A (falta de) responsabilidade territorial do Estado no Brasil
22 de outubro de 2022, 7h07
Ao longo das décadas desde a independência do país, com a consolidação da ordem jurídica a doutrina da "Responsabilidade do Estado" avançou no Brasil e passou a incorporar novas dimensões: às noções tradicionais de "Responsabilidade Política" e "Responsabilidade Administrativa" do Estado mais recentemente se somou a noção da "Responsabilidade Fiscal", que tem sido cada vez mais reconhecida pela legislação, pela jurisprudência e pela prática efetiva da gestão pública.
Contudo, uma quarta dimensão fundamental da noção de "Responsabilidade do Estado" continua amplamente ignorada no Brasil, qual seja, a "Responsabilidade Territorial" do Estado — noção essa que implica na obrigação do Estado, em todas as esferas governamentais, formular e implementar políticas públicas de ordenamento territorial nas quais interesses e direitos individuais e privados sejam articulados com interesses e direitos estatais, coletivos, comunitários e sociais. A uma tal obrigação do Estado corresponde um direito coletivo de todos os cidadãos a terem o território do país — em última análise, um bem não renovável — devidamente ordenado.
O fato é que, país de dimensões continentais, o Brasil não tem uma política nacional organizada e efetiva de ordenamento territorial — e o Estado brasileiro não tem exercido o devido controle sobre o território nacional. Fronteiras porosas têm colocado em risco a segurança do país, como indicado pelo rápido avanço do crime internacional organizado na chamada Tríplice Fronteira no sul do país, assim como na Amazônia. Ecossistemas e biomas de importância nacional e mesmo internacional como o cerrado, a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica têm sido sistematicamente destruídos pelo avanço de atividades econômicas, legais e ilegais, que não consideram a importância do manejo e da conservação dos recursos naturais. Recursos hídricos que pareciam inesgotáveis têm sido cada vez mais comprometidos por uma série de atividades estatais e privadas predatórias e poluentes. Falta a territorialização efetiva de um amplo zoneamento ecológico-econômico na Amazônia, falta a demarcação de reservas de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, falta uma política territorial que articule projetos e programas de desenvolvimento econômico — industrial, minerário, agropecuário etc. — entre si e com outros interesses socioambientais.
Tal falta de uma política territorial está na raiz de muitos dos problemas hídricos, energéticos, ambientais, econômicos e sociais do Brasil. Na base dessa situação está a noção equivocada de que os direitos individuais de propriedade privada são superiores a qualquer poder, direito e dever do Estado no controle e regulação dos processos de uso, ocupação, parcelamento e conservação do solo. A ideologia civilista privatista do Sec. XIX ainda domina em boa medida, permeando diversas esferas da vida socioeconômica do país e renovando a cultura patrimonialista, mercantilista e clientelista tradicional. Não existe no Brasil a compreensão de que, como atributo mesmo de sua soberania territorial, o Estado tem o domínio eminente sobre o território nacional — cujas formas e medidas de aproveitamento não podem ser ditados tão-somente pelos interesses individuais de proprietários. O princípio constitucional da "função social de propriedade" — condição mesmo do reconhecimento desse direito — continua sendo retórico em grande medida. Num tempo em que diversos países têm reconhecido direitos próprios à natureza — com rios e florestas sendo tratados como pessoas jurídicas —, no Brasil a ordem jurídica ainda tem negligenciado a necessidade de tratamento articulado do território pelo Estado. Na falta de qualquer responsabilização, ações intrinsecamente predatórias e desastres evitáveis são tratados como meros "acidentes".
Essa situação tem sido agravada ainda mais pela falta de um registro confiável das propriedades existentes no país, públicas e privadas. Não existe um cadastro nacional sólido das propriedades públicas, não existe um cadastro nacional compreensivo das propriedades rurais, e mesmo nas áreas urbanas os registros dos diversos cartórios são fragmentados e não são devidamente articulados uns com os outros. Em certas comarcas, registros imobiliários cobrem áreas maiores do que todo o território municipal. Invasões, grilagens, demarcações imprecisas e registros fraudulentos ainda dominam em boa parte do país. A Lei de Terras de 1850 e o Decreto que criou o Registro de 1854 não foram acompanhadas dos necessários estudos cartográficos e acabaram se prestando mais para consolidar a cultura liberal clássica que estabelece que somente o registro é constitutivo da propriedade e permite a propriedade sem posse, assim levando à enorme concentração de bens, à especulação imobiliária e à formação do enorme estoque de terras vazias e construções subutilizadas no país. A verdade é que a estrutura fundiária do país ainda é desconhecida em boa medida.
