Opinião

A decisão da CIJ em sede de medidas provisórias no caso Ucrânia x Rússia

Autores

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

  • Augusto Guimarães Carrijo

    é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (Gepdi/CNPq) vinculado à Universidade Federal de Uberlândia atualmente em intercâmbio junto à Saint Mary’s University (Halifax/Canadá).

22 de março de 2022, 21h11

No dia último dia 3, publicamos aqui um texto sobre o pedido feito pela Ucrânia contra a Rússia na Corte Internacional de Justiça, em que aquele contestava a alegação deste no tocante a ocorrência de genocídio nas províncias autodeclaradas autônomas de Luhansk e Donetsk [1], a qual serviu como base argumentativa para este (tentar) justificar a sua incursão militar em território ucraniano, nos termos da obrigação derivada do artigo I da Convenção Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio de 1948 e forte no pedido de ajuda dos representantes de tais localidades.

Após ter realizado uma audiência no dia 7 de março de 2022, na qual apenas compareceu a representação ucraniana[2], a Corte Internacional de Justiça, no dia 16, proferiu a sua sentença em sede de medidas provisórias. Nesta, a Corte decidiu, por 13 votos a favor e 2 contrários que: (a) a Rússia deve imediatamente suspender as atividades militares iniciadas em 24 de fevereiro em território ucraniano; e (b) assegurar que qualquer unidade armada militar ou irregular sob a direção ou suporte russo, assim como quaisquer organizações ou pessoas que estejam sujeitas ao seu controle e direção, não avancem as operações militares; já de modo unânime, decidiu que (c) ambas partes devem evitar qualquer ação que possa agravar ou estender a disputa, ou fazê-la mais difícil de resolver [3].

Inicialmente, a corte debruçou-se na análise dos elementos que fariam com que a mesma pudesse apreciar, ao seu ver, o caso. No tocante a jurisdição, como antecipamos, a corte entendeu nos parágrafos 25, 26 e 29 da decisão, que ela podia, sim, ouvir o pedido ucraniano em função da ratificação por parte de ambos os Estados da Convenção Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio de 1948, o qual prevê, no artigo IX, que as controvérsias surgidas no âmbito do tratado serão resolvidas pela Corte Internacional de Justiça. Ademais, não haviam reservas vigentes sobre o citado artigo [4].

Havíamos ponderado que a corte poderia não aceitar a jurisdição com base no artigo IX da Convenção, visto que os argumentos ucranianos também giravam em torno da apreciação indireta por parte da corte acerca da (i)legalidade da incursão militar russa em seu território. Acerca disso, cumpre destacar que a Ucrânia, na audiência realizada no dia 7 de março, expressou que mesmo que se comprovasse a ocorrência de genocídio — a qual ela negou veementemente —, este fato não autorizaria uma ação armada russa. Afinal, a Convenção de 1948 prevê a utilização dos instrumentos das Nações Unidas, no artigo VIII, e o uso da própria corte, no artigo IX. Ela não disporia, em nenhum momento, sobre o uso da força para assegurar o seu objeto, nem mesmo no artigo I, ao se referir sobre as obrigações inter partes de assegurar-se o objetivo do tratado.[5] Por isso, para a Ucrânia, como apontado no parágrafo 53 da decisão, a Rússia não teria agido de boa-fé quando da aplicação da Convenção de 1948.

Sobre o tema e especialmente diante da argumentação russa [6] de que ela não estaria usando a Convenção de 1948 para realizar a sua "operação militar especial" em território ucraniano, a corte relembrou no parágrafo 46 da decisão que, mesmo se for este o caso, "certos atos ou omissões podem ensejar uma disputa que recaem sob um ou mais tratados". Noutros termos, a corte entendeu que ela não teria apenas jurisdição sob o caso, como também esse fator colabora para a verificação de outro elemento essencial para que ela mesmo pudesse ouvir a ação proposta pela Ucrânia, qual seja, da existência de uma disputa. E sobre esse ponto específico, a corte, em seus parágrafos 44 e 45, ressaltou a existência, prima facie, de um desacordo em relação a um ponto legal ou fático entre as partes em litígio na medida em que os representantes russos invocaram a Convenção de 1948 para a situação na região de Donbass em diversos momentos mesmo antes da invasão, o que, como trazido supra, não seria o caso, consoante os ucranianos.

Já no que tange ao standing ucraniano, a corte nem se debruçou sobre o tema de modo particular, pois, já na introdução, nos parágrafos 17 e 18, ela mesma antecipa que a situação gerada pela incursão armada russa é grave e está gerando em um widespread damage, notadamente sob o aspecto humano, em território ucraniano, logo, restando implícita a existência, nessas circunstâncias, de um interesse legal direto da Ucrânia em questionar a conduta do Estado vizinho. E diante de tais argumentos, a corte considerou que ela poderia, sim, apreciar procedimentalmente as medidas provisórias solicitadas pela Ucrânia.

