Opinião

Impactos trabalhistas do limbo previdenciário

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6 de novembro de 2022, 6h04

Na ocorrência de acidentes ou desenvolvimento de doenças ocupacionais, é comum que os empregados fiquem temporariamente incapacitados para o trabalho. Nessa hipótese, a regra geral é de que empregadores devem arcar com o pagamento dos salários durante os 15 primeiros dias de afastamento e, quando excedido este tempo, os profissionais devem ser encaminhados ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para avaliação.

Referida avaliação previdenciária pode ser realizada por meio de perícias e análise documental, tal como autorizado pela Medida Provisória nº 1.113/2022, com a posterior concessão de benefícios por incapacidade temporária, a depender do preenchimento dos requisitos legais. De qualquer forma, após a declaração de aptidão para o exercício de suas funções profissionais, os benefícios previdenciários são cessados e os segurados devem retornar ao trabalho. A Norma Regulamentadora nº 7 determina a realização de exame clínico antes que os empregados reassumam suas funções sempre que o afastamento ultrapassar 30 dias. E, neste momento, não é raro que determinadas circunstâncias impeçam o regresso do empregado, como planejado.

Ocorre que com cada vez mais frequência há casos nos quais os empregados são declarados aptos ao trabalho pelo órgão previdenciário, mas considerados inaptos pelos médicos das empresas. Ou seja, os profissionais deixam de receber a prestação previdenciária concedida pelo INSS, mas não podem retornar à sua posição. Essa situação já se repetiu tantas vezes que foi apelidada de "limbo previdenciário".

Não há atualmente no ordenamento jurídico brasileiro qualquer disposição que trate especificamente a respeito desse problema, o que traz uma forte sensação de insegurança tanto para os profissionais com incapacidade temporária, como para seus empregadores. Afinal, quem deverá suportar o ônus financeiro no período de afastamento não coberto por benefício previdenciário?

O entendimento majoritário da Justiça do Trabalho tem sido no sentido de que os empregadores são responsáveis pelo pagamento dos salários durante o limbo previdenciário, apesar da inexistência de previsão legal expressa nesse sentido. Com isso, muitas decisões trabalhistas condenam as empresas, com base no princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição, sustentando que os profissionais não podem ficar desamparados financeiramente neste momento. E, sendo o empregador o detentor do poder econômico, deve suportar os riscos inerentes à atividade empresarial.

É preciso ressaltar, no entanto, que uma análise cautelosa da fundamentação de tais decisões proferidas pela Justiça do Trabalho é suficiente para perceber que há, por vezes, excessos na responsabilização dos empregadores. Embora não se discuta a necessidade de que empregados sejam amparados financeiramente em momentos de incapacidade laboral, a condenação das empresas de forma quase "automática", sem a ponderação sobre os elementos concretos constantes dos autos, também não parecer ser razoável. Essa simplificação da análise jurídica gera uma transferência das funções de seguridade social do estado para a iniciativa privada.

Ao contrário do que os tribunais muitas vezes sugerem em suas decisões, mesmo após a alta previdenciárias há, de fato, um impedimento para o retorno ao trabalho. Isso ocorre não apenas pelo fato do empregado não ter condições de desempenhar suas atividades com a perfeição técnica necessária, bem como pela preocupação de eventual agravamento da condição existe ou a possibilidade de desencadear outros acidentes ou doenças. A recusa corporativa da retomada das atividades não deve ser vista como um ato obstativo, motivado por negligência ou mesmo má-fé ou, mas, como uma verdadeira atuação preventiva do empregador em matéria de saúde e segurança ocupacional. Tanto é assim que, por inúmeras vezes, a conclusão apresentada pelo médico do trabalho da empresa é corroborada por médicos particulares dos empregados afastados. Também não é por acaso que são inúmeras as decisões judiciais que adotam conclusão pericial contrária àquela emanada pelo INSS.

Não obstante as questões acima, o Tribunal Superior do Trabalho entende que a declaração de aptidão do INSS goza de presunção de veracidade por ser um documento produzido no âmbito da autarquia federal, sendo que o Atestado de Saúde Ocupacional elaborado pelo médico do trabalho da empresa não poderia se sobrepor ao referido laudo do INSS, especialmente porque a Lei 605/59 prevê uma verdadeira hierarquia entre os atestados médicos.

