A mentira e a omissão na prestação de informações aduaneiras fora do prazo
9 de novembro de 2022, 8h00
Os textos religiosos, independente da religião, sempre trazem metáforas e mensagens interessantes. Na Bíblia, em Atos, Lucas narra os primeiros passos das comunidades cristãs, registrando a existência de uma comunhão de bens entre todos os membros, com a venda de suas propriedades e entrega dos valores aos apóstolos, que os repartiam a todos, segundo a necessidade de cada um.
Uma das interpretações mais tradicionais dessa história se relaciona à sofística distinção entre mentir e omitir a verdade (ou, como dizem jocosamente, "Eu não menti, eu omiti!"), apontando que diante do dever de informar algo, ambas as condutas devem ser consideradas da mesma forma, e com o mesmo rigor da punição comum ao casal.
Pois bem! Na coluna de hoje mais uma vez abordaremos um tema afeto ao Direito Aduaneiro, sujeito a julgamento no âmbito do Carf: a incidência da multa prescrita no artigo 107, inciso IV, alínea "f" do Decreto-lei 37/66 [1], na hipótese em que o depositário presta extemporaneamente as informações exigidas para fins de controle e conferência aduaneira.
O objetivo dessa sanção é muito claro: induzir o administrado a prestar informações que permitam à Aduana promover a fiscalização e controle das operações de comércio exterior, exercendo seu poder de polícia, exatamente como prevê o artigo 237 da Constituição Federal [2]. Em outros termos, os bens jurídicos tutelados pelo artigo 107, inciso IV, alínea "f" do Decreto-lei 37/66 são a fiscalização e o controle aduaneiros, os quais se desdobram da ideia de soberania estatal.
Diante desse quadro, a primeira dúvida que surge seria quanto a natureza dessa infração, se meramente formal ou de natureza material. Essa definição é extremamente importante para uma questão comumente enfrentada pelo Carf, i.e., se a prestação extemporânea das informações exigidas do depositário no âmbito aduaneiro seria suficiente ou não para afastar a ocorrência da infração.
Caso se entenda que infração teria natureza material, a sua conclusão demandaria a produção do resultado danoso ao controle aduaneiro, podendo ensejar a conclusão de que a apresentação extemporânea das informações aduaneiras exigidas, mas antes de qualquer conduta fiscalizatória, seria suficiente para afastar a incidência do tipo infracional, já que não haveria prejuízo ao controle das operações. Ressalte-se que a atipicidade material, nesse caso, decorreria da ausência de ofensa concreta ao bem da vida, e não da exclusão da responsabilidade por denúncia espontânea, proscrita por força da Súmula Carf nº 126 [3].
Por outro lado, verifica-se que todas as decisões recentes do Carf partem do pressuposto comum de que a infração seria meramente formal e que, por isso, a simples não apresentação das informações no prazo e forma estabelecidos pela RFB significaria a incidência da infração, sendo-lhe inaplicável, como já dito acima, a denúncia espontânea (e.g. Ac. 3102-001.988 e 3402-007.562).
Paralelamente à situação da prestação extemporânea de informações, há a questão da retificação intempestiva (fora do prazo de informação) das declarações prestadas à RFB, pelo depositário. Nesses casos, há diversos precedentes [4] e a recente súmula Carf nº 186[5], todos analisando o artigo 107, inciso IV, alínea "e" do Decreto-Lei nº 37/66 [6], cuja redação é análoga à alínea "f", exigindo prestação de informações na forma e no prazo estabelecidos. Todos os precedentes sobre a matéria invocam entre seus fundamentos a Solução de Consulta Interna nº 2/2016, cuja ementa aduz que "As alterações ou retificações das informações já prestadas anteriormente pelos intervenientes não configuram prestação de informação fora do prazo, não sendo cabível, portanto, a aplicação da citada multa".
Aqui, entretanto, é preciso traçar uma distinção importante: a SCI nº 2/2016, em seu item 11, deixa claro que trata das hipóteses específicas quando há obrigatoriedade de alteração ou retificação de uma informação já prestada anteriormente, no prazo correto, a exemplo das retificações estabelecidas no artigo 27-A e seguintes da IN RFB nº 800/2007, que podem ser necessárias no decorrer ou para a conclusão da operação. Por outro lado, em nenhum dos casos precedentes da referida Súmula n. 186 se analisou a causa da alteração ou retificação extemporânea de informações, para verificar se se trataria de uma alteração/retificação obrigatória, ou decorrente de simples erro no preenchimento anterior das declarações.
