Opinião

Uma releitura do interesse de agir nas relações de consumo

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18 de março de 2022, 20h27

A incontida litigiosidade crescente tem abarrotado o sistema judiciário brasileiro (que em 2019 teve a marca histórica de 77,1 milhões de processos em tramitação, segundo o Conselho Nacional de Justiça) [1]. Boa fatia desse aumento deve-se a pretensões consumeristas. Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe consigo a existência de diversos mecanismos que estimulam a solução consensual dos conflitos, realçando notadamente o conceito de "Justiça Multiportas", decorrente da chamada Multi-Door Courthouse, rejeitando a resposta monolítica ao conflito como apanágio do sistema tradicional. Com efeito, Stipanowich lembra que o termo surgiu na década de 70 do século passado, quando Frank Sander apresentou a ideia de utilizar vários mecanismos de resolução de litígios (verbi gratia. adjudicação, arbitragem, mediação, transação entre outras formas) em processos judiciais, variando conforme a natureza da disputa, tendo como alvo reduzir custos e tempo nos julgamentos [2].

Deveras, a atuação diversificada ainda no âmbito processual vem ocupando a pauta do direito ocidental justamente pela insurportabilidade sistêmica. Cartuyvels fala que estamos vivendo "tempos de mediação" como resultado da crise de legitimidade e eficácia que assola os procedimentos tradicionais (mitológicos, nas palavras do autor) em resolver os conflitos sociais. Diante de um mundo complexo e marcado pelo pluralismo de valores, o plano jurídico é desafiado em ir além do formalismo, pois já não se aceita mais a exclusividade codificada de respostas. Para o autor, é evidente o surgimento de um paradigma pautado na justiça negociada nos campos jurídicos, englobando até mesmo o direito penal [3].

Diante do panorama de diversificação de resolução dos conflitos sociais ora delineado, o qual não é exclusividade do ordenamento processual brasileiro, o artigo 3º do CPC veio a estabelecer de forma límpida a intenção do legislador em instituir um modelo de Justiça pautado por menos formalidade e com maior participação popular, dando concretude ao preâmbulo de nossa Carta Magna, mormente quando aduz que "Todo poder emana do povo". Disso resulta um menor grau de paternalismo judicial [4], afastando o Poder Judiciário de conflitos sem resistência minimamente comprovada. Aliás, em terreno processual, devemos lançar mão da própria ideia do interesse de agir configurado pelo conceito carneluttiano de "lide", entendido notoriamente como o "conflito de interesses caracterizado por uma pretensão resistida".

Por isso, o artigo 3° do NCPC, ao se referir à apreciação jurisdicional, vai além do Poder Judiciário e da resolução de controvérsias pela "substitutividade". O dispositivo passa a permitir outras formas positivas de composição, pautadas no dever de cooperação das partes e envolvendo outros atores [5]. Da interpretação do referenciado artigo, denota-se a possibilidade da justiça (rectius, solução do litígio) ser acessada por diversas formas (portas) e não apenas pela via do Poder Judiciário. A processualista Ada Pellegrini Grinover, em um dos últimos livros de sua autoria, advertia: "avança no mundo todo, inclusive no Brasil, a ideia de que outros métodos adequados de solução de conflitos, não estatais, podem ser utilizados para pacificar com justiça e com maior eficiência. Tais são os chamados meios alternativos de solução de conflitos (alternative dispute resolution ou, em outra denominação, meios alternativos de solução de conflitos), nos quais se busca uma autocomposição" [6].

Outrossim, não somente o Código de Processo Civil fomenta o postulado da autocomposição, mas diversas outras legislações já se debruçaram sobre o tema, a exemplo da Lei 9.099/95 e da Resolução 125/2010 do CNJ, grande precursora da conciliação e mediação no ordenamento jurídico pátrio. Além disso, podemos trazer um exemplo internacional que serve de supedâneo para tais premissas, os Dispute Boards, famoso mecanismo de solução de controvérsias que busca resolver conflitos na seara coorporativa com decisões vinculantes para continuidade da execução do objeto contratado. O instituo retro mencionado foi tão bem-visto pelo Legislador que a Lei de Licitações (n° 14.133), sancionada em 1º de abril de 2021, em seu capítulo XII, "dos meios alternativos de resolução de controvérsias", artigos 151 a 154, expressamente reconheceu, pela primeira vez, a legalidade da utilização de Dispute Boards como meio alternativo de prevenção e resolução de controvérsias na seara administrativa.

O próprio Código de Ética e Disciplina da OAB dissemina tal regramento [7].

