Opinião

O STF e os direitos fundamentais da pessoa investigada

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29 de novembro de 2022, 20h42

Inicia-se no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta semana, o julgamento de um agravo regimental em que se discute se o cidadão investigado, no instante mesmo em que figura como alvo de mandado de busca e apreensão residencial, pode ser compelido pelo Estado a fornecer a senha de seu aparelho celular, apreendido na diligência.

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Essa análise passa pela discussão sobre se a autoridade pública, ao invés de requisitar do investigado, de pronto, o fornecimento da senha, não deveria previamente adverti-lo dos direitos que lhe assistem, dentre os quais os de não ser obrigado a auxiliar o Estado na produção de elementos que lhe sejam potencialmente incriminadores.

O artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal de 1988 (CF) é explícito em estabelecer que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado". Como é notório (ou, ao menos deveria ser!), é nesse dispositivo em especial — visto não se tratar do único fundamento — que se encontra ancorado, no direito constitucional positivo brasileiro, o direito fundamental do investigado a ser informado sobre seus direitos, seja como um direito autônomo, seja como posição jurídica ativa integrante do âmbito de proteção dos direitos ao silêncio e à não autoincriminação [1].

No caso concreto submetido à Suprema Corte brasileira, a Polícia Federal, com cinco de seus agentes ostensivamente trajados, ingressou na residência do investigado, pessoa idosa, à época com 79 anos de idade, por volta das 6h da manhã. No curso das buscas, os policiais apreenderam o celular do cidadão e, mais do que isso, demandaram-lhe o fornecimento da senha de acesso aos dados do referido aparelho, providência que, diante do evidente contexto de surpresa e força, foi por ele atendida.

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Ato contínuo, o investigado foi submetido a questionamentos a respeito dos fatos apurados na investigação e dos objetos localizados em sua residência, os quais foram posteriormente formalizados em "Relatório de Diligência" incorporado aos autos da investigação.

Daí por que a defesa do investigado postula a declaração de nulidade pontual da diligência policial (e não na ordem judicial de apreensão do aparelho celular), em conformidade com o que que está disposto no artigo 5º, LVI, da CF, e art. 157 do CPP.

Imprescindível sublinhar, no concernente às peculiaridades do caso concreto, que a autoridade policial reconheceu que o investigado não fora advertido sobre o direito constitucional que lhe assistia de não contribuir ativamente à potencial produção de conjunto probatório em seu desfavor, seja mediante (1) o fornecimento da senha de seu celular, seja mediante (2) fornecimento de respostas às perguntas que lhe foram formuladas. Na perspectiva da autoridade policial, a cientificação das "garantias constitucionais" ao investigado somente deveria ocorrer por ocasião de eventual "lavratura de autos de prisão em flagrante delito".

Essa compreensão externada pela autoridade policial vai na contramão de pelo menos três linhas interpretativas consolidadas no âmbito do STF a respeito do disposto no artigo 5º, LXIII da CF. São elas:

(1) a de que a titularidade da prerrogativa constitucional contra a autoincriminação não se restringe à figura do "preso", socorrendo a "[q]ualquer pessoa que sofra investigações policiais ou parlamentares, ostentando ou não a condição formal de indiciado" (STF, HC 79.812, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 8/11/2000, p. 16/2/2001);

(2) a de que o artigo 5º, LXIII, da CF tem como uma de suas projeções "os direitos de nada aduzir quanto ao mérito da pretensão acusatória e de não ser compelido a produzir ou contribuir com a formação de prova contrária ao seu interesse" (STF, RE 971.959, rel. min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 14/11/2018, p. 31/7/2020); e

(3) a de que a obrigação do Estado de cientificar a pessoa submetida a medidas de persecução penal sobre o direito fundamental de permanecer em silêncio se verifica "não apenas no interrogatório formal, mas logo no momento da abordagem" (STF, RHC 192.798 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 24/2/2021, p. 2/3/2021).

Nessa linha de entendimento, designadamente no concernente ao direito de ser informado de seus direitos, o STF já teve a oportunidade de reconhecer que "a falta de sua advertência — e de sua documentação formal — faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado" (STF, HC 80.949, rel. min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, j. 30/10/2001, p. 14/12/2001).

Dada sua expressiva relevância jurídico-constitucional, a questão objeto deste recurso teve sua "repercussão geral" reconhecida por essa E. Suprema Corte, e será em breve analisada no âmbito do "Tema 1.185" [2]:

"Tema 1185 – Obrigatoriedade de informação do direito ao silêncio ao preso, no momento da abordagem policial, sob pena de ilicitude da prova, tendo em vista os princípios da não auto-incriminação e do devido processo legal."

Todavia, a despeito da afetação da matéria ao regime de repercussão geral, o tema será debatido no Plenário Virtual do STF, nesta semana (AgRg na AC 4.446, rel. min. Edson Fachin).

O julgamento referido, importa repisar, tratará de tema da maior importância, porquanto em causa está a controvérsia acerca da legitimidade constitucional de intervenção restritiva no âmbito de proteção de direito fundamental, que, ademais de autônomo (portanto, com núcleo essencial próprio), guarda relação com a proteção de outros direitos fundamentais do investigado (ainda mais quando em risco a sua liberdade), mas também diz respeito — na perspectiva jurídico-objetiva e transindividual — às exigências elementares decorrentes do princípio estruturante do Estado Democrático de Direito, assim como à suficiente e eficaz realização dos deveres de proteção dos direitos fundamentais referidos aos quais aquele está diretamente vinculado [3].

Além disso, não é demais lembrar a necessidade de se atentar, quando da análise da matéria, aos parâmetros do sistema internacional de proteção dos direitos humanos (na esfera universal e regional) que, de acordo com a jurisprudência do STF, encontra-se — desde que se cuide de tratados ratificados pelo Brasil e internalizados de acordo com o devido processo previsto na CF — integrado ao Direito doméstico com valor jurídico supralegal, sem prejuízo de eventuais tratados incorporados pelo rito estabelecido no artigo 5º, § 3º, da CF, que possuem hierarquia equivalente à das emendas constitucionais.

Mas aqui se trata de matéria a ser explorada noutra ocasião, inclusive à luz do resultado do tão aguardo julgamento desta semana.

Em síntese, o que se espera é que o STF aproveite a iminente oportunidade para não apenas avançar no pertinente ao desenvolvimento e refinamento do tema, quanto siga robustecendo seus precedentes acerca da já reconhecida "[n]ecessidade de consolidação de uma jurisprudência brasileira em favor das pessoas investigadas" (STF, Rcl. 33.711, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 11/6/2019, p. 23/8/2019).

 


[1] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa: A Tutela Jurídica da Liberdade, 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.

[3] Sobre o tema, v. dos autores (e para maior desenvolvimento) SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 13ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018, p. 148 e ss, e FELDENS, Luciano, Direitos Fundamentais e Direito Penal: A Constituição Penal, 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

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