Como a legislação dispõe, a infração decorreria da não prestação de informação no prazo ou na forma devidas. Há três elementos centrais que podem ser infringidos: 1) o cumprimento do dever no prazo devido (elemento temporal); 2) o cumprimento do dever na forma devida (elemento formal); e 3) a transmissão da informação devida (elemento material). Pelos seus elementos, essa infração comporta tanto uma modalidade omissiva, pelo não cumprimento do dever de forma integral, como uma modalidade comissiva, quando o cumprimento se dá com a ausência de um dos seus elementos essenciais (por exemplo, prestou declarou no prazo, mas sem qualquer informação exigida).
No caso das retificações não obrigatórias, decorrentes de erros — dolosos ou não -, que não foram objeto dos fundamentos da SCI nº 2/2016, o prazo e a forma foram cumpridos, mas não se prestou a informação devida — o núcleo central do dever administrativo — e ainda assim, o Carf entendeu pela atipicidade da conduta, afastando a cobrança da multa, pelo fato da informação ter sido carreada posteriormente, por meio da alteração/retificação.
Ora, na hipótese em que se transmite informações equivocadas, ainda que no prazo correto e sob a forma correta, não se pode concluir que houve "prestação de informações", como exigido pelo dever instrumental. Por outro lado, por não se tratar de retificação/alteração obrigatória, tampouco se poderia falar em aplicação direta da SCI nº 2/2016, que buscou conciliar a infração em análise a situações em que o administrado seria obrigado à modificação da informação já transmitida.
Desse modo, como conciliar o conteúdo da súmula nº 186 e os precedentes que a formaram, com a identificação de uma possível fundamentação universalizável (ratio decidendi) a casos análogos? Seria necessário reconhecer duas coisas.
Por um lado, deve-se reconhecer que há uma aplicação equivocada da SCI nº 2/2016 aos casos analisados, sem considerar o escopo restrito a que ele se referiu, e, consequentemente, uma opção das decisões em desconsiderar a distinção entre diferentes causas de alteração/retificação, que está na raiz da manifestação fazendária — o que, não obstante, não afetaria a aplicabilidade da súmula aos processos, tampouco justificaria distinguishing, mas poderia justificar posterior revogação do enunciado sumular, para viabilizar a rediscussão da matéria.
Além disso, dever-se-ia admitir que, para os precedentes, a causa da retificação/alteração extemporânea seria irrelevante para determinar a atipicidade da conduta, abrangendo inclusive as hipóteses em que os "dados" transmitidos estejam absolutamente errados e não teriam qualquer função de informação (e.g. o administrado que preencheu letras e números aleatórios nos campos que deveriam ser informados). Ressalte-se que esse é hoje o conteúdo normativo albergado pela Súmula nº 186, visto que em nenhum dos casos essa distinção foi tida como juridicamente relevante.
À luz do vigente conteúdo da súmula, há que se, também admitir que a transmissão de dados dolosamente falsos, desde que retificados posteriormente (ainda que fora do prazo), não corresponderia no tipo infracional. Por outro lado, não há como se confundir a conduta "prestar informação", que pressupõe um conteúdo informacional condizente com a realidade, com a conduta "transmitir declaração", no qual a ênfase reside na forma, independentemente do conteúdo informado.
Em termos práticos, na hipótese de reconhecimento da atipicidade pela retificação decorrente de dados sabidamente errados, o que a Súmula nº 186 está autorizando é que se prestem informações fora do prazo estabelecido, desde que dentro dele se tenha cumprido a "forma", transmitindo uma declaração própria, independentemente do seu conteúdo. Tanto na hipótese da prestação serôdia, quanto no caso de dados errados transmitidos no prazo, e posteriormente retificados, em ambos: 1) o dever instrumental não foi cumprido, em todos os seus elementos essenciais e 2) a informação, considerada como os dados condizentes com a realidade a ser controlada pela RFB, foi transmitida fora do prazo.
