Opinião

Suspensão do redirecionamento da execução de integrantes de grupo econômico

Autores

  • Cesar Zucatti Pritsch

    é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA) juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência e vice-coordenador pedagógico da Escola Judicial do TRT da 4ª Região.

  • Fernanda Antunes Marques Junqueira

    é doutora em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais e juíza do Trabalho pelo TRT da 14ª Região.

  • Ney Maranhão

    é doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA) juiz do Trabalho pelo TRT da 8ª Região (PA/AP) e membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

25 de maio de 2022, 10h02

"— A sorte vai guiando nossa jornada melhor do que poderíamos imaginar. Veja, amigo Sancho Pança, ali estão trinta, ou pouco mais, desaforados gigantes, com os quais vou travar batalha e tirar de todos a vida."

(Dom Quixote, p. 31)

Em sua fantasiosa peregrinação, acompanhado do fraterno amigo Sancho Pança, Dom Quixote, obstinado a realizar nobres feitos, viu-se contaminado pelos males da pueril imaginação. A determinada altura de sua caminhada, deparou-se com o que afirmava ser desaforados gigantes e, contra eles, travou inútil batalha [1].

"— Santo Deus! — disse Sancho. — Eu não disse que eram moinhos de vento e não gigantes?" [2].

Semelhante devaneio parece permear os debates acadêmicos sempre que se tem em mira o sobrestamento de processos como desdobramento de decisões enunciadas pelos Tribunais Superiores. É verdade que o tema, em si, carrega uma inquietação desconcertante. Mas o sobrestamento não é um bravo gigante e de nada adianta envidar esforços nessa trama quixotesca. Há de se retirar a viga dos olhos [3], que presta a nublar o fenômeno, para desanuviar o caminho.

A inquietação agora é reflexo de recurso extraordinário interposto contra acórdão da 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho no AIRR-10023-24.2015.5.03.0146, em cuja decisão de admissibilidade, datada de 18/5/2022, determinou-se, pela lavra da ministra vice-presidente, Dora Maria da Cosa, "a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, até a decisão de afetação ou julgamento da matéria pela Suprema Corte, nos moldes do artigo 1.036, § 1º, do CPC" [4].

De pronto, a conclusão costurada pela enunciação decisória permite que se indague: (1) sobre a abrangência da suspensão, a afetar os processos em tramitação por todo o Judiciário Trabalhista brasileiro; (2) se o sobrestamento se restringe à inclusão de empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico na fase de cumprimento de sentença sem prévia instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ); ou, na pior das hipóteses, (3) se também contempla a própria cognição incidental da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (CLT, artigo 855-A).

A priori, sob o prisma da abrangência da suspensão, é de se ter em conta que a decisão parece se limitar aos processos em trâmite perante o Tribunal Superior do Trabalho. Deveras, no parágrafo anterior àquele em que se emitiu a decisão suspensiva, como fator de reforço argumentativo quanto às afirmadas controvérsia e relevância da matéria, lê-se sobre a existência de "inúmeros casos que envolvem a mesma discussão pendente de análise no âmbito da Vice-Presidência deste Tribunal Superior do Trabalho". Em seguida, exatamente desse específico universo de ações, selecionou-se um único processo adicional (Ag-ED-AIRR-10252-81.2015.5.03.0146) para servir de caso representativo para o debate junto ao STF.

Daí se seguiu, de pronto, a ordem para determinar a suspensão do trâmite de todos os "processos pendentes", ou seja, a nosso ver, por inferência lógica, apenas e precisamente aqueles portadores da mesma discussão jurídica no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho.

De todo modo, entendimento diverso teria efeito drástico sem precedentes. Milhares de execuções trabalhistas estariam sob o jugo de abrupta paralisação, a ferir o direito fundamental e humano de acesso à justiça (CRFB/88, artigo 5º, XXXV) e de entrega da prestação jurisdicional em tempo razoável (CRFB/88, artigo 5º, LXXVIII), para além, igualmente, de ofender os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e eficiência (CPC, artigo 8º).

É que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), por ocasião do julgamento do RE 966.177/RS, definiu ser a suspensão dos processos ato discricionário do órgão julgador, podendo haver modulação de seus efeitos quando determinada. A leitura do artigo 1036, parágrafo 1º do CPC deve ser levada a cabo sob o filtro hermenêutico constitucional, sem o qual descambaria para o esfacelamento de direitos e garantias processuais fundamentais.

Não se trata da tradicional — e, por vezes, criticada — decisão limitativa de modulação dos efeitos temporais típica do controle abstrato de constitucionalidade (artigo 27 da Lei 9.868/99 e artigo 927, §3º, do CPC/2015), mas da possibilidade de limitar os atingidos pelos efeitos de suas decisões, que ganha notoriedade em julgados desse jaez [5], quando em jogo a satisfação de créditos oriundos de contratos de trabalho, não raro vinculados inclusive a trágicos acidentes laborais.

Aqui, partimos da inequívoca percepção de que a modulação dos efeitos do sobrestamento é medida essencial para se garantir a salvaguarda de direitos fundamentais, revelando-se como ferramenta em benefício dos particulares contra uma equivocada noção (forma de um topoi) de supremacia do interesse público [6], que de modo não incomum prejudica o cidadão em seus mais lídimos direitos [7].

Oportuna, pois, a advertência de Dierle Nunes e Antônio de Souza Viana, ao concluir que o sobrestamento dos processos merece um escrutínio qualificado:

"[…] Quanto mais abrangente for, quanto mais vaga e quão maior for o impacto a gerar nos diversos casos, maior será o seu potencial danoso por uma razão muito simples: o processo não pode se converter num mero script para a produção de teses e de gerenciamento do passivo de casos pendentes no Judiciário" [8].

Exatamente nessa direção se posicionou a ministra vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, em decisão complementar, proferida em 24/5/2022 [9], sensível aos efeitos deletérios que a suspensão em âmbito nacional poderia acarretar. Restringindo o alcance do julgado inicial, estabeleceu que

"[…] a decisão sobre a suspensão de processo em que se discuta, no recurso interposto, a matéria objeto da referida