Opinião

Limites interpretativos do artigo 355, parágrafo único, do Código Penal

Autores

  • Thales Sousa da Silva

    é assessor judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (matéria cível) servidor efetivo do TJ-DF especialista em Direito Penal e Processual Penal autor no Canal de Ciências Criminais e no Internacional Center for Criminal Studies (ICC) colaborador no Empório do Direito e membro do Clube Metajurídico.

  • Victor Oliveira Lopes da Franca

    é acadêmico de Direito produtor de conteúdo jurídico no perfil @_academiapenal e articulista.

27 de março de 2022, 7h02

Como elemento garantidor que é, o direito penal fundou-se sobre cânones que lhe conferem o caráter objetivo indispensável para atender aos desígnios do princípio da legalidade, bem representado, nesse campo de conformação, pela máxima nullum crimen nulla poena sine lege. Todavia, o tão só descrever de um comportamento proibido nos estatutos criminais é fator insuficiente para legitimar a pretensão punitiva, se dissociada das funções próprias a esse múnus.

A doutrina moderna, inspirada no funcionalismo teleológico, tem reconhecido como finalidade precípua da pena a integração do tecido social e a preservação de bens jurídicos. Com esse sentir, as intervenções do Estado na sociedade por intermédio do sistema de justiça devem ser excepcionais, não incidindo quando projetem mais severa ofensa que a conduta, em tese, desviante.

Nesse caminho, Claus Roxin leciona que o direito penal moderno tem por objetivo a melhor conformação social possível, conciliando-se a necessidade de prevenir os delitos com a proteção dos direitos do infrator, inadmitidas intervenções estatais despropositadas. Em suas palavras, "a melhor política criminal consiste em conciliar a melhor forma possível de prevenção geral, a prevenção especial orientada para a integração da sociedade e a limitação das penas em um Estado de Direito". (ROXIN, 2000, p. 31-34)

Com efeito, o preceito da legalidade não se deve alhear ao exame da necessidade de punir, pelo aspecto preventivo e, paralelamente, da efetiva lesão ao bem jurídico tutelado. Nessa guisa, Claus Roxin articula que, também do ponto de vista político-criminal, há que se conceber uma dupla limitação ao poder-dever de punir, orientado para evitar o cometimento de delitos futuros, calcada na análise da culpabilidade e da legitimação preventiva da pena. (ROXIN, 2000, p.  70-72).

Em certo nível, o princípio da lesividade é examinado no conceito analítico tradicional quando vincula a tipicidade ao resultado, normativo ou naturalístico, entenda-se: o resultado é elemento do fato típico. O preceito de que falamos também tem lugar no campo da ilicitude, uma vez que a conduta é justificada quando, seja pelo aspecto normativo ou social, não produz ofensas merecedoras de intervenção.

Já nas linhas do proposto por Claus Roxin, o preceito da necessidade/lesividade assume relevância tal que passa a figurar como substrato analítico para a teoria do crime, conjuntamente ao plano da culpabilidade. Nesse modelo, o delito deve ser compreendido nos campos analíticos da tipicidade, antijuridicidade e responsabilidade (culpabilidade + necessidade da pena). Em outras palavras, o doutrinador alemão aloca no terceiro substrato da Teoria do Crime, o qual nomeou "responsabilidade", a aferição da necessidade de punir.

Embora o conceito analítico de Roxin não seja ostensivamente adotado no Brasil, a tipicidade conglobante, desenvolvida por E. Zaffaroni e amplamente aceita pela doutrina e jurisprudência pátrias, antecipa a análise da lesividade-necessidade para o plano tipicidade, em seu aspecto material.

Feitos os aportes introdutórios, questiona-se se, ao instituir as figuras típicas a que alude o artigo 355, parágrafo único, do Código Penal, o legislador se pautou pelo critério da necessidade, ao fim de, em caso negativo, estabelecer contornos de interpretação da norma vertente.

Pois bem. O artigo 355 do Código Penal tipifica a conduta de "trair, na qualidade de advogado ou procurador, o dever profissional, prejudicando interesse, cujo patrocínio, em juízo, lhe é confiado: pena – detenção, de seis meses a três anos, e multa". Por seu turno, o parágrafo único da referida norma dispõe: "incorre na pena deste artigo o advogado ou procurador judicial que defende na mesma causa, simultânea ou sucessivamente, partes contrárias" (patrocínio simultâneo ou tergiversação).

No nosso perceber, a figura do caput refere crime material, o qual se consuma no momento em que o patrono trai o seu dever e prejudica o interesse subjetivo que lhe fora confiado (CUNHA, 2020, P. 1052). Ainda, o exame criterioso do tipo revela a necessidade de demonstrar, para a sua caracterização, o especial fim de agir, consubstanciado no intento de prejudicar o interesse da parte que defende em Juízo.

Lado outro, a norma proibitiva inserta no parágrafo único, se interpretada estritamente, retrata delito de mera conduta que, por consectário, consuma-se com a simples ação de patrocinar, simultânea (patrocínio simultâneo) ou sucessivamente (tergiversação), partes contrárias em Juízo. É dizer, basta que o causídico, de modo consciente e voluntário, figure em polos distintos da demanda, ainda que não necessariamente no curso de um mesmo procedimento.  

