Opinião

Enfim, quais são os argumentos russos para a entrada na Ucrânia?

Autor

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

25 de fevereiro de 2022, 18h23

Na madrugada de quinta-feira (24/2), testemunhamos a entrada militar russa em território ucraniano. Essa era uma questão antecipada pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos [1] e Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) [2], já há alguns dias.

Após a incursão da armada russa, no mesmo dia Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, disse que essa conduta se tratava de um ato de agressão, enquanto Jens Stoltenberg, secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte, afirmou que a Rússia cometera uma grave violação de Direito Internacional. Frente a essas afirmações, uma questão que emerge é justamente acerca dos fundamentos russos para a sua ação militar.

A situação extrema na qual ambos os países estão inseridos hoje é o estopim de uma série de protestos e revoltas que ocorrem desde o final de 2013, especialmente em Kiev, quando da retirada do então presidente ucraniano Viktor Yanukovych do poder, pelo fato deste ter preferido assinar um acordo com os russos em detrimento de um tratado de livre comércio com a União Europeia. Mais de cem pessoas foram mortas e outras dezenas ficaram feridas em um confronto sangrento na capital ucraniana de Kiev em fevereiro de 2014, entre manifestantes pró-União Europeia e as forças do governo apoiado pela Rússia [3].

De outra banda, protestantes a favor de Yanukovych em regiões habitadas por pessoas de ascendência russa no leste ucraniano, pontualmente, na região industrial de Donbas, também começaram a se insurgir contra a capital, especialmente após o Parlamento ucraniano, em fevereiro de 2014, com 328 votos a favor, ter referendado a saída de Yanukovych [4]. Estima-se que mais de 14 mil pessoas já morreram desde então nessa região.[5]

Essas mortes em número elevado decorrem do fato de duas províncias da região de Donbas, Donetsk e Luhansk, estarem buscando a sua separação da Ucrânia [6]. Em abril de 2014, inclusive, o então presidente interino ucraniano, Alexander Turchinov, afirmou ter perdido o controle de parte deste território para os rebeldes [7], que possuem ascendência russa.

Vale lembrar que a região da Crimeia, em 11 de março de 2014, já havia se declarado independente da Ucrânia [8] e, em 16 de março de 2014, já havia realizado um referendo questionando a sua população [9], formada por 58% de russos étnicos [10], se estes gostariam de se juntar à Rússia, tendo sido o resultado positivo, com mais de 93% de votos favoráveis. A legalidade desse referendo ainda hoje é questionada no plano do Direito Internacional [11], pois, muito embora tenha-se como base o princípio de autodeterminação, que é previsto no artigo 1(2) da Carta das Nações Unidas, entre outros documentos internacionais [12], o uso dessa regra cogente de Direito Internacional para que a secessão aconteça procedimentalmente de maneira legítima deve partir da própria população [13], sem quaisquer interferências externas — e o que se argumenta é que houve influência russa no pleito.

De toda sorte, em 17 de março de 2015, o parlamento ucraniano aprovou um regime especial autônomo provisório para a região de Donbas [14]. Frisa-se que este movimento é importantíssimo para o Direito Internacional. Isso porque o uso da autodeterminação enquanto argumento pró-separação somente é materialmente permitido no plano externo quando uma determinada população que habita certa região é oprimida internamente, de maneira que estes não podem exercer seus direitos de forma plena e/ou livre [15]. Logo, declarar a autonomia de Donbas temporariamente, fez com que o governo central de Kiev reforçasse a sua intenção de acomodar essa população que fala russo e os seus interesses, robustecendo, dessa forma, o princípio da integridade territorial [16], que protege as fronteiras do Estado contra revoltas internas, assegurando as demarcações estabelecidas desde a sua independência da União Soviética em 1991.

Então, onde resta o ponto central do argumento russo? Na necessidade de proteger a população da região de Donbas, que, segundo Vladmir Putin, desde 2014, vem sendo reprimida pelo governo central ucraniano. Essas declarações já vêm sendo feitas pelo governo russo desde dezembro de 2021, quando este chegou a dizer que a violência [17] que estaria ocorrendo na região seria um genocídio [18]. Com base nisso, os russos alegam estarem agindo de acordo com o Direito Internacional, na medida em que este eleva a proteção de direitos humanos ao centro do ordenamento, impondo, assim uma responsabilidade compartilhada entre todos os seus membros para a sua tutela.

Especificamente, o combate ao genocídio é uma obrigação erga omnes [19], o qual todos da sociedade internacional têm o dever de assegurar. Mais do que isso, trata-se de uma obrigação inter partes [20], derivada da Convenção para a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio de 1948, a qual foi ratificada pela Rússia em 3 de maio de 1954.

