Sociedade Brasileira, Disponível em O Terceiro Setor e Sua História na Sociedade Brasileira – AUTOSSUSTENTÁVEL (autossustentavel.com). Acesso em 21/7/2022.

[3] A Lei 91/35 foi revogada pela Lei 13.204/15.

[4] Considerada constitucional pelo STF na ADI 1923.

[5] Como adverte Paulo Modesto: "Essas designações consistem apenas em títulos jurídicos. Em princípio, títulos jurídicos que podem ser conferidos, suspensos ou retirados. Essas expressões não traduzem uma forma de pessoa jurídica privada. Nem informam uma qualidade inata ou traço original de qualquer espécie de entidade. Dizer de alguma entidade que ela é 'de utilidade pública' ou 'organização social' significa dizer que ela recebeu e mantém o correspondente título jurídico" (MODESTO, Paulo. Reforma do Marco Legal do Terceiro Setor no Brasil, Revista Eletrônica sobre Reforma do Estado, nº 5, março/abril/maio, Salvador, 2006. Disponível em (PDF) Reforma do Marco Legal do Terceiro Setor no Brasil (researchgate.net). Acesso em 27/7/2022).

[6] ALMEIDA, Fernanda Dias Meneses. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991. p. 111-112.

[7] ADI 927 MC, Relator (a): CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/1993, DJ 11/11/1994 PP-30635, EMENT VOL-01766-01, PP-00039.

[8] BRITTO, Carlos Ayres. O perfil constitucional das licitações. Curitiba: Zênite, 1997. p. 15.

[9] Art. 5º — O regime jurídico de que trata esta Lei tem como fundamentos a gestão pública democrática, a participação social, o fortalecimento da sociedade civil, a transparência na aplicação dos recursos públicos, os princípios da legalidade, da legitimidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da economicidade, da eficiência e da eficácia, destinando-se a assegurar: (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)

I – o reconhecimento da participação social como direito do cidadão;

II – a solidariedade, a cooperação e o respeito à diversidade para a construção de valores de cidadania e de inclusão social e produtiva;

III – a promoção do desenvolvimento local, regional e nacional, inclusivo e sustentável;

IV – o direito à informação, à transparência e ao controle social das ações públicas;

V – a integração e a transversalidade dos procedimentos, mecanismos e instâncias de participação social;

VI – a valorização da diversidade cultural e da educação para a cidadania ativa;

VII – a promoção e a defesa dos direitos humanos;

VIII – a preservação, a conservação e a proteção dos recursos hídricos e do meio ambiente;

IX – a valorização dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais;

X – a preservação e a valorização do patrimônio cultural brasileiro, em suas dimensões material e imaterial

Art. 6º São diretrizes fundamentais do regime jurídico de parceria: (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)

I – a promoção, o fortalecimento institucional, a capacitação e o incentivo à organização da sociedade civil para a cooperação com o poder público;

II – a priorização do controle de resultados;

III – o incentivo ao uso de recursos atualizados de tecnologias de informação e comunicação

IV – o fortalecimento das ações de cooperação institucional entre os entes federados nas relações com as organizações da sociedade civil;

V – o estabelecimento de mecanismos que ampliem a gestão de informação, transparência e publicidade;

VI – a ação integrada, complementar e descentralizada, de recursos e ações, entre os entes da Federação, evitando sobreposição de iniciativas e fragmentação de recursos;

VII – a sensibilização, a capacitação, o aprofundamento e o aperfeiçoamento do trabalho de gestores públicos, na implementação de atividades e projetos de interesse público e relevância social com organizações da sociedade civil;

VIII – a adoção de práticas de gestão administrativa necessárias e suficientes para coibir a obtenção, individual ou coletiva, de benefícios ou vantagens indevidas, em decorrência da participação no respectivo processo decisório ou ocupação de posições estratégicas;

VIII – a adoção de práticas de gestão administrativa necessárias e suficientes para coibir a obtenção, individual ou coletiva, de benefícios ou vantagens indevidos; (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)

IX – a promoção de soluções derivadas da aplicação de conhecimentos, da ciência e tecnologia e da inovação para atender necessidades e demandas de maior qualidade de vida da população em situação de desigualdade social.

[10] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Regime Jurídico dos termos de colaboração, termos e fomento e acordos de cooperação. In MOTTA, Fabrício. MÂNICA, Fernando Borges. OLIVEIRA, Rafael Arruda (Coord.). Parcerias com o terceiro setor: as inovações da Lei 13.019/14. Belo Horizonte: Forum, 2017, p. 179-191.

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