Com a devida vênia, a interpretação acima exposta não se revela a mais adequada quando realizado o seu cotejo com os princípios norteadores da dogmática penal. No nosso entendimento, para o subsumir de uma ação humana, consciente e voluntária, na norma que define o tipo vertente, necessária a concreta análise dos interesses em disputa pelos atores criminais, à luz das normas que regem o exercício da advocacia no Brasil, o que detalharemos adiante.

Em verdade, o ilícito de que falamos consiste em um ato de traição e, nessa qualidade, haveria que depender, tal qual a figura do caput, do efetivo prejuízo aos interesses processuais da parte, ou ao menos de estar demonstrada a intenção do defensor de produzir tal resultado danoso.

Nesse elastério, consentânea a inteligência de que, assim como a verificação do delito de furto exige o dissenso da vítima, pois pressuposto do ato de subtrair, o patrocínio simultâneo e a tergiversação têm por elemento descritivo implícito a colidência de interesses entre as partes processuais que, simultânea ou sucessivamente, o advogado venha a defender, só assim se podendo determinar o que sejam partes contrárias, sob pena de se estar diante de uma figura típica que não tutela bem jurídico algum, por incidir sobre conduta destituída de caráter antissocial.

Ora, não é de todo incrível que o patrono defenda partes opostas sem lhes prejudicar processualmente, máxime quando exista convergência de interesses. É o que ocorre, a título de exemplo, nas hipóteses do protocolo de pedidos de desistência, perdão do ofendido, retratação da representação, retratação da ofensa, ou da prática de atos que conduzam ao reconhecimento da perempção. No âmbito processual civil, é característica da homologação judicial de acordos.

Há, ainda, situações em que, a despeito de constarem do mesmo polo da demanda, seja por litisconsórcio facultativo, no âmbito processual civil, ou concorrência de agentes, no âmbito processual penal, as partes promovem pretensões colidentes, o que desaconselharia o seu patrocínio por um só defensor.

Não raro, no fenômeno da codelinquência, os corréus sustentam estratégias defensivas contrapostas, propriamente, quando a defesa de um acusado pressupõe a incriminação dos demais. Referido cenário ganhou azo com a guinada consensualista do processo, a qual implicou a expansão dos espaços de discricionariedade do Ministério Público para tratar com os imputados, tema no qual não nos imiscuiremos.

Como dito alhures, nos casos em que o advogado funciona em ambos os polos da demanda sem que haja conflito de interesses, não existe falar nos delitos de patrocínio simultâneo e/ou tergiversação. Doutra parte, diante das dificuldades interpretativas aqui denunciadas, também nas hipóteses em que o defensor figura em um único polo da demanda mas sustenta interesses contrários de mais de uma parte, não há cogitar da responsabilidade criminal do agente, haja vista que o direito penal, por força do statu negativo que o orienta, pauta-se pela hermenêutica mais favorável ao réu (favor rei  interpretação pro homine). Com efeito, não poderia o agente responder nos termos do tipo em voga, pois, conforme antes esboçado, a verificação da tipicidade depende de as partes por ele patrocinadas estarem ou haverem estado em posições opostas e existir colidência de interesses, em nossa concepção, pressupostos do conceito de "partes contrárias".

Conquanto o tipo incriminador não apresente os caracteres de uma norma penal em branco, temos que a ideal exegese de seu preceito primário, no que toca ao elemento implícito da divergência de demandas, socorre-se ao disposto no artigo 18 do Código de Ética da Advocacia, que, a despeito de não conceituar o conflito de interesses, conduz o entendimento de que a sua verificação depende do não contentamento das partes com o patrocínio simultâneo ou sucessivo:

"PATROCÍNIO  CLIENTES COM INTERESSES CONVERGENTES  INEXISTÊNCIA DE CONFLITO ENTRE CONSTITUINTE. O advogado pode representar mais de um cliente no mesmo polo do feito, desde que não haja conflito de interesses entre os constituintes. Surgindo controvérsias, o profissional deverá renunciar a um dos mandatos, preservando o sigilo profissional. Havendo obrigação de renúncia, deverá ser rescindido eventual contrato de prestação de serviços com a outorgante do mandato renunciado, evitando-se o patrocínio de clientes com interesses opostos. Situações processuais devem ser resolvidas no próprio campo do processo (OAB/SP, Proc. E-2.237/00, julgado em 19/10/00, relator doutor RICARDO GARRIDO JÚNIOR, reverendo doutor JOSÉ ROBERTO BOTTINO, presidente doutor ROBISON BARON.

