Senso Incomum

Todos os brasileiros pais solteiros ganharão 180 dias de licença paternidade?

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25 de novembro de 2021, 8h00

Em 4 de maio de 2017, aqui na ConJur, escrevi o seguinte texto, cujo título era uma pergunta: Todos os brasileiros pais gêmeos ganharão 180 dias de licença paternidade? Agora volto ao mesmo assunto.

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Era inexorável que essa questão chegasse à Suprema Corte. Com efeito, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário 1.348.854 (Tema 1182), que trata da constitucionalidade da extensão da licença maternidade ao pai solteiro servidor público, prevista no artigo 7º, XVIII, da CF/88 e regulamentada pelo artigo 207 da Lei 8.112/1990, bem como se a extensão desse benefício aos homens está condicionada a indicação prévia (por meio de lei) de fonte de custeio em face do artigo 195, § 5º, da CF.

Na origem, recurso interposto pelo INSS contra decisão do TRF-3 que confirmou decisão de primeiro grau que concedeu licença-maternidade, por 180 dias, a um perito médico do próprio INSS, pai de crianças gêmeas geradas por meio de fertilização in vitro e barriga de aluguel.

De acordo com a decisão recorrida, o objetivo das licenças parentais é proporcionar o desenvolvimento do recém-nascido, de modo que, negar-lhe esse direito, viola o princípio da isonomia material em relação às crianças concebidas por meios naturais.

O assunto merece uma análise aprofundada, uma vez que envolve um direito social que envolve uma prestação estatal, constante no artigo 7º, XVIII, da CF/88. O reconhecimento desse tipo de prestação por via judicial motiva um complexo debate que envolve a normatividade dos direitos fundamentais sociais, o agir estatal que possibilita a sua consecução e ainda os problemas que envolvem a alocação de recurso necessária à efetivação desses direitos.

Não contesto as boas intenções de decisões como essa. Minha defesa de direitos ao longo de décadas me deixa a cavaleiro para também criticar medidas que, paradoxalmente, venham a produzir desigualdades por privilégios.

Com efeito. Há uma diferença entre ativismo e judicialização [1], conforme explicito em inúmeros textos e livros. Ativismo é deletério à democracia. Porque é behaviorístico. Ad hoc. Já a judicialização ocorre em qualquer democracia; é contingencial. Por isso, desenvolvi ao longo dos anos três perguntas fundamentais para fazer a distinção entre um e outro. Elas são condição para o enfrentamento crítico-reflexivo do debate sobre a prestação pública em sede de direitos sociais (ou dos limites da atividade jurisdicional em relação aos direitos de caráter prestacional).

São elas: 1) se há um direito fundamental com exigibilidade; 2) se o atendimento a esse pedido pode ser, em situações similares, universalizado, isto é, concedido às demais pessoas e 3) se, para atender aquele direito, está-se ou não fazendo uma transferência ilegal-inconstitucional de recursos, que fere a igualdade e a isonomia [2].

No caso do homeschooling (RE 888.815 — escrevi aqui), o Supremo Tribunal negou o direito. Corretamente. A holding da discussão pode ser aplicada ao caso "dos pais solteiros e pai de gêmeos". No homeschooling, as três perguntas têm resposta negativa, como se pode ver no voto do ministro Gilmar Mendes, que as refere, fazendo o respectivo cotejamento.

Todavia, quando tratou de alteração de etapas de concursos públicos (RE 611.874 e ARE 1.099.099), o Supremo Tribunal deu um passo atrás (aqui).

Como decidirá o STF desta vez? Destacarei alguns pontos que demonstram a aplicação dessas três perguntas ao caso em tela, visando à construção de aportes teóricos para solução da querela. Essa é a função da doutrina:

1) A primeira pergunta, que indaga pela exigibilidade-legitimidade do direito, já evidencia a ocorrência do ativismo: como visto, o aparato normativo não confere o direito à licença. O direito foi concedido sem autorização legal. Poderia parar por aqui e confirmar que a concessão é uma prática de ativismo judicial. E aqui é necessário fazer um alerta: a defesa da legalidade constitucional não corresponde a um posicionamento legalista/exegético. É preciso, de uma vez por todas, afastar esse fantasma, que assombra toda e qualquer defesa do devido processo legislativo no Brasil. Ora, a legalidade é uma garantia abstrata e potencial de universalidade; uma lei é linguagem pública. Ao contrário, quando um Tribunal dá provimento a um direito em uma situação concreta (sem previsão legislativa prévia), a decisão judicial particulariza, "individualiza" ou "setoriza" o debate. Nesse caso específico, em favor dos pais servidores públicos. E é, então, que teremos uma decisão judicial produzindo desigualdade social a partir de um caso concreto. Por isso o critério da previsão legislativa é tão determinante para a análise dos limites da atuação do Judiciário.