Além disso, é de se referir que as províncias de Donetsk e Luhansk, onde os conflitos são intensos desde 2014, quando ambas se declararam repúblicas autônomas [21], ato que foi agora, no último dia 21, reconhecido pelos governos russo, sírio, cubano, nicaraguense e venezuelano — além dos governos de Ossétia do Sul e Abkházia, que lutam pelo seu próprio reconhecimento internacional [22]. Esse fato é importante por duas razões. A primeira, porque declarações unilaterais de independência, em geral, não seriam ilegítimas em Direito Internacional quando aqueles que o fazem possuem capacidade de representar a população que reivindica a secessão e os seus atos não estejam conectados a violações de Direito Internacional geral [23]. A segunda, pois a partir dessas declarações independência, as autoridades dessas regiões solicitaram apoio russo para se defender do que estes chamam de agressão ucraniana [24].

Logo, tem-se que a legalidade do uso da força russa na Ucrânia depende largamente dessas declarações de independência serem consideradas legítimas, vez que, uma vez o sendo, poderiam as suas autoridades solicitar apoio de outra nação para a defesa de sua população. Por outra banda, caso isso não reste comprovado, o que se vislumbraria seria uma violação da Carta das Nações Unidas [25] por parte das autoridades russas, nomeadamente de seu artigo 2(4), que proíbe a ameaça e o uso da força, e de seu artigo 2(3), que impõe a solução pacífica de litígios.

Além disso, é de se ponderar acerca do uso procedimental e material do princípio da autodeterminação ao caso. No tocante ao primeiro, deve-se recordar que o mesmo só poderia ser utilizado sem interferências externas, de maneira que o grande envolvimento do governo russo nessas regiões pode significar um prejuízo para a sua arguição [26]. Em relação ao segundo, por outro lado, deve-se reafirmar que o Acordo de Minsk II [27], assinado em 12 de fevereiro de 2015 e "ratificado" pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas [28], além de apontar para uma interrupção das hostilidades na região de Donbas, a libertação de prisioneiros de guerra e a retirada de armas pesadas da região de conflito [29], previa a garantia de maior autonomia para às províncias disputadas — o que nunca se concretizou [30], consequentemente, favorecendo a arguição do citado princípio.

 


[1] PILKINGTON. US intelligence believes Russia has ordered Ukraine invasion — reports. The Guardian, 20/2/2022 Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2022/feb/20/russia-invasion-ukraine-biden-blinken-us-national-security-council.

[2] TURAK. Ukraine 'without any warning at all' as Putin tests missile launches. CNBC, 19/2/2022. Disponível em: https://www.cnbc.com/2022/02/19/natos-chief-says-russia-could-invade-ukraine-without-any-warning-at-all.html.

[3] TRAYNOR. Ukraine's bloodiest day: dozens dead as Kiev protesters regain territory from police. The Guardian, 21/2/2014. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2014/feb/20/ukraine-dead-protesters-police.

[4] SINDELAR. Was Yanukovych's Ouster Constitutional? Radio Free Europe, 23/2/2014. Disponível em: https://www.rferl.org/a/was-yanukovychs-ouster-constitutional/25274346.html.

[5] CONFLICT in Ukraine’s Donbas: A Visual Explainer. International Crisis Group, 24/2/2022. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/content/conflict-ukraines-donbas-visual-explainer.

[6] CHAPELL. Separatists Vote To Split From Ukraine; Russia 'Respects' Decision. NPR, 12/5/2014. Disponível em: https://www.npr.org/sections/thetwo-way/2014/05/12/311808832/separatists-vote-to-split-from-ukraine-russia-respects-decision.

[7] HERNANDEZ. Why Luhansk and Donetsk are key to understanding the latest escalation in Ukraine. NPR, 22/2/2022. Disponível em: https://www.npr.org/2022/02/22/1082345068/why-luhansk-and-donetsk-are-key-to-understanding-the-latest-escalation-in-ukrain.

[8] CRIMEAN parliament OKs 'declaration of independence' from Ukraine. Al Jazeera, 11/3/2014. Disponível em: america.aljazeera.com/articles/2014/3/11/ukraine-s-crimeavotestobecomeindependentstate.html.

[9] HERSENHORN. Crimea Votes to Secede From Ukraine as Russian Troops Keep Watch. The New York Times, 16/3/2014. Disponível em: https://www.nytimes.com/2014/03/17/world/europe/crimea-ukraine-secession-vote-referendum.html.

