Opinião

Democracia responsiva, era digital e a Constituição de 1988

Autor

  • Agassiz Almeida Filho

    é advogado professor e autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (Forense 2007) Introdução ao Direito Constitucional (Forense 2008) Formação e Estrutura do Direito Constitucional (Malheiros 2011) e 10 Lições Sobre Carl Schmitt (Vozes 2014).

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22 de novembro de 2022, 16h14

Em 1937, Karl Loewenstein escreveu dois artigos sobre a denominada democracia militante [1]. Hitler havia chegado ao poder quatro anos antes. A República de Weimar e a democracia parlamentar estavam sendo desmontadas de dentro para fora através de mecanismos da própria democracia liberal. O partido nacional-socialista participou das eleições, Hitler assumiu como chanceler do Reich e o governo logo tomou o controle do parlamento através de artifícios jurídicos (perseguição ao Partido Comunista Alemão, aprovação da Lei de Plenos Poderes etc.).

As publicações de Loewenstein sobre a democracia militante tinham dois propósitos. Em primeiro lugar, buscavam alertar para o impacto do fascismo sobre a existência do regime democrático, que vinha sendo colocado em xeque pelos detratores do Estado Liberal, dentre os quais Carl Schmitt ocupava lugar de destaque. Além disso, também estabeleciam caminhos para a defesa da democracia contra os partidos fascistas, o que se baseava na vontade política e legislativa de autopreservação do sistema [2]. Eram necessárias medidas concretas para impedir o avanço do fascismo enquanto apelo emocional à sociedade alemã.      

O cenário geral de ataques à democracia mudou bastante nos últimos anos. Em grande parte, isso ocorreu por causa da universalização da ideia de democracia e das inovações da e-democracy ou democracia digital. Nas últimas décadas, o discurso de respeito ao sistema democrático foi reivindicado até mesmo pelas ditaduras mais sangrentas, a exemplo do regime de Adi Amin Dada, em Uganda (1971-1979). Os partidos antissistemas atuam hoje de forma sub-reptícia, encoberta, através de uma dinâmica política que mina as bases do regime democrático sem atacá-lo diretamente.

A cultura política que se impôs após a Segunda Guerra Mundial torna difícil afrontar a democracia enquanto regime estabelecido pelo sistema constitucional. A dinâmica da e-democracy, por outro lado, cria condições para que os fundamentos da democracia sejam relativizados através da deslegitimação das instituições e da própria democracia no ambiente digital. Trata-se de um espaço aproveitado por um discurso populista que também apela às emoções e à irreflexão do seu auditório. O autoritarismo nas redes tem demonstrado que é suficiente para criar uma cultura política avessa ao convívio democrático.

Essa mudança de cenário impõe também uma transformação no modo como o regime democrático deve afrontar seus inimigos. Os partidos políticos abertamente contrários à democracia da época de Loewenstein não são mais viáveis desde o ponto de vista das regras do jogo e da legitimidade política. Praticamente não existem mais. Na atualidade, a democracia precisa lidar com sutilezas antissistemas e agressões veladas. São mandatários que adotam estética fascista, é o discurso de ódio proferido por representantes do povo, são fake news contra instituições democráticas, apologia da violência armada etc.

Por isso, o conceito de democracia militante criado por Loewenstein deve servir como inspiração ou ponto de partida para a democracia responsiva. Mas não é suficiente para afrontar as inovações e perplexidades criadas pela disputa política na era digital. A ideia é que a democracia consiga se adaptar a todas as circunstâncias que impõem obstáculos para a sua compreensão e funcionamento, não se limitando apenas aos grupos partidários. Seus mecanismos de defesa devem variar conforme os desafios colocados pelo sistema político como um todo.

Em tempos de e-democracy, a democracia responsiva precisa encontrar meios para impedir sobretudo os ataques desferidos contra ela no mundo virtual [3]. Estas investidas digitais contra o sistema democrático se amparam, via de regra, na sensação de que as redes são uma espécie de estado de natureza hobbesiano, onde a "guerra de todos contra todos" substitui o Estado Democrático de Direito. Não são. Na verdade, a liberdade de todos só é possível se nenhuma liberdade individual for ilimitada (D. Grimm).

A democracia que se defende ou democracia responsiva, portanto, é aquela que procura se preservar de agressões políticas voltadas para a sua desestruturação completa ou parcial. É uma ideia de democracia através da qual o regime se protege de ataques promovidos por setores do Estado ou pela própria sociedade. Com base nisso, a democracia responsiva parte do pressuposto de que a decisão política plasmada na Constituição deve ser preservada. É questão de defesa da ordem constitucional.