Porém, para melhor argumentação, sigo com análise para desdobrar o meu argumento.

2) Supondo que se respondesse sim à primeira pergunta, ainda assim teríamos que seguir. Afinal, o fato de existir autorização legal por si nada quer dizer — poderia ser inconstitucional, por exemplo.

Assim, a segunda pergunta diz respeito à possibilidade de universalização da demanda, ou seja, é possível aplicar o mesmo provimento a todas as pessoas que se encontrem nessa mesma situação? Nas mesmas "condições de temperatura e pressão", o direito pode ser concedido a qualquer pessoa?

É aí que o problema encontra nuance mais grave, pois sabemos que esse entendimento não tem viabilidade para ser adotado em outros espaços. Caso se tratasse de uma empresa privada, também seria aplicado o entendimento? Ou somente o Estado é capaz de suportar esse ônus? Se sim, estamos diante de um problema gravíssimo em que o Judiciário interfere na agenda estatal para determinar a concessão de direitos que, desse modo, são privilégios.

3) Sempre argumentando e testando, vamos para a terceira pergunta: há alocação de recursos que fira a igualdade/isonomia? Nesse caso, essa pergunta escancara uma questão ainda mais séria: o custo gerado para o Estado ao ampliar um benefício para além dos limites da sua previsão legal/constitucional. Mais ainda: quem não é funcionário público e não é pai de gêmeos ou não é pai solteiro tem de transferir recursos para satisfazer essas demandas? Trata-se de uma transferência indevida.

Todos os pais, em condições similares, podem receber a licença paternidade? Os pais funcionários privados podem? Não? Temos aí, pois, um problema grave.

A universalização desse entendimento seria compatível com o planejamento orçamentário? Ora, a própria ideia de planejamento envolve a definição de condições e o estabelecimento de critérios, que são definidos em lei. Por estarem interligadas, retornamos à primeira pergunta fundamental: há nesse caso um direito fundamental exigível?

Mas, para além disso, há a questão da igualdade, que é antecedente. Como falei, desenvolvo esses pontos em meu grupo de pesquisas, inclusive testando decisões, por meio de submissão às três perguntas. Neste momento, oriento tese de doutorado com dados empíricos (Isadora Ferreira) e investigação de pós-doc (Pablo Malheiros) [3].

Algumas decisões concessivas foram fundamentadas na "equidade". Minha pergunta: o que é isto — a equidade? Ora, equidade é a adaptação do direito a um caso concreto, mas quando não há regra. Ou para criar igualdade. No caso, em que caberia a equidade? Como invocar a equidade?

Já outras decisões aludem a "fins sociais e exigência do bem comum"? De quem? Só daquela família? E as outras famílias?

Há uma pergunta fundamental na democracia: quem decide o quanto queremos pagar pelos direitos de todos?

Sei que esta é uma posição antipática. A doutrina tem esse ônus. Para dizer que há que ter cuidado ao decidir — que não é um ato de simples escolha. Dizer "não" também pode ser uma decisão correta.

Por exemplo, não dá para conceder metade da herança para a amante com base na afetividade, como decidiu um tribunal da federação.

Também não daria para conceder um ou dois meses a mais de auxílio maternidade para a mãe na hipótese de mais filhos. E nem ao pai.

A menos que isso tudo possa ser concedido a qualquer mãe ou pai e não apenas a uma mãe ou a um pai funcionários públicos.

O que tento dizer é que a autoridade para decidir não decorre apenas da investidura dos juízes em seus cargos, mas sim dos argumentos de princípio que estes utilizam para justificar o uso da coerção pública. Quando o juiz expede uma ordem, em nome do Estado, esta ordem é resultado de um processo devido, sem protagonistas, sem gaps de legitimidade.

Uso aqui argumentos de princípio. E não de política — lembrando de Dworkin. Há outros argumentos; porém, não são jurídicos. A favor e contra. Deixo-os de lado.


[1] Em dissertação de mestrado por mim orientada, Clarissa Tassinari traça as diferenças entre ativismo e judicialização. Cf. Jurisdição e Ativismo Judicial. Livraria do Advogado, 2013; também Abboud, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 5ª ed. São Paulo, RT, 2021.

[2] STRECK, Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2020, p. 394.

[3] Nesse sentido, ver Frota, Pablo Malheiros da Cunha. Hiperconsumo, Estereótipos e Não Fundamentação: Reflexões sobre um acórdão do TJRJ acerca do fato jurídico-social denominado "rolezinho". In: Redes – Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Unilasale. Vol. 4, 2016 .

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