Direto do Carf

A mentira e a omissão na prestação de informações aduaneiras fora do prazo

Autores

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

9 de novembro de 2022, 8h00

Os textos religiosos, independente da religião, sempre trazem metáforas e mensagens interessantes. Na Bíblia, em Atos, Lucas narra os primeiros passos das comunidades cristãs, registrando a existência de uma comunhão de bens entre todos os membros, com a venda de suas propriedades e entrega dos valores aos apóstolos, que os repartiam a todos, segundo a necessidade de cada um.

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Nesse contexto, Atos 5: 1-10 narra a história de Ananias e Safira. Trata-se de um casal, membro dessa comunidade, que vendeu sua propriedade, mas que acabou retendo parte dos ganhos para si. Após a venda, Ananias foi ter com os apóstolos e entregou parte dos valores, pelo que foi imediatamente interpelado pelo ardil, caindo morto em seguida, antes que pudesse falar qualquer coisa. Pouco tempo depois, Safira — sem saber do ocorrido — é perguntada sobre o valor da venda, e mentiu afirmando que o preço teria sido menor que o real, vindo igualmente a morrer, de imediato.

Uma das interpretações mais tradicionais dessa história se relaciona à sofística distinção entre mentir e omitir a verdade (ou, como dizem jocosamente, "Eu não menti, eu omiti!"), apontando que diante do dever de informar algo, ambas as condutas devem ser consideradas da mesma forma, e com o mesmo rigor da punição comum ao casal.

Reprodução

Pois bem! Na coluna de hoje mais uma vez abordaremos um tema afeto ao Direito Aduaneiro, sujeito a julgamento no âmbito do Carf: a incidência da multa prescrita no artigo 107, inciso IV, alínea "f" do Decreto-lei 37/66 [1], na hipótese em que o depositário presta extemporaneamente as informações exigidas para fins de controle e conferência aduaneira.

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Segundo o referido dispositivo legal, incide multa de R$ 5.000,00 ao depositário ou ao operador portuário que deixe de prestar informação (1) sobre carga nele armazenada ou entregue sob sua responsabilidade e, ainda, (2) acerca de operações que execute. Quanto ao segundo item, por uma questão lógica, é evidente que compreende as operações realizadas pelos agentes mencionados que não consistam em armazenagem ou recebimento de carga sob sua responsabilidade, e cuja informação seja obrigatória pela legislação.

O objetivo dessa sanção é muito claro: induzir o administrado a prestar informações que permitam à Aduana promover a fiscalização e controle das operações de comércio exterior, exercendo seu poder de polícia, exatamente como prevê o artigo 237 da Constituição Federal [2]. Em outros termos, os bens jurídicos tutelados pelo artigo 107, inciso IV, alínea "f" do Decreto-lei 37/66 são a fiscalização e o controle aduaneiros, os quais se desdobram da ideia de soberania estatal.

Diante desse quadro, a primeira dúvida que surge seria quanto a natureza dessa infração, se meramente formal ou de natureza material. Essa definição é extremamente importante para uma questão comumente enfrentada pelo Carf, i.e., se a prestação extemporânea das informações exigidas do depositário no âmbito aduaneiro seria suficiente ou não para afastar a ocorrência da infração.

Caso se entenda que infração teria natureza material, a sua conclusão demandaria a produção do resultado danoso ao controle aduaneiro, podendo ensejar a conclusão de que a apresentação extemporânea das informações aduaneiras exigidas, mas antes de qualquer conduta fiscalizatória, seria suficiente para afastar a incidência do tipo infracional, já que não haveria prejuízo ao controle das operações. Ressalte-se que a atipicidade material, nesse caso, decorreria da ausência de ofensa concreta ao bem da vida, e não da exclusão da responsabilidade por denúncia espontânea, proscrita por força da Súmula Carf nº 126 [3].

Por outro lado, verifica-se que todas as decisões recentes do Carf partem do pressuposto comum de que a infração seria meramente formal e que, por isso, a simples não apresentação das informações no prazo e forma estabelecidos pela RFB significaria a incidência da infração, sendo-lhe inaplicável, como já dito acima, a denúncia espontânea (e.g. Ac. 3102-001.988 e 3402-007.562).

Paralelamente à situação da prestação extemporânea de informações, há a questão da retificação intempestiva (fora do prazo de informação) das declarações prestadas à RFB, pelo depositário. Nesses casos, há diversos precedentes [4] e a recente súmula Carf nº 186[5], todos analisando o artigo 107, inciso IV, alínea "e" do Decreto-Lei nº 37/66 [6], cuja redação é análoga à alínea "f", exigindo prestação de informações na forma e no prazo estabelecidos. Todos os precedentes sobre a matéria invocam entre seus fundamentos a Solução de Consulta Interna nº 2/2016, cuja ementa aduz que "As alterações ou retificações das informações já prestadas anteriormente pelos intervenientes não configuram prestação de informação fora do prazo, não sendo cabível, portanto, a aplicação da citada multa".

