Opinião

Avançando na compreensão do princípio da insignificância

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20 de março de 2022, 9h19

O Direito Penal constitucionalmente orientado objetiva, única e exclusivamente, a proteção de bens jurídicos. Mas não quaisquer. Bens jurídicos de envergadura penal. Isto porque, sem o bem jurídico, não há um "para quê?" do tipo positivado, indispensável à apreciação da lei penal em sentido finalístico [1]. Somente se verifica, assim, o juízo de tipicidade quando presente ofensa relevante ao bem jurídico tutelado pela norma. Exsurge, a bem da verdade, a função garantista, ou negativa, do bem jurídico, impeditiva da proibição de condutas que não lhe causem lesão ou, ao menos, perigo de lesão [2].

Assim, observa-se que o princípio da insignificância surge como instrumento de adequação normativa do tipo penal, permitindo a divisão da subsunção do fato à norma em duas modalidades, a saber: a) formal, que se limita ao juízo de preenchimento do fato ao tipo abstratamente previsto, mediante atendimento de todas os elementos nele previstos, quais sejam, objetivos, normativos e subjetivos; e b) material, na qual se verifica se houve, ou não, afetação substancial do bem jurídico tutelado, isto é, contexto de conflitividade.  O princípio da insignificância é construção pretoriana limitadora do alcance do poder punitivo estatal.

A existência de um conflito jurídico, portanto, traz a reboque a ideia de alteridade, no sentido de que a ofensa, ou exposição a perigo, do bem jurídico consubstancia o "outro" na relação jurídico-penal [3].

Pois bem. O cerne deste artigo é investigar  no âmbito dos crimes contra o patrimônio  se a aplicação do princípio da insignificância pode prescindir ou não da análise dos atributos subjetivos do autor do crime, isto é, a eventual reincidência e os maus antecedentes. Com efeito, verifica-se uma profusão de decisões dos Tribunais Superiores num e noutro sentido [4], a ensejar inegável insegurança jurídica.

Não obstante, observa-se que a Suprema Corte, com acerto, no caso de reincidente genérico, reconheceu a atração da forma bagatelar do delito, em atenção à "teoria" da reiteração não cumulativa de condutas de gênero distinto [5], conquanto o Relator, saudoso ministro Teori Zavascki tenha ainda partido de uma compreensão "socialmente relevante" de lesão ao bem jurídico, sem ignorar, portanto, aspectos subjetivos do agente.

A controvérsia mais pujante, assim, descortina-se sobre agente reincidente específico em crimes patrimoniais ou aquele que, mesmo não tecnicamente reincidente, é contumaz ou habitual na prática delitiva.

Neste alinhavar de ideias, entende-se que a análise da incidência do princípio da insignificância opera sob juízo objetivo de tipicidade, dentro da perspectiva material, a partir de interpretação conglobante da norma, em conjunto com os princípios da intervenção mínima, fragmentariedade, subsidiariedade e lesividade. Despicienda, portanto, qualquer incursão sobre circunstâncias pessoais ou subjetivas do agente, seja ele reincidente específico, genérico, contumaz ou criminoso habitual.

Entendimento contrário, para além de representar uma retomada do direito penal do autor, o qual sempre objetivou perseguir condutas indesejáveis, personalidades e modos de vida desviados, significaria confundir juízos acerca de estratos diversos do conceito analítico de crime, quais sejam, a tipicidade e a culpabilidade, e pior, trazendo à baila verdadeira culpabilidade pela conduta de vida de Mezger. Sem prejuízo, evidencia-se ainda indevida incursão na própria individualização da pena. Com efeito, no âmbito do tipo objetivo, não há falar em constituição de injusto penal sem verificação consistente do desvalor do resultado. É dizer: o juízo de tipicidade, constatada no sentido da cumulação dos desvalores da conduta e do resultado, não pode, nem deve, subsistir, na ausência de um ou outro. No ponto, profícua a lição de Fábio Roberto D'Avila: "ao falar em um ilícito estabelecido a partir do resultado não estamos, em momento algum, negando outros níveis de valoração indispensáveis, como, verbi gratia, o correspondente ao próprio desvalor da ação". E arremata: "segundo nosso modo de ver, o desvalor da ação tem relevância jurídico-penal apenas entre os fatos detentores de desvalor do resultado, dentre os fatos violadores de um bem jurídico penal" [6].

De outro norte, não se pode descurar também mostrar-se possível, ante a atração do crime insignificante, a negativa do próprio desvalor da conduta, mediante aplicação da teoria da imputação objetiva, no sentido de que ausente criação ou incremento do risco juridicamente proibido [7]. Isto porque o direito penal somente pune, ou deveria punir, ações perigosas, de modo que o "proibir por proibir" consubstancia limitação à liberdade, sem fundamento racional [8]. Nesta ordem de ideias, poder-se-ia questionar se determinadas condutas,  ínfimas e irrelevantes, representariam real e concreto risco ao bem jurídico tutelado, qual seja, o patrimônio.