[10] GUNN. Ethnicity and Language in Ukraine. RUSI, 12/3/2014. Disponível em: https://rusi.org/explore-our-research/publications/commentary/ethnicity-and-language-ukraine.

[11] CHARBONNEAU; DONATH. U.N. General Assembly declares Crimea secession vote invalid. Reuters, 27/03/2014. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-ukraine-crisis-un-idUSBREA2Q1GA20140327.

[12] Cita-se aqui, por exemplo, ambos os Pactos de 1966, em seu art. 1.

[13] PETERS. Sense and Nonsense of Territorial Referendums in Ukraine, and Why the 16 March Referendum in Crimea Does Not Justify Crimea’s Alteration of Territorial Status under International Law. EJIL: Talk! 16/4/2014. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/sense-and-nonsense-of-territorial-referendums-in-ukraine-and-why-the-16-march-referendum-in-crimea-does-not-justify-crimeas-alteration-of-territorial-status-under-international-law/.

[14] "The Ukrainian parliament did pass a law on special status for Donetsk and Lugansk on March 17, 2015, but the law was provisional, granting special status for one year, and it was not to come into effect until Donetsk and Lugansk held elections under Ukrainian law. Ukraine made no commitment to revise the Ukrainian constitution as a whole to provide for decentralization and Russian-language rights". LIEVEN. Ending the Threat of War in Ukraine: A Negotiated Solution to the Donbas Conflict and the Crimean Dispute. QI, 4/1/2022. Disponível em: https://quincyinst.org/report/ending-the-threat-of-war-in-ukraine/.

[15] ICJ. East Timor (Portugal v. Australia). Judgment. 30/06/1995, p. 10-11. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/84/judgments; ICJ. Western Sahara. Advisory Opinion, 16/10/1975, p. 30-32. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/61/advisory-opinions.

[16] ICJ. Western Sahara. Advisory Opinion, 16/10/1975, p. 29. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/61/advisory-opinions.

[17] YOU Don't exist. Human Rights Watch, 21/7/2016. Disponível em: https://www.hrw.org/node/292260/printable/print.

[18] RUSSIA Ukraine: Putin compares Donbas war zone to genocide. BBC, 10/12/2021. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-59599066.

[19] ICJ. Barcelona Traction, Light and Power Company ltd. (Belgium v. Spain). Second Phase. Judgment 5/2/1970, p. 32. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/50/judgments.

[20] ICJ. Application on the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Gambia v. Myanmar). Order 23/1/2020, p. 16. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/178/orders.

[21] Foram realizados, inclsuive, referendos nas regiões. Cf. Ukraine rebels hold referendums in Donetsk and Luhansk. BBC, 11/5/2014. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-27360146.

[22] MIROVALEV. Donetsk and Luhansk: What you should know about the 'republics'. Al Jazeera, 22/02/2022. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2022/2/22/what-are-donetsk-and-luhansk-ukraines-separatist-statelets.

[23] ICJ. Accordance with international law of the unilateral declaration of independence in respect of Kosovo. Advisory Opinion, 22/07/2010, p. 38-39; 41-42. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/141.

[24] RUSSIA says Donbas separatists ask Putin for military support. DW, 23/2/2022. Disponível em: https://p.dw.com/p/47V6m.

[25] BRASIL. Decreto 19.841 de 22/10/19845. Promulga a Carta das Nações Unidas… Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm.

[26] MILANOVIG. Recognition. EJIL: Talk! 21/2/2022. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/recognition/.

[27] Texto do Acordo de Minsk II disponível em: https://ghostarchive.org/archive/XMryb.

[28] UNANIMOUSLY Adopting Resolution 2202 (2015), Security Council Calls on Parties to Implement Accords Aimed at Peaceful Settlement in Eastern Ukraine. UN, 17/2/2015. Disponível em: https://www.un.org/press/en/2015/sc11785.doc.htm.

[29] Salienta-se o uso de armas ilegais por militares ucranianos na região, logo, violando regras de direito humanitário. MILITARES ucranianos disparam projéteis proibidos contra Donetsk e mais 2 povoados, Sputnik News, 20/2/2022. Disponível em: https://br.sputniknews.com/20220220/militares-ucranianos-bombardearam-mais-2-povoacoes-em-donbass-diz-donetsk-21488833.html.

[30] LIEVEN. Ukraine: The Most Dangerous Problem in the World. The Nation, 15/11/2021. Disponível em: https://www.thenation.com/article/world/ukraine-donbas-russia-conflict/.

Autores

  • é professora de Direito Internacional e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia, doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, mestre em Direito Público pela Unisinos, com período de estudos junto à University of Toronto, e membro da ILA-Brasil e da Abri.

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