No que tange a argumentação principal da corte sobre o mérito da concessão das medidas provisórias solicitadas pela Ucrânia, ela entendeu que seria plausível o pleito deste país, nomeadamente, "o de não ser submetido a operações militares pela Federação Russa com o propósito de prevenir ou punir supostos atos genocidas conduzidos em território ucraniano", tal como consta no parágrafo 60 (tradução nossa). Logo, corretamente, ela não verificou a existência de violação da Convenção de 1948 neste momento, mas apenas a sua real e iminente possibilidade diante dos fatos concretos (invasão russa fundada nela), nos termos dos parágrafos 66 e 67. Há, assim, uma plausibilidade do pedido — o que a corte já havia utilizado como parâmetro no outro caso entre as mesmas partes em 2017 [7].

Ademais, apesar da argumentação russa descrita no parágrafo 72 de que a situação em geral não estaria vinculada à Convenção de 1948 de modo claro, a corte considerou os argumentos ucranianos de que as mortes, os danos já ocasionados aos civis e o deslocamento humanitário gerado, descritos entre os parágrafos 68 e 70, seriam, sim, suficientes para atestar o risco concreto e urgente de prejuízo. Em especial, no parágrafo 74, a corte expressa que tais widespread damages causados pela intervenção russa guardam relação com a convenção em função da argumentação de seus representantes. Ainda, a corte considerou a resolução aprovada pela Assembleia Geral em 2 de março, que condenou a conduta russa (mas que, registra-se, não faz nenhuma consideração sobre o alegado genocídio), tal como disposto no parágrafo 76.

Com isso, como aludido supra, a corte ordenou a interrupção da intervenção militar russa, porém, não sem críticas. Dois juízes foram do entendimento de que a corte não possuía jurisdição para conceder as duas primeiras medidas provisórias. Para a juíza Xue, as questões levantadas pela Ucrânia seriam relativas ao uso da força, não caindo, portanto, no escopo da Convenção de 1948, e logo, não concedendo jurisdição para a Corte [8]. Em linhas similares, o juiz Gevorgian afirmou que o caso em tela concernia a questão do uso da força, sem nenhum link legal com o eventual cometimento de genocídio. Em sua opinião, a partir da argumentação Ucraniana, qualquer ato supostamente ilegal poderia ser "encaixado" em um tratado aleatório, desde que o objeto regulado pelo tratado possuísse algum papel nas considerações políticas precedendo o ato [9].

Em conclusão, entendemos que a corte proferiu aquilo que os observadores dos procedimentos esperavam dela: uma decisão incisiva, rápida (proferida em nove dias!), requerendo a interrupção dos atos russos, e outorgando medidas provisórias com o intuito de proteger os direitos legais ucranianos de mais/outras possíveis violações (presume-se, conectadas à convenção). No entanto, faz-se importante refletir sobre a maneira com que a corte chegou a sua conclusão, afinal, a argumentação avançada pela Ucrânia, inédita no direito internacional, foi aceita com relativa facilidade pela corte, e certos obter dictums ao longo da sentença se mostraram inovadores quando em comparação com a sua prática em sede de medidas provisórias. Ademais, deve-se reconhecer que a sentença pode se mostrar um tanto inefetiva, haja vista o próprio não comparecimento russo às audiências e a inexistência de mecanismos que possam assegurar o seu cumprimento [10], de modo que, institucionalmente, é possível questionar a sua adoção em virtude do possível enfraquecimento que ela pode ensejar.


[1] Sobre o tema, cf. SQUEFF, Tatiana. Enfim, quais são os argumentos russos para a entrada na Ucrânia? Conjur. 25/2/2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-fev-25/squeff-quais-sao-argumentos-russos-entrar-ucrania

[2] Avulta-se que quando a corte tem jurisdição para ouvir um caso com base em uma cláusula compromissória prevista em tratado (no caso em tela, a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, mais especificamente, o artigo IX), se a parte não comparecer durante os procedimentos, ela será julgada à revelia, tal como ocorrera em outras situações no passado, a exemplo do emblemático caso EUA x Irã, de 1980, em que este não compareceu à Corte, mesmo havendo clausula prevista no tratado, que, naquelas circunstâncias, era a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 — caso este ressaltado pela Corte no parágrafo 23 da decisão em apreço. Salienta-se que, na falta de jurisdição prevista antecipadamente, ainda é possível que a Corte seja buscada por algum litigante, porém, nessa hipótese, o outro Estado não tem a obrigação de comparecer/responder (se o fizer, por outra banda, estará estabelecida a jurisdição por meio do forum prorogatum). Sobre o tema, cf. CIJ. Hostages in Tehran (United States v. Iran). Judgment, 24/05/1980. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/64; CIJ. Corfu Channel (United Kingdom v. Albania). Judgment, 25/3/1948. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/1.