Portanto, meios alternativos de solução de conflito já são realidade e devem ser estimulados pelos magistrados e demais atores processuais, nos termos do artigo 3º, parágrafo terceiro do CPC [8]

Feitas tais digressões, cumpre esclarecer que a tentativa de solução extrajudicial do conflito (autocomposição) deve ser reconhecida como condicionante legítima para o acesso ao Poder Judiciário nas demandas consumeristas. O interesse de agir, uma das condições para o exercício do direito de ação, não se faz satisfeito quando o autor da demanda consumerista busca inicialmente o Poder Judiciário sem antes tentar solucionar o conflito extrajudicialmente, pois não haveria prova de que a parte contrária apresentou óbice à pretensão inicial. "Afinal, como dizer existente a resistência à pretensão (lide), se o adverso sequer sabe da existência dela?" [9].

Sob tal prisma, na fase processual embrionária, não se deve analisar a probabilidade do direito alegado e perquirido pelo requerente, mas, sim, se o provimento jurisdicional pretendido será suficiente para justificar o tempo, energia e dinheiro que serão gastos na resolução da demanda sem uma tentativa prévia de solucionar o imbróglio nas vias extrajudiciais. O interesse de agir, para a doutrina majoritária, "é verificado pela presença de dois elementos, que fazem com que esse requisito do provimento final seja verdadeiro binômio: ‘necessidade da tutela jurisdicional’ e 'adequação do provimento pleiteado'. Fala-se, assim, em 'interesse-necessidade' e em 'interesse-adequação'. A ausência de qualquer dos elementos componentes deste binômio implica ausência do próprio interesse de agir". [10]. O Superior Tribunal de Justiça já vem decidindo nesse sentido [11].

Exigência similar é feita nas ações previdenciárias em que o INSS figura no polo passivo, pois o STF entendeu que o interesse de agir somente estaria satisfeito se houvesse requerimento administrativo negado ou demora superior a 45 dias na resposta do requerimento. Decisão acertada e merecedora de notoriedade, "(..) porque se o segurado postulasse sua pretensão diretamente no Poder Judiciário, sem requerer administrativamente o objeto da ação, correr-se-ia o risco de a Justiça Federal substituir definitivamente a Administração Previdenciária" [12]. A tese é vem sendo adotada também mutatis mutandis em ações de retificação de registro civil [13], casos de exibição de documentos junto aos bancos [14], demandas que visam a cobrança do seguro DPVAT junto à Seguradora Líder [15] etc.

Sublinhe-se que tal regramento não aniquila o postulado constitucional do acesso à justiça, insculpido no artigo 5º, XXXV da CF/88, pois a exigência de prévio requerimento administrativo antes de ingressar com a demanda judicial não é um limitador, mas um facilitador adequado para solução do conflito. Por certo, "não se trata de exceção ao princípio da inafastabilidade, mas tão somente de exigência de preenchimento das condições da ação no caso concreto" [16].

Percebe-se, também, que a tese em comento visa evitar o acesso abusivo e "predatório" [17] do Poder Judiciário, primando pela celeridade na prestação jurisdicional, de modo a efetivar o princípio da duração razoável do processo e o princípio da eficiência, ambos considerados garantias alojadas no recinto constitucional tanto quanto o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Por esse horizonte interpretativo, buasca-se aplicar a técnica de harmonização entre princípios constitucionais, pois, a partir do momento em que se possibilita a uma parte o acesso amplo, irrestrito e absoluto à justiça, ao ponto de inviabilizar que outras demandas sejam julgadas em tempo razoável e de forma ineficiente, é nítido o ferimento aos princípios hic et nunc mencionados. Indubitavelmente, nenhuma norma pode ser absoluta.

Bem por isso, Hesse sinaliza que "(…) a interpretação tem significado decisivo para consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Dando sequência, o mesmo autor arremata assim: “A interpetação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação" [18]. A situação atual é de crescimento desordenado das demandas consumeristas  tal fato é notório e exige uma releitura do interesse de agir, adequando-a ao momento.

