Opinião

Lawfare e improbidade: o uso político da ação de improbidade administrativa

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

15 de março de 2022, 19h42

É de conhecimento geral que a Lei 14.230/2021 inseriu várias modificações de natureza material e procedimental na Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), das quais, inclusive, já nos manifestamos aqui na ConJur em outras oportunidades [1] [2].

Neste sentido, dentre as alterações de natureza processual, destacamos neste artigo aquela contida no artigo 17, relacionada à legitimidade ativa para propor as ações de improbidade administrativa, que, a partir da entrada em vigor da referida lei, passou a ser exclusivamente do órgão ministerial.

Conforme se extrai do dispositivo inserido pela novel legislação, nenhuma outra entidade poderá ingressar com a ação de improbidade administrativa, pois somente o Ministério Público é legitimado para tanto, bem como para requerer medidas cautelares e formular quaisquer pedidos relacionados a matéria.

Essa alteração justificou-se, em grande medida, pelo tipo do provimento requerido no âmbito das ações dessa natureza, visto que há uma preocupação em manter-se questões de estado ao alvedrio das alterações políticas, de modo que há um viés político-institucional que deve ser observado, o que torna salutar e necessária a legitimidade exclusiva do parquet.

Em resumo, a gravidade das sanções decorrentes da prática de atos de improbidade e o possível uso político da ação, indicariam a conveniência de estabelecer legitimidade exclusiva ao Ministério Público para propor a ação de improbidade.

Esse tópico inserido pela nova lei, demonstra um importante avanço no combate ao manejamento de ações de improbidade cujo interesse seja apenas político.

Nesse ponto, importante destacar a temática do lawfare, que, em termos conceituais, significa um neologismo advindo da junção do termo law (Direito) e warfare (estado de guerra), caracterizando-se, em síntese, pela utilização das instituições jurídicas, juntamente com a influência midiática, com a finalidade de concretizar, de forma implícita, uma intervenção ilegítima nas disputas políticas e eleitorais.

Desta forma, mantêm-se uma ideia de normalidade, legalidade e legitimidade na atuação das instituições e dos órgãos oficiais, ao tempo em que são perpetradas violações no cenário da disputa política, concretizando-se estratégias implícitas para a perseguição política de inimigos.

Nessa perspectiva, o lawfare se coloca em um campo de intersecção entre o direito e a política. O seu conteúdo encontra justificação no meio jurídico e finda por legitimar a perseguição (implícita) no âmbito político.

Nesse sentido, em referência ao texto escrito por Adel El Tasse nesta mesma revista jurídica, denominado "o processo administrativo disciplinar como mecanismo de lawfare" [3], em que o autor cita que "o processo administrativo disciplinar pode ser facilmente convertido, dentro de sua dimensão própria, em um instrumento para a prática de lawfare", destacamos que em maior medida o pode a ação de improbidade administrativa, por toda a questão política e midiática ainda mais drástica.

Tão drástica é a carga imposta pelas ações de improbidade administrativa que já fora reconhecido pela jurisprudência pátria o entendimento sobre a equiparação das normas de natureza penal e as normas de direito administrativo sancionador, na qual se situam as ações de improbidade.

A lei de improbidade administrativa, portanto, enquanto produto do poder punitivo estatal, deve submeter-se ao mesmo núcleo básico de direitos individuais que fundamenta o nosso Direito Penal, apresentando-se como proteção do réu em face do ius puniendi.

Assim, não havendo maiores diferenças substanciais entre as normas penais e normas administrativas sancionadoras, vez que ambas constituem expressão do poder punitivo, a nova legislação findou por inserir dispositivos que confirmam essa sistemática, como o que fora apresentado na introdução do presente esboço.

Daí retira-se que a exigência de legitimação exclusiva do Ministério Público para propor as ações de improbidade administrativa, materializa-se, pelo menos a princípio, como uma garantia de que tais ações não serão manejadas ao bel prazer de adversários ou interessados políticos mal-intencionados.

O novo dispositivo apresenta-se, desta forma, como uma mudança bem-vinda, principalmente para evitar que as ações de improbidade sejam convertidas em instrumentos de lawfare político. Deve-se ter cuidado, ademais, com o retórico, perigoso e tendencioso argumento genérico de combate à corrupção, que serve, não raras vezes, como mero instrumento para prejudicar eventuais adversários/inimigos políticos, levando à verdadeira criminalização da política.

Neste sentido, muito embora se tenha que, em recente decisão, o ministro Alexandre de Moraes tenha deferido o requerimento cautelar para manter a legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público interno, sob o fundamento de que a retirada da referida legitimidade ativa caracterizaria um "monopólio absoluto do MP no combate à corrupção", dando assim interpretação conforme à constituição para manter a legitimidade concorrente para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa, suspendendo-se, por consequência, os efeitos do artigo 3º da Lei nº 14.230/2021, entendemos que a discussão demanda uma análise mais apurada, pautada, sobretudo, na vivência e experiência prática.

Portanto, entendemos que o argumento per si de que a restrição da legitimidade para a ação de improbidade ao Ministério Público levaria ao "monopólio do combate à corrupção" não merece prosperar, como já fora alertado em artigo específico sobre o tema neste ConJur [4].

No entanto, cabe destacar a necessidade de não enxergar essa mudança na legislação com ingenuidade e acreditar no fato de que, em razão da legitimidade, agora exclusiva do órgão ministerial, não existirão mais ações de improbidade com finalidade apenas política.

Tais ações continuarão existindo e, por essa razão, também foram inseridos outros novos dispositivos, tais como aquele que exigiu a demonstração do elemento subjetivo doloso para a caracterização de qualquer ato de improbidade administrativa, excluindo os atos meramente culposos, ou o dispositivo que passou a exigir a demonstração de ocorrência de dano efetivo para a caracterização dos atos que venham a causar lesão ao erário público, dentre outros, no sentido de frear a sanha punitivista envolvidas na ações de improbidade administrativa.

Assim, a nova sistemática inaugurada com as alterações promovidas na Lei 8.429/1992 pela Lei 14.230/2021 demonstram grande avanço no combate à instrumentalização do lawfare em sua dimensão instrumental.

Referências
VALIM, Rafael. Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017.
ZANIN MARTINS, Cristiano; ZANIN MARTINS, Valeska Teixeira; VALIM, Rafael. Lawfare: introdução
 São Paulo: Editora Contracorrente, 2019. ISBN: 978-85-6922-62-6

Autores

  • é advogado no escritório Nobel Vita Advogados Associados, juiz Leigo do TJCE, mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é advogada no escritório Nobel Vita Advogados Associados, mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri (Urca) e em Ciências Criminais pelo Cers.

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