[3] CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Provisional Measures. 16/03/2022. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[4] De acordo com a Conveção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, em seu art. 1(d), "'reserva' significa uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado". Ou seja, se um aparte opõe reserva a uma cláusula, esta é considerada ainda existente, válida, porém, sem eficácia para o Estado opositor. Há tratados que não permitem reserva, mas não é este o caso da Convenção de 1948 em apreço. A URSS tinha uma reserva ao citado artigo IX, oposta em 1954, mas que fora retirada em 1989. Logo, o referido artigo surtia efeitos aos russos, Estado sucessor da URSS, não havendo que se questionar a jurisdição da Corte na presente ação. Cf. CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Provisional Measures. 16/03/2022, para. 27. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[5] Por outro lado, frisa-se o parágrafo 56 da sentença, em que a Corte confirma que o artigo I da Convenção de 1948 realmente não especifica a forma em que os países devem cumprir para com as obrigações ali contidas, mas aponta que essas devem ser sempre realizadas nos limites do direito internacional. Ocorre que, no parágrafo 59, a Corte salienta que só poderá verificar de maneira mais atenta se os argumentos russos estariam dentro da legalidade ao apreciar o mérito da ação, muito embora já fazendo um juízo sobre o tema ao tecer que "it is doubdtful that the Convention, in light of its objetct and purpose, auhtorizes a contracting party’s unilateral use of force in the territory of another State […]", o que, ao nosso ver, não era necessário, em instância de medidas provisórias, para chegar a sua conclusão final. Cf. CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Provisional Measures. 16/03/2022, pars. 56 e 59. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[6] Importa informar que a Rússia submeteu um documento à corte, em que ela contesta a jurisdição desta com base na Convenção de 1948, afirmando que a "operação militar especial" levada a cabo por ela, na verdade, teria como escopo o artigo 51 da Carta da ONU (que trata da legítima defesa) e nas regras consuetudinárias, tal como a corte ressaltou na sentença no parágrafo 32. Assim, verifica-se uma modificação na argumentação russa perante a corte, para tentar afastar a Convenção de 1948, a qual lhe garante jurisdição para apreciar o caso, como se discute aqui. Contudo, importante destacar que essa argumentação com base no artigo 51 e no costume é muito mais difícil de ser aceita no plano internacional exatamente porque (a) se estivermos diante de um caso de legítima defesa preventiva, em que não houve quaisquer ataques armados prévios ou não se sabe se, de fato, algum ocorrerá, esta é totalmente ilegal, já sendo bastante criticada desde a tentativa de George W. Bush em utilizá-la para justificar a intervenção estadunidense no Iraque, em 2003; (b) e se estivéssemos diante de uma legitima defesa preemptiva, ter-se-ia a necessidade de se ter um ataque armado contra si iminente, verídico, para que ela seja considerada legal nos termos do direito costumeiro com base no Caroline Test — e o mero ingresso da Ucrânia na Otan não preencheria esses requisitos. De qualquer modo, ressalta-se os parágrafos 37, 38, 40 e 41 da sentença, em que a corte destaca que o argumento russo era, de fato, a ocorrência de um eventual genocídio na região de Donbass. Sobre o uso da força, ver: GRAY. International Law and the Use of Force. Oxford University Press, 2004.

[7] CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Request of Provisional Measures. 19/04/2017. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/166

[8] CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Provisional Measures – Declaration of Judge Xue. 16/3/2022, para. 2-4. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[9] CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Provisional Measures – Declaration of Vice-President Gevorgian. 16/3/2022, para. 6 e 7. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[10] É verdade que o artigo 94(2) da Carta da ONU prescreve que "se uma das partes num caso deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença proferida pela Corte, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança que poderá, se julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença", apesar de saber-se que essa medida mostrar-se-á inefetiva considerando a possibilidade de veto russo no Conselho à luz dos artigos 23(1) e 27(3) da própria Carta.

Autores

  • é professora de Direito Internacional e professora permanente do Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia, doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, mestre em Direito Público pela Unisinos, com período de estudos junto à University of Toronto, membro da ILA-Brasil e da Abri e pesquisadora do Neti/USP.

  • é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (GEPDI/CNPq), vinculado à Universidade Federal de Uberlândia, atualmente em intercâmbio junto à Saint Mary’s University (Halifax/Canadá).

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