A finalidade da democracia responsiva é proteger a si própria, assegurando a estabilidade política, a segurança jurídica e a governabilidade. É também a preservação da normalidade jurídica e política a partir da qual funcionam o sistema político, a ordem constitucional e a vida de cada pessoa. Deixando de lado os momentos revolucionários, excepcionais em si mesmos, os atentados à democracia sempre têm início de forma localizada. São atos isolados ou setorizados. Por isso, a democracia responsiva deve neutralizar esses atos assim que eles aparecerem.

Além da estabilidade política e da normalidade constitucional, a democracia responsiva também tem como objetivo proteger a soberania popular. Mas como a soberania popular vai ser protegida contra atos ilícitos quando esses atos partirem de setores do povo? Trata-se de um paradoxo apenas aparente. A soberania popular prevista nas Constituições ocidentais como critério para a sua legitimação não se materializa apenas por meio da participação política em geral. Na verdade, a soberania se refere, principalmente, à proteção da Constituição enquanto decisão política tomada pelo povo no exercício do poder constituinte.

A Constituição de 88 estabeleceu o princípio da democracia responsiva. A conclusão de que a democracia deve se adaptar aos desafios por ela enfrentados com o fim de assegurar a sua permanência é inerente ao princípio democrático e à soberania popular (artigo 1º, parágrafo único, da Constituição de 1988). Nesse sentido, a democracia responsiva é um princípio constitucional dotado de total plenitude normativa. Além disso, o artigo 17 da Constituição de 1988 é expresso quando determina que é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, desde que resguardados o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais. Em suma, os partidos antissistemas e seus programas políticos são vedados pela Constituição.

A previsão do artigo 17 não se limita aos partidos políticos. O enunciado irradia seus efeitos por todo o sistema democrático: conjunto das instituições, ordem jurídica e dinâmica política em geral. Essa irradiação, que expande o alcance normativo do artigo 17 para além das agremiações partidárias, vale-se do ponto de vista de que a democracia brasileira como um todo funciona através dos partidos políticos. Por isso, quando o artigo 17 menciona a figura do partido político também determina que tudo aquilo relacionado à vida política das agremiações depende do respeito ao regime democrático, ao pluripartidarismo e aos direitos fundamentais.

Os instrumentos para a realização da democracia responsiva devem ser definidos a partir da concretização constitucional, o que depende, em cada caso, da atuação dos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário. No âmbito da jurisdição constitucional, "trata-se de promover uma interpretação da ordem constitucional capaz de equilibrar o fático e o normativo" [4], buscando a preservação da democracia enquanto núcleo da fórmula política da Constituição de 1988. Dito de outro modo, a jurisdição constitucional deve necessariamente aplicar o princípio da democracia responsiva aos casos levados à apreciação judicial. Afinal, o Estado e a Constituição servem à proteção dos cidadãos (E. Denninger).   

A Constituição possui historicidade. A Carta se adapta às contingências históricas para alcançar o objetivo de conformar a realidade. Nesse sentido, tendo a e-democracy como núcleo problemático, a democracia responsiva é especialmente sensível às agressões que lhe são desferidas a partir do ambiente virtual. A liberdade de expressão e a liberdade de reunião, indispensáveis para a configuração da democracia digital, não podem ser utilizadas contra os fundamentos do sistema democrático, sob pena de o Estado Democrático de Direito deixar de lado sua razão de ser: emancipar os seres humanos num ambiente onde o poder político seja limitado pelo Direito com o fim de garantir os direitos fundamentais.

 


[1] Karl Loewenstein. Militant Democracy and Fundamental Rights  Part 1. American Political Science Review, nº 31 (3): pp. 417–432, 1937; e Karl Loewenstein. Militant Democracy and Fundamental Rights  Part 2. American Political Science Review, nº 31 (4): pp. 638–658, 1937.

[2] Karl Loewenstein, Militant Democracy and Fundamental Rights – Part 1, ibidem, p. 428.

[3] O inimigo da democracia responsiva é sempre um ato; nunca uma pessoa. Isso significa que os mecanismos de defesa por ela utilizados devem se voltar contra o ato ilícito, afetando a pessoa que o pratica apenas de forma indireta e na medida da sua responsabilidade.

[4] Agassiz Almeida Filho. O processo de concretização dos direitos fundamentais. In: Curso de Direitos Fundamentais — em homenagem ao ministro Luís Roberto Barroso. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 02, 2022, p. 72.

Autores

  • é advogado, professor e autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (Forense, 2007), Introdução ao Direito Constitucional (Forense, 2008), Formação e Estrutura do Direito Constitucional (Malheiros, 2011) e 10 Lições Sobre Carl Schmitt (Vozes, 2014).

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