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Por que pais "solo" não-servidores-públicos são excluídos da licença?

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26 de maio de 2022, 8h00

Coluna de hoje é em coautoria. E retoma um tema caro à teoria do direito e ao constitucionalismo. No último dia 12 de maio, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, pela inconstitucionalidade da não extensão do benefício da licença-maternidade de 180 dias a servidores públicos federais que sejam "pais solo", tema de texto já publicado aqui no ConJur [1].

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A controvérsia foi objeto do RE 1.348.854, em que o INSS recorreu de decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) que confirmou a concessão da licença-maternidade, por 180 dias, a um perito médico do próprio INSS, pai de crianças gêmeas geradas nos Estados Unidos, por meio de fertilização in vitro e barriga de aluguel.

O STF considerou que, em respeito à proteção integral à criança, o benefício deve ser estendido ao pai de famílias monoparentais, ou seja, em que não há a presença da mãe, restando fixada a seguinte tese de repercussão geral (Tema 1.182): "À luz do artigo 227 da Constituição Federal, que confere proteção integral da criança com absoluta prioridade, e o princípio da maternidade responsável, a licença maternidade, prevista no artigo 7º, inciso XVIII, da Constituição Federal de 1988 e regulamentada pelo artigo 207 da Lei 8.112/1990, estende-se ao pai, genitor monoparental".

Diante da sua importância, voltamos ao assunto. A questão envolve direito social (artigo 7º, XVIII, da CF/88) a uma prestação que, no caso em análise, foi oposto em face do Estado. Esse é o ponto. É preciso analisar com mais cuidado os problemas da abrangência da concretização desse direito por via judicial, isso porque há uma questão premente que diz respeito aos limites da atuação do Poder Judiciário na concessão de prestações em face do Estado.

A falta de uma criteriologia que diferencie o ativismo judicial da judicialização da política nos colocou em verdadeiro estado de algaravia conceitual em que se utiliza o termo ativismo judicial para designar posições diametralmente opostas. Nesse panorama, o que aqui se busca é a proteção contra um "Estado social concretizado a golpe de caneta" [2], no qual todos os problemas de efetivação de direitos fundamentais (em especial os direitos sociais) são colocados como uma questão a ser resolvida por meio de decisões judiciais (mesmo que isso acarrete, como no caso sob análise, uma quebra da isonomia e igualdade).

No âmbito político, fenômenos como o dirigismo constitucional e a inflação legislativa contribuem para aumentar o espaço de interferência (possível) do Judiciário no âmbito de regulamentação projetado pelo texto da Constituição e do manancial legislativo, lato senso (leis, medidas provisórias, regulamentos, portarias etc.).

Vale dizer, há um aumento da dimensão hermenêutica do direito: quanto mais direitos são constitucionalizados ou mais leis são editadas para regulamentar toda uma plêiade de matérias, maior será o espaço — possível — de concreção dessa normatividade, atividade que se realiza no âmbito da jurisdição, no enfrentamento das questões concretas e das demandas apresentadas pela sociedade.

No Brasil ocorreu um fenômeno ao qual foi colocado um nome (conceito) que ficou sendo liquidificado. Para qualquer coisa se diz: é ativismo; ou judicialização. Mas não há uma diferença? É evidente que há. Se não se souber a diferenciação, está-se suscetível a enganos. Há muitos livros que explicam a diferença. Mas no Judiciário e no MP parece que esse assunto continua confuso. Talvez por isso um promotor ache que pode fazer ação ou recomendação para plantar begônias. Ou entrar com ação para comprar ônibus para crianças, quando tudo estava indicando que havia outros meios para resolver o problema. Judiciário faz políticas públicas? Eis o busílis.

O que ocorre é que há um desperdício de dinheiro público com ativismos judiciais, enquanto esse mesmo dinheiro serviria para uma judicialização. Não vamos citar doutrina aqui. Apenas queremos mostrar que não é difícil diferenciar ativismo de judicialização. Ativismo sempre é ruim para a democracia. Judicialização pode ser útil e necessária. Ativismo é um problema behaviorístico. Depende da opinião e comportamento de quem pede e de quem julga. Trata-se de um problema de legitimidade. Já a judicialização é um problema de competência. É contingencial. Um poder que tem a competência de fazer não o faz. Logo, tem de ser compelido a fazê-lo. Mas como se faz essa distinção na prática?

Há alguns anos a Crítica Hermenêutica do Direito propõe uma metodologia para fazer a diferenciação. Porém, as práticas mostram que "cada um faz seu próprio conceito". Parece que a dogmática jurídica não acredita no uso de critérios metodológicos.

Sigamos. Devem sempre ser feitas três perguntas quando se está diante de direitos próprios do que estamos tratando. Acreditem: esses critérios funcionam.

A primeira pergunta está ligada à exigibilidade dos direitos em jogo e a legalidade dessa possibilidade. Parece acaciano, mas já na primeira pergunta é possível definir que (não) será possível ingressar com a ação. Isso porque, caso se conclua pela inexigibilidade do direito, a consequência lógica é a sua criação por via judicial, o que evidencia o caráter ativista da decisão. Aliás, no voto do caso homeschooling, o ministro Gilmar Mendes cita as três perguntas fundamentais e as responde corretamente. Assim como o homeschooling fere vários preceitos e princípios, também a concessão da licença lesa a Constituição. Trata-se de uma questão de princípio. Por trás está a questão da igualdade. No mínimo.