A bem da verdade, estamos na contramão dos países desenvolvidos no item litigiosidade processual. Permite-se citar o caso da Inglaterra, país no qual há uma tendência de redução de litígios no processo civil (redução de cerca de 21%), conforme pode ser observado nos anos de 1999-2010 (os números referem-se às ações iniciadas) [19]:

1) County Courts
(1999) 2.000.337 – (2010) 1.616.535;
2)
Chancery Division (High Court)
(1999) 37.281 – (2010) 36.631
3)
Queen’s Bench Division (High Court, excluindo os dois tribunais próximos)
(1999) 72.161 – (2010) 16.619

4) Commercial Court (High Court)
(1999) 1.205 – (2010) 1.060
5)
Technology Court (High Court)
(1999) 483 – (2010) 270
6) Totais
(1999) 2.111.467 – (2010) 1.671.116

Nesse compasso, o percurso acima trilhado busca trazer uma compatibilização entre o princípio do acesso à justiça e os princípios da duração razoável do processo e eficiência, mediante criação de regras de prevalência e justaposição, de modo que é possível a exigência judicial, com fulcro nos artigos 3º e 6º do CPC, de que toda parte autora comprove nos autos a tentativa de solucionar o conflito por meio de alguma medida alternativa extrajudicial [20], sob pena de extinção do feito sem resolução do mérito, com esteio nos artigos 321 c/c 485, VI do CPC.


[1] Ano anterior ao Covid-19. Conferir aqui.

[2] The multi-door contract and other possibilities. Ohio State Journal on Dispute Resolution, v. 13, p. 303-404, 1998, especialmente p. 303-304.

[3] Comment articuler "mediation" et "justice réparatrice"? In: JACCOUD, Mylène (Sous la direction de). Justice réparatrice et médiation pénale: convergences ou divergences? Paris: L’Harmattan, 2003, p. 53-57).

[4] Sobre a versão paternalista de Estado juiz, conferir: DAMASKA, Mirjan R. The faces of justice and state authority: a comparative approach to the legal process. New Haven: Yale University Press, 1986, p. 74.

[5] PINHO, Humberto Dalla Bernardinha de. STANCATI, Maria M. S. Martins. A ressignificação do princípio do acesso à justiça à luz do artigo 3° do Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo, v. 254, Abr/2016, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 20.

[6] GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. 1ª reimpr.  Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2018, negritos são nossos.

[7] Artigo 2º O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único. São deveres do advogado: VI – estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios.

[8] §3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

[9] GAJARDONI, Fernando. Levando o dever de estimular a autocomposição a sério: uma proposta de releitura do princípio do acesso à justiça à luz do cpc/2015. São Paulo: Foco, 2021, cap. II, p. 185-196.

[10] CÂMARA, Alexandre Freitas, Lições de Direito Processual Civil, Vol. 1, 21ª ed., editora Lumen Juris, 2014, pág. 128.

[11] O pedido, nesses casos, carece do elemento configurador de resistência pela Administração Tributária à pretensão. Não há conflito. Não há lide. Não há, por conseguinte, interesse de agir nessas situações. O Poder Judiciário é a via destinada à resolução dos conflitos, o que também indica que, enquanto não houver resistência da Administração, não há interesse de agir daquele que "judicializa" sua pretensão. (STJ – REsp: 1734733 PE 2018/0082256-1, Relator: ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 07/06/2018, T2  SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/11/2018).

[12] STJ  REsp: 1488940 GO 2014/0267724-6, Relator: ministro Herman Benjamin, Data de Julgamento: 18/11/2014, T2  SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/11/2014.

[13] Apelação Cível. Ação de Retificação de Registro Civil. Pleito exclusivo de majoração dos honorários dativos fixados pelo Juízo de origem em R$ 300,00. […] Procedimento que poderia ter sido realizado mediante requerimento administrativo diretamente ao cartório de Registro Civil nos termos do artigo 110, inciso I, da lei 6.015/73, por se tratar de erro material de fácil constatação. […] (Apelação Cível Nº 202000719161 Nº único0000660-74.2019.8.25.0060 – 1ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça de Sergipe  relator (a): Iolanda Santos Guimarães – Julgado em 11/09/2020.

[14] STJ, Resp. 1.349.453-MS, relator ministro Luis Felipe Salomão, Data de Julgamento: 10.12.2014.

[15] STJ, AgInt no AREsp: 989022 RJ 2016/0252720-3, relator: Ministro Marco Buzzi, Data de Julgamento: 24/05/2021, T4  Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 27/05/2021.

[16] NEVES, Daniel. Manual de Direito Processual Civil. 13. ed., Salvador: Juspodivm, 2021, p. 93

[18] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (Die normative kraft der verfassung). Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991, p. 22-23.

[19] ANDREWS, Neil. O Moderno Processo Civil: Formas Judiciais e Alternativas de Resolução de Conflitos na Inglaterra, Tradução de Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021, p. 349.

[20] Este link pode ser um caminho.

Autores

  • é juiz de Direito em Sergipe, professor da Escola Judiciária de Sergipe, doutorando em Ciências Criminais pela Universidade de Lisboa e mestre em Constitucionalização do Direito pela Universidade Federal de Sergipe.

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