Em outras palavras, ao desconsiderar a causa da retificação/alteração para fins de atipicidade da conduta infracional, abrangendo inclusive a hipótese de erro deliberado, a Súmula nº 186 promove uma induvidosa aproximação entre duas situações aparentemente distintas, que envolvem flexibilizar temporalmente o cumprimento do elemento material do dever administrativo ("prestar informação").
Diante desse quadro, pergunta-se: na hipótese de prestação equivocada de informações por parte do administrado, o bem da vida tutelado nesses ilícitos aduaneiros (fiscalização e controle aduaneiro) também não teria sido afetado? O dano ao controle aduaneiro não seria idêntico na hipótese de apresentação intempestiva da informação e na hipótese de declaração no prazo, porém com um conteúdo aleatório ou sabidamente falso, e ulterior retificação para os dados corretos?
As perguntas acima formuladas são aqui apresentadas de forma retórica, já que ao se comparar as infrações aqui tratadas é possível concluir que nas duas situações o escopo do legislador é de tutelar um mesmo bem jurídico: a fiscalização e o controle aduaneiro, como é da natureza dos deveres instrumentais.
Tal como o dever de entrega dos bens em comunhão, na história bíblica citada inicialmente, cabe ao depositário entregar as informações à RFB, no prazo e forma adequadas, sobre as operações executadas e as cargas armazenadas.
Todo sistema de normas estruturado dogmaticamente, seja ele canônico ou jurídico, pressupõe coerência. Não pode o ordenamento dar um tratamento jurídico distinto para quem omite a informação que deveria enviar e para quem transmite dados sabidamente falsos, sem qualquer conteúdo informativo — a ofensa ao controle aduaneiro é equivalente. A mentira e a omissão, quando se trata do dever de informar, tem o mesmo efeito de impedir a capacidade do destinatário tomar ciência da realidade informada e agir em relação a ela. Daí merecem consideração e tratamento conjunto, desde os tempos bíblicos.
Ao desconsiderar a causa da retificação/alteração dos dados e considerar a atipicidade dessa conduta, a Súmula nº 186 acabou por "perdoar a mentira", desde que o infrator compareça espontaneamente e informe corretamente, o que deveria ter feito no passado. Por uma questão de coerência, a mesma valoração realizada pela súmula deveria ser replicada às hipóteses de omissão, quando o omisso compareça extemporaneamente para prestar as informações devidas.
Com base nesse raciocínio, parece-nos haver uma contradição evidente entre os precedentes mais recentes do Carf, no que diz respeito a infração capitulada no artigo 107, inciso IV, alínea "f" do Decreto-lei 37/66 e Súmula Carf nº 186, já que a omissão e a mentira são condutas análogas, que comprometem em igual medida o mesmo bem jurídico, devendo a "correção" de ambas receber o mesmo tratamento, levando em consideração que as decisões dos tribunais devem se manter estáveis, íntegras e coerentes, na linha do que prescreve o artigo 926 do CPC [7].
Nessa linha, parece-nos que, no cumprimento desse dever de informar, o tratamento dado ao Ananias, que omitiu as informações aduaneiras que deveriam ser prestadas no prazo, deve ser o mesmo dado à Safira, que transmitiu informações mentirosas à RFB. Por outro lado, o pio afrouxamento da tipicidade infracional, pelo cumprimento extemporâneo, deve ser dar na mesma medida para ambos.
[1] Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:
(…).
IV – de R$ 5.000,00 (cinco mil reais):
(…);
f) por deixar de prestar informação sobre carga armazenada, ou sob sua responsabilidade, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada ao depositário ou ao operador portuário;
(…).
[2] Art. 237. A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda.
[3] A denúncia espontânea não alcança as penalidades infligidas pelo descumprimento dos deveres instrumentais decorrentes da inobservância dos prazos fixados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil para prestação de informações à administração aduaneira, mesmo após o advento da nova redação do art. 102 do Decreto-Lei nº 37, de 1966, dada pelo art. 40 da Lei nº 12.350, de 2010.
[4] Ac. 9303-010.294, 3302-003.637, 3401-008.661, 3301-003.995 e 3201-007.106.
[5] "A retificação de informações tempestivamente prestadas não configura a infração descrita no artigo 107, inciso IV, alínea “e” do Decreto-Lei nº 37/66".
[6] e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e
[7] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
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