Se, por um lado, os documentos públicos gozam — e devem gozar — de presunção de veracidade, por outro, não parece razoável que o Poder Judiciário simplesmente ignore a realidade dos fatos: buscando a redução de encargos financeiros, o INSS concede, com certa frequência, alta previdenciária mesmo quando os empregados não têm condições efetivas de trabalhar. Nesse contexto, e a despeito da inexistência de obrigação legal específica, as empresas são obrigadas a arcar com um ônus financeiro que, na realidade, deveria ser suportado pelo órgão de seguridade social.

Levando em consideração tais particularidades, é certo que o racional adotado pelo Poder Judiciário viola o princípio da legalidade da Constituição Federal, além de ferir o princípio da universalidade que rege a Previdência Social, tendo em vista que os segurados são privados do acesso às prestações previdenciárias que, por lei, lhe são asseguradas.

Visando positivar o já consolidado entendimento jurisprudencial, o Projeto de Lei nº 6.526/2019, de autoria do deputado federal Túlio Gadêlha (PDT), propõe que caso seja constatada, em discussão judicial, a inaptidão do empregado para o trabalho, o benefício previdenciário deverá ser concedido e/ou restabelecido. Por outro lado, caso haja a constatação de aptidão ao trabalho, o empregador será condenado ao pagamento dos salários e demais vantagens previstas em lei, normas coletivas ou contrato individual durante o período de afastamento, além do dever de ressarcir ao INSS eventuais valores pagos em razão de tutela provisória.

A proposta peca, no entanto, ao não diferenciar os casos em que o afastamento laboral é decorrente de doenças ocupacionais e/ou acidentes de trabalho, daqueles em que a doença não guarda qualquer relação com o labor. Afinal, não é razoável que o empregador tenha que arcar com o ônus financeiro do limbo de forma idêntica em situações tão distintas. Neste ponto, a proposta poderia ter flexibilizado este entendimento, trazendo maiores nuances e critérios específicos de forma a prestigiar a conduta das empresas atuantes na prevenção de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais.

Também chama a atenção o fato de que o projeto autoriza juízes trabalhistas a conceder tutela provisória para determinar que o empregador promova o pagamento dos salários ao empregado, ou que o INSS restabeleça o benefício previdenciário. Nos termos da legislação em vigor, a concessão de qualquer tutela provisória tem como pressuposto a coexistência dos requisitos de probabilidade de direito e perigo de dano ou risco de resultado útil ao processo.

Por outro lado, a hipótese de limbo previdenciário é marcada por inegável controvérsia ou litigiosidade, que, em tese, somente poderia ser dirimida por meio de uma avaliação médica criteriosa por perito nomeado pelo juízo. Nessas circunstâncias, parece difícil — se não improvável —, que na fase inicial de um processo seja possível haver inequívoco direito que autorize o deferimento da tutela provisória que se alie ao perigo de dano potencial. Dessa forma, a princípio, entende-se que a concessão de tutela somente poderia ocorrer em caso de comprovação de risco ao resultado útil do processo, embora o PL não faça essa distinção.

Está claro que o limbo previdenciário precisa ser regulamentado de forma adequada e com urgência. No entanto, caso aprovado, o projeto de lei mencionado poderá diminuir a insegurança jurídica atualmente enfrentada, mas não eliminará o ônus financeiro dos empregadores. Neste aspecto, é imprescindível que os tribunais trabalhistas se debrucem sobre a temática com cautela e razoabilidade, analisando as particularidades de cada caso concreto, sob pena de se impor um rigor excessivo às empresas e, a depender das circunstâncias, inviabilizar a continuidade da atividade econômica.

E, até que essa questão seja tratada de forma apropriada, para a mitigação dos riscos, o ideal é que os empregados continuem a ser afastados do trabalho no caso de incapacidade temporária e, se possível, com concessão de uma licença remunerada até que haja o restabelecimento do benefício pelo INSS — seja na esfera administrativa ou judicial. Neste caso, se constatada a efetiva incapacidade para o trabalho, o empregador poderá ingressar posteriormente com ação em face do INSS para ressarcimento dos valores pagos durante o limbo previdenciário.

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