Aqui, entretanto, é preciso traçar uma distinção importante: a SCI nº 2/2016, em seu item 11, deixa claro que trata das hipóteses específicas quando há obrigatoriedade de alteração ou retificação de uma informação já prestada anteriormente, no prazo correto, a exemplo das retificações estabelecidas no artigo 27-A e seguintes da IN RFB nº 800/2007, que podem ser necessárias no decorrer ou para a conclusão da operação. Por outro lado, em nenhum dos casos precedentes da referida Súmula n. 186 se analisou a causa da alteração ou retificação extemporânea de informações, para verificar se se trataria de uma alteração/retificação obrigatória, ou decorrente de simples erro no preenchimento anterior das declarações.

Como a legislação dispõe, a infração decorreria da não prestação de informação no prazo ou na forma devidas. Há três elementos centrais que podem ser infringidos: 1) o cumprimento do dever no prazo devido (elemento temporal); 2) o cumprimento do dever na forma devida (elemento formal); e 3) a transmissão da informação devida (elemento material). Pelos seus elementos, essa infração comporta tanto uma modalidade omissiva, pelo não cumprimento do dever de forma integral, como uma modalidade comissiva, quando o cumprimento se dá com a ausência de um dos seus elementos essenciais (por exemplo, prestou declarou no prazo, mas sem qualquer informação exigida).

No caso das retificações não obrigatórias, decorrentes de erros — dolosos ou não -, que não foram objeto dos fundamentos da SCI nº 2/2016, o prazo e a forma foram cumpridos, mas não se prestou a informação devida — o núcleo central do dever administrativo — e ainda assim, o Carf entendeu pela atipicidade da conduta, afastando a cobrança da multa, pelo fato da informação ter sido carreada posteriormente, por meio da alteração/retificação.

Ora, na hipótese em que se transmite informações equivocadas, ainda que no prazo correto e sob a forma correta, não se pode concluir que houve "prestação de informações", como exigido pelo dever instrumental. Por outro lado, por não se tratar de retificação/alteração obrigatória, tampouco se poderia falar em aplicação direta da SCI nº 2/2016, que buscou conciliar a infração em análise a situações em que o administrado seria obrigado à modificação da informação já transmitida.

Desse modo, como conciliar o conteúdo da súmula nº 186 e os precedentes que a formaram, com a identificação de uma possível fundamentação universalizável (ratio decidendi) a casos análogos? Seria necessário reconhecer duas coisas.

Por um lado, deve-se reconhecer que há uma aplicação equivocada da SCI nº 2/2016 aos casos analisados, sem considerar o escopo restrito a que ele se referiu, e, consequentemente, uma opção das decisões em desconsiderar a distinção entre diferentes causas de alteração/retificação, que está na raiz da manifestação fazendária — o que, não obstante, não afetaria a aplicabilidade da súmula aos processos, tampouco justificaria distinguishing, mas poderia justificar posterior revogação do enunciado sumular, para viabilizar a rediscussão da matéria.

Além disso, dever-se-ia admitir que, para os precedentes, a causa da retificação/alteração extemporânea seria irrelevante para determinar a atipicidade da conduta, abrangendo inclusive as hipóteses em que os "dados" transmitidos estejam absolutamente errados e não teriam qualquer função de informação (e.g. o administrado que preencheu letras e números aleatórios nos campos que deveriam ser informados). Ressalte-se que esse é hoje o conteúdo normativo albergado pela Súmula nº 186, visto que em nenhum dos casos essa distinção foi tida como juridicamente relevante.

À luz do vigente conteúdo da súmula, há que se, também admitir que a transmissão de dados dolosamente falsos, desde que retificados posteriormente (ainda que fora do prazo), não corresponderia no tipo infracional. Por outro lado, não há como se confundir a conduta "prestar informação", que pressupõe um conteúdo informacional condizente com a realidade, com a conduta "transmitir declaração", no qual a ênfase reside na forma, independentemente do conteúdo informado.

Em termos práticos, na hipótese de reconhecimento da atipicidade pela retificação decorrente de dados sabidamente errados, o que a Súmula nº 186 está autorizando é que se prestem informações fora do prazo estabelecido, desde que dentro dele se tenha cumprido a "forma", transmitindo uma declaração própria, independentemente do seu conteúdo. Tanto na hipótese da prestação serôdia, quanto no caso de dados errados transmitidos no prazo, e posteriormente retificados, em ambos: 1) o dever instrumental não foi cumprido, em todos os seus elementos essenciais e 2) a informação, considerada como os dados condizentes com a realidade a ser controlada pela RFB, foi transmitida fora do prazo.