A segunda pergunta diz respeito à igualdade e universalização: "nas mesmas condições de 'temperatura e pressão', é possível estender-conceder esse direito para qualquer brasileiro (a)"? Aqui, no caso da licença, qualquer brasileiro nessas condições pode receber? Eis a pergunta de milhões de reais.

A terceira pergunta diz respeito à teoria da justiça e distributivismo. Os demais cidadãos da República devem despender seus recursos para fazer a felicidade daquela pessoa sem ferir a igualdade ou a isonomia? Isto é: o direcionamento de recursos provocado pela decisão judicial obedece ao fundamento principiológico que sustenta o sistema orçamentário previsto na Constituição? Sendo mais simples: os pais não-servidores públicos devem transferir seus recursos para fazer a felicidade dos pais servidores? Eis outra pergunta de milhões de reais. O Bradesco ou o Itaú, que possuem milhares de servidores, podem responder a essa pergunta…

Se houver uma resposta negativa a qualquer uma delas, a pretensão estará equivocada. Em última análise, as três perguntam consolidam a necessidade de preservação dos pressupostos democráticos de análise do direito. Com isso, queremos afirmar a existência de critérios que atravessam o problema da universalização de direitos sociais, na medida em que se essa criteriologia é construída por questões de princípio.

Trata-se, portanto, de reforçar a abrangência do lastro normativo que determina a obrigação de se levar em conta os critérios levantados pelas três perguntas fundamentais da CHD [3]. Busca-se, ao final, reafirmar a força normativa dos princípios que estão associados a essas perguntas e que possuem a capacidade de produzir um "fechamento interpretativo" no Direito.

O caso em tela demonstra como esse fechamento interpretativo (limitação interpretativa, na linha do que trata Bernd Rüthers) tem o potencial de evitar concessões de prestações que, por não serem suscetíveis de universalização, convertem-se em privilégios. Esse é o nome da coisa. Retornando ao que se depreendeu em texto anterior, no qual as três perguntas foram detalhadamente aplicadas ao caso [4], em primeiro lugar, a aplicação da pergunta pela existência de direito fundamental exigível revela que há uma falta de sustentação legal da concessão da prestação por via judicial.

A aplicação da segunda pergunta fundamental, por sua vez, é ainda mais assertiva. Caso se tratasse de uma empresa privada, também seria aplicado o entendimento? Ou somente o Estado é capaz de suportar esse ônus? Se sim, estamos diante de um problema gravíssimo no qual o Judiciário interfere na agenda estatal para determinar a concessão de prestações que não podem ser universalizadas, isto é, concedidas às demais pessoas em situação similar.

Já a aplicação da terceira pergunta fundamental, por sua vez, evidencia o problema da alocação de recursos diante do custo gerado para o Estado ao ampliar um benefício para além dos limites da sua previsão legal/constitucional. Pergunta-se: e se todos os pais solteiros, inclusive aqueles empregados em empresas privadas, resolvessem solicitar a concessão da licença maternidade?

É evidente que é muito simpática a tese de conceder licença aos pais. Quem seria contra? A questão é saber se o direito alberga esse direito simpático. Alguém é contra o direito à felicidade?

De todo modo, surpreende que a ausência de legislação, falta de previsão de custeio e também a relevante circunstância da "desisonomia" para com os funcionários privados não tenham sido debatidos pelo STF, a não ser pelo ministro Alexandre de Morais. Disse-se que a Lindb permite que se supra ausência de lei por analogia ou até mesmo "isonomia". Porém, isso não teria o condão de transformar o STF em legislador positivo, inclusive com criação de despesa.

Post Scriptum: lemos aqui no ConJur (aqui) que o CNJ fez justiça ao jovem juiz demitido de forma equivocada pelo TJ-SP. Na ocasião fiz parecer pro bono, muito bem utilizado pelo excelente advogado Saul Tourinho Leal. Cumprimentos ao doutor Saul e espero que o agora tranquilo juiz Senivaldo dos Reis, já vitaliciado (CNJ contou esse tempo a favor dele), seja um bom magistrado. Em frente!


[2] STRECK, L. L.; LIMA, M. M. B. Lei das políticas públicas é "Estado social a golpe de caneta?" Consultor Jurídico, São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-fev-10/lei-politicas-publicas-estado-social-golpe-caneta

[3] Com base na CHD (Streck), a coautora deste texto defendeu a tese "As três terguntas fundamentais da Crítica Hermenêutica do Direito: a aplicabilidade de uma proposta de limites à atuação do Poder judiciário no Brasil" (Unisinos, 2022); também Pablo Malheiros, "Rac Aplicado ao Direito do Consumidor: uma homenagem a Lenio Streck (Diálogos, 1ed.Salvador: Juspodivm, 2018)"; também "Interpretação do direito privado: o direito civil constitucional prospectivo em diálogo com a crítica hermenêutica do direito. In: Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, v. 1, p. 309-329".

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