PATROCÍNIO  CLIENTES DISTINTOS COM INTERESSES CONCORRENTES MAS NÃO COLIDENTES  POSSIBILIDADE TANTO NA ADVOCACIA CONSULTIVA COMO NA CONTENCIOSA  BASILAMENTO ÉTICO A SER OBSERVADO. É possível atender clientes distintos com interesses concorrentes, desde que adotadas redobradas cautelas, como, exemplificando, a ciência e aquiescência dos mesmos quanto ao patrocínio concorrente, o absoluto resguardo do segredo profissional e demais informações que saiba em função de seu labor, e, caso o advogado sinta, ainda que minimamente, estar sua liberdade e independência de atuação afetada, deverá optar por um dos clientes ou renunciar a ambos patrocínios. Mesmo inexistindo fórmula exata e perfeita inserida em nossa legislação, deve o advogado ser não apenas o 'juiz de sua própria causa' mas um rigoroso juiz da mesma, pois se assim agir enobrecerá não apenas a si próprio mas toda uma classe. Exegese do artigo 17, 18, 19 e 20 do Código de Ética e Disciplina e precedentes deste Sodalício processos nºs. E-2.237/00, E-3.692/2008, entre outros. (OAB/SP, Proc. E-4.142/2012, julgado em 16/08/2012, relator Dr. FABIO KALIL VILELA LEITE, reverenda. doutora MARCIA DUTRA LOPES MATRONE, presidente em exercício doutor CLÁUDIO FELIPPE ZALAF)".

Não nos escapa que, ao reputar a colidência de interesses elemento descritivo do tipo penal, esbarramos na previsão normativa do caput do artigo que o define, em consequência, a figura delitiva torna-se redundante. É que, ao defender, simultânea ou sucessivamente, partes opostas cujos interesses também são contrários, o patrono termina por trair o dever funcional, prejudicando o interesse que lhe fora confiando, de modo que o seu comportamento se subsome no crime de patrocínio infiel.

Portanto, em resposta ao questionamento inaugural, constatamos que, ao tipificar o patrocínio simultâneo ou sucessivo, deixou o legislador de observar o preceito da necessidade, seja por instituir figura delitiva que não tutela valor jurídico algum, seja por perder de vista que a colidência do comportamento do agente com os interesses da vítima, pressuposto para verificar a tipicidade do delito, é elementar do crime de patrocínio infiel, despicienda, portanto, a norma inscrita no parágrafo único.

A solução óbvia desse entrevero passa por revogar a legislação definidora dos crimes de patrocínio simultâneo e tergiversação. Por outro lado, vislumbramos alternativas diversas arvoradas pela dogmática penal e processual penal com vistas a compatibilizar a aplicação da norma com os preceitos que disciplinam a matéria criminal.

No primeiro âmbito, a tipicidade formal do delito está a depender, implicitamente, de se comprovar a colidência de interesses entre as partes e a especial intenção de prejudicar algum desses interesses. Ainda acerca desse plano analítico, a ausência de lesão ao bem jurídico nas hipóteses em que o comportamento do réu se resume à postulação de defesa em polos distintos afasta a tipicidade material dos fatos.

No plano da ilicitude, mister destacar que o direito penal ostenta natureza subsidiária e fragmentária, portanto, incide apenas sobre condutas patentemente violadores de valores fundamentais, os quais não possam ser protegidos a contento por outros subsistemas sociais ou jurídicos. Quanto ao delito em exposição, nos casos em que se resuma o comportamento do réu à postulação de defesa em polos processuais distintos, não há falar em ilicitude, a uma porque o resultado normativo, por si só, não produz lesão, sequer potencial, ao bem jurídico, a duas porque, uma vez que o art. 18 do Estatuto de Ética da Advocacia, em interpretação a contrario sensu, admite o patrocínio contemporâneo, desde que haja concordância dos patrocinados, o simples ato de figurar, simultânea ou sucessivamente, em posições processuais opostas não viola o sistema jurídico, tido como um todo.

Ainda, o comportamento tipificado pela figura do parágrafo único não desafia relevante reprovação social, uma vez que, havendo convergência de interesses entre as partes, constitui o mero exercício de atividade profissional, assim, quer por ausência de ilicitude (artigo 23, III, parte final, do CP), quer por ausência de culpabilidade, ante a inexigência de conduta diversa, não induz responsabilização criminal.

Desse modo, reputamos ainda possível a instrumentação da norma incriminadora, desde que observados os parâmetros aludidos pela Teoria do Crime e acima representados. 

Por fim, condicionar o exercício da ação à representação do ofendido, sem prejuízo das demais alternativas apresentadas, permitiria às vítimas examinar se, ao defender partes processuais opostas, o agente delitivo lhes teria prejudicado os interesses, assim, prestigiando-se os princípios da necessidade e da economia processual, solução também adequada para a tratativa do tema.  

Este texto pretendeu examinar a figura delitiva do artigo 355, caput, do Código Penal. Em síntese, por constatar que o referido tipo não atende ao preceito da necessidade, apresentamos possíveis soluções a serem adotadas no âmbito legislativo, bem como pelo operador do direito na exegese da norma incriminadora e das processuais que a ela correspondam, ao fim de que a sua aplicação encontre harmonia com os vetores da dogmática penal, notadamente o princípio da legalidade. (nulla lex poenalis sine necessitate).

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial. 12. ed. Salvador: JusPODVM, 2020.
ROXIN, Claus. La Evolución de La Política Criminal, el Derecho Penal y el Processo Penal.Valencia: Tirant lo Blanch, 2000.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!