A propósito, assentou o Pretório Excelso [9] que a análise da tipicidade de determinado delito, ou contravenção penal, à vista do caso concreto julgado pelo Supremo Tribunal Federal, não deve acolher o aspecto subjetivo como determinante da caracterização da infração penal, isto é, ser o autor vadio, mendigo, processado, reincidente ou contumaz.

Nos dizeres do ministro Gilmar Mendes [10]: "deve-se inadmitir infração penal que privilegia o direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato". Conclui Sua Excelência: "(…) não se mostra compatível com a atual égide constitucional considerar o passado do agente como forma de tipificar a infração penal".

Percebe-se que determinada conduta objetivamente irrelevante não se torna relevante, de per si, em sendo o autor reincidente ou contumaz. No mesmo sentido, eventual continuidade de ações insignificantes não torna a ação penalmente relevante, uma vez que o fato material atípico é unidade própria, representativa de verdadeiro irrelevante penal. Em termos matemáticos, a soma de quantos zeros se desejar nunca alcançará valor maior. Entender o contrário seria tornar regra a excepcional figura dos delitos de acumulação: condutas cuja significação jurídico-penal, singularmente considerada, é incapaz de implicar sequer exposição do bem jurídico a perigo [11], a partir da atração de fatos já exauridos, ou, pior, em exercício de futurologia quanto a supostos ilícitos vindouros, no melhor estilo Minority Report, resultariam em injusto penal plenamente constituído.

Não obstante, já contando com as escusas do leitor, abre-se breve parênteses:  tomando por base a vítima, prescinde-se da incidência da bagatela de considerações subjetivas sobre o alvo do suposto delito? Imperiosa, no ponto, a completa compreensão do bem jurídico patrimônio, observada a existência de sujeitos distintos na relação jurídico-penal, ativo e passivo. Exige-se, então, para a atração do crime bagatelar, análise da condição econômica da vítima? [12]. A bem da clareza: trata-se de perquirir eventual sinalagma existente entre acréscimo patrimonial para o autor e decréscimo para a vítima. Em sentido contrário, argumentar-se-ia que tal imposição deslocaria o juízo da tipicidade objetiva, mais uma vez e inevitavelmente, em direção a considerações de índole subjetiva, agora da vítima, por exemplo, se o bem era querido ou relevante para ela. E ainda: no caso de furto cometido por etapas, pouco a pouco, em prejuízo da mesma vítima.

Aplicar-se-á a continuidade delitiva ou, em caso de crime único, restará admitida a cumulação das "pequenas" lesões, afastando-se a insignificância? Entende-se, em que pese necessidade de maior aprofundamento, ser de se privilegiar, até por imperativo de coerência, o juízo objetivo da tipicidade, despido de considerações estranhas ao injusto em si observado.

Prosseguindo, não se pode descurar que a análise da incidência do multicitado princípio deve perpassar os já consolidados vetores erigidos pela Suprema Corte [13], os quais permitem a conclusão de que o direito penal não deve se ocupar de ações irrelevantes. Logo, a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada servem de norte tanto à atividade acusatória, quanto à atividade judicante.

Aliás, consoante alinhavado em linhas pretéritas, os vetores supra, razoavelmente tautológicos entre si [14], devem considerar, a título de rigor dogmático, a conduta individualmente considerada, despida de quaisquer outros elementos que não aqueles entendidos mediante a compreensão de um direito penal exclusivamente do fato. Referidos vetores não se prestam, assim, a chancelar eventual voluntarismo judicial, autorizando tendências de confirmação do viés cognitivo. Os vetores devem apontar sempre na direção, única e exclusiva, do tipo objetivo, corretivos da tipicidade meramente legal ou formal, privilegiando-se a concepção material, ou substancial, do injusto. Ao julgador, ou o membro do Ministério Público, cumpre aplicar o princípio da insignificância, restringindo o teor da norma penal. E, para isso, deve abster-se de argumentos de bem comum. Aplica-se o direito e nada além disso.


[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 12ª ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. RT, 2018, p. 418

[2] GALVÃO, Fernando. Direito penal, parte geral. 13ªEd. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020. p. 225/227

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raul. BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro I. Revan. Rio de Janeiro: 2019, p/225/226

[4] Entendendo pela imprescindibilidade da análise, RHC 117.751, relator ministro Ricardo Lewandowski; HC 101.998, Rel. Min. Dias Toffoli; HC 115.850 AgR, Rel. Min. Luiz Fux.

[5] STF, HC 114.723, relator ministro Teori Zavascki, j. 26/08/2014

[6] D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em direito penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2009, p. 77

[8] GRECO, Luis. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª Ed. RT. São Paulo; e-book

[9] STF, RE 583.523, ministro relator Gilmar Mendes

[10] Idem

[11] D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em direito penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2009, p. 118/119

[12] STJ, HC 103618/SP, relator ministro Maria Thereza de Assis Moura

[13] STF, HC 84.412, relator ministro Celso de Mello

[14] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. Vol. I. 14ª Ed. Juspodium. Salvador: 2021, p. 97

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