Esse quadro de irresponsabilidade territorial na esfera federal se reproduz na esfera estadual e, mais grave ainda, na esfera municipal. A competência dos municípios para promover seu ordenamento territorial tem sido propagada nas últimas décadas, com o avanço do municipalismo no país — mesmo de maneira artificial e exagerada a ponto de excluir, para muitos, a competência dos demais entes federativos —, mas até hoje são poucos os municípios que o fizeram. A Constituição Federal de 1988 determinou que municípios com mais de 20 mil habitantes, além de outras categorias especificas, têm a obrigação de formular e aprovar seus Planos Diretores — obrigação essa repetida pelo Estatuto da Cidade, a Lei Federal 10.257 de 2001. É inegável que o fato de que mais de 1.400 municípios o fizeram é de enorme importância. Contudo, a maioria dos outros 4.000 Municípios continua sem ter uma ordem territorial básica, ainda que menos complexa do que um Plano Diretor.
Cabem também críticas aos conteúdos e condições de aplicação desses Planos Diretores Municipais: na sua maioria, eles não enfrentam a estrutura fundiária vigente, não dão uma função social adequada às propriedades vazias e subutilizadas, públicas e privadas, e assim acabam por reforçar processos tradicionais de segregação socioespacial e fragmentação da malha urbana. Quando existem, as leis municipais de uso e ocupação do solo tendem a obedecer e reforçar as dinâmicas dos mercados imobiliários e os interesses dos proprietários, e, elitistas e burocráticas, acabam por determinar os processos de produção informal do espaço urbano e de acesso à moradia nas cidades. Leis municipais que determinam o que pode acontecer onde, como e quando no território municipal, reservando como fazem áreas para equipamentos, distritos industriais, parques, etc., continuam se recusando a dizer onde nesse mesmo território deve se dar a moradia de interesse social. As mesmas leis que não têm problemas em dizer onde no território municipal podem acontecer os condomínios urbanísticos e os bairros de classes médias e altas continuam remetendo a determinação de onde devem viver os mais pobres às forças do mercado imobiliário: o lugar dos pobres nas cidades acaba assim sendo as áreas fora do mercado formal como as áreas públicas, áreas verdes, fundos de vale e topos de morros, fazendo com que milhões de pessoas vivam precária e perigosamente.
A maioria dessas leis tampouco trata das zonas rurais — que com frequência são reduzidas ou mesmo extintas pelos municípios meramente por razões tributárias —, com o que essas áreas de enorme importância se encontram em um limbo jurídico de várias maneiras. O urbanismo brasileiro não se articula com a política fundiária e com frequência, na falta de sua territorialização, os objetivos dos planos governamentais acabam se tornando meras declarações de boas intenções. Bens culturais são tombados sem que o uso e a ocupação de seu entorno também sejam regulamentados. Nas regiões metropolitanas, os planos metropolitanos são esvaziados pelos planos municipais. E por aí…
Essa compreensão de que qualquer noção de "Responsabilidade do Estado" fica incompleta não se incorporar a dimensão da "Responsabilidade Territorial" se faz urgente: no Brasil como em outros lugares, os processos combinados de epidemias, mudanças climáticas e desastres extremos já indicaram de forma dramática o papel central do ordenamento territorial na determinação de como as pessoas vivem, trabalham, se deslocam — e morrem — nas cidades e outros lugares.
A promoção do ordenamento territorial em todas as esferas governamentais não pode ser facultativa e nem ficar refém das forças do mercado imobiliário. Infelizmente, no bojo das medidas que têm levado ao desmonte da ordem jurídica urbanístico-ambiental do país, a Lei Federal no. 13.465/2017 — tido por muitos como "a nova Lei de Terras" — só tem feito reforçar a visão individualista dos direitos de propriedade imobiliária. Um esforço parcial de aprovar uma "Lei de Responsabilidade Territorial" — Projeto de Lei nº 3.057/2000/nº 20/2007 — encontra-se parado no Congresso Nacional há décadas.
O reconhecimento da "Responsabilidade Territorial do Estado" é a condição para a promoção de desenvolvimento socioeconômico e socioambiental sustentável, resiliente, eficiente e justo no Brasil, dando concretude não apenas ao princípio constitucional da função social propriedade, mas também ao ideal universal de reconhecimento do valor social da terra.
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