Em outras palavras, ao desconsiderar a causa da retificação/alteração para fins de atipicidade da conduta infracional, abrangendo inclusive a hipótese de erro deliberado, a Súmula nº 186 promove uma induvidosa aproximação entre duas situações aparentemente distintas, que envolvem flexibilizar temporalmente o cumprimento do elemento material do dever administrativo ("prestar informação").

Diante desse quadro, pergunta-se: na hipótese de prestação equivocada de informações por parte do administrado, o bem da vida tutelado nesses ilícitos aduaneiros (fiscalização e controle aduaneiro) também não teria sido afetado? O dano ao controle aduaneiro não seria idêntico na hipótese de apresentação intempestiva da informação e na hipótese de declaração no prazo, porém com um conteúdo aleatório ou sabidamente falso, e ulterior retificação para os dados corretos?

As perguntas acima formuladas são aqui apresentadas de forma retórica, já que ao se comparar as infrações aqui tratadas é possível concluir que nas duas situações o escopo do legislador é de tutelar um mesmo bem jurídico: a fiscalização e o controle aduaneiro, como é da natureza dos deveres instrumentais.

Tal como o dever de entrega dos bens em comunhão, na história bíblica citada inicialmente, cabe ao depositário entregar as informações à RFB, no prazo e forma adequadas, sobre as operações executadas e as cargas armazenadas.

Todo sistema de normas estruturado dogmaticamente, seja ele canônico ou jurídico, pressupõe coerência. Não pode o ordenamento dar um tratamento jurídico distinto para quem omite a informação que deveria enviar e para quem transmite dados sabidamente falsos, sem qualquer conteúdo informativo — a ofensa ao controle aduaneiro é equivalente. A mentira e a omissão, quando se trata do dever de informar, tem o mesmo efeito de impedir a capacidade do destinatário tomar ciência da realidade informada e agir em relação a ela. Daí merecem consideração e tratamento conjunto, desde os tempos bíblicos.

Ao desconsiderar a causa da retificação/alteração dos dados e considerar a atipicidade dessa conduta, a Súmula nº 186 acabou por "perdoar a mentira", desde que o infrator compareça espontaneamente e informe corretamente, o que deveria ter feito no passado. Por uma questão de coerência, a mesma valoração realizada pela súmula deveria ser replicada às hipóteses de omissão, quando o omisso compareça extemporaneamente para prestar as informações devidas.

Com base nesse raciocínio, parece-nos haver uma contradição evidente entre os precedentes mais recentes do Carf, no que diz respeito a infração capitulada no artigo 107, inciso IV, alínea "f" do Decreto-lei 37/66 e Súmula Carf nº 186, já que a omissão e a mentira são condutas análogas, que comprometem em igual medida o mesmo bem jurídico, devendo a "correção" de ambas receber o mesmo tratamento, levando em consideração que as decisões dos tribunais devem se manter estáveis, íntegras e coerentes, na linha do que prescreve o artigo 926 do CPC [7].

Nessa linha, parece-nos que, no cumprimento desse dever de informar, o tratamento dado ao Ananias, que omitiu as informações aduaneiras que deveriam ser prestadas no prazo, deve ser o mesmo dado à Safira, que transmitiu informações mentirosas à RFB. Por outro lado, o pio afrouxamento da tipicidade infracional, pelo cumprimento extemporâneo, deve ser dar na mesma medida para ambos.

 


[1] Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:

(…).

IV – de R$ 5.000,00 (cinco mil reais):

(…);

f) por deixar de prestar informação sobre carga armazenada, ou sob sua responsabilidade, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada ao depositário ou ao operador portuário;

(…).

[2] Art. 237. A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda.

[3] A denúncia espontânea não alcança as penalidades infligidas pelo descumprimento dos deveres instrumentais decorrentes da inobservância dos prazos fixados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil para prestação de informações à administração aduaneira, mesmo após o advento da nova redação do art. 102 do Decreto-Lei nº 37, de 1966, dada pelo art. 40 da Lei nº 12.350, de 2010.

[4] Ac. 9303-010.294, 3302-003.637, 3401-008.661, 3301-003.995 e 3201-007.106.

[5] "A retificação de informações tempestivamente prestadas não configura a infração descrita no artigo 107, inciso IV, alínea “e” do Decreto-Lei nº 37/66".

[6] e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e

[7] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Autores

  • é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

  • é advogado tributarista e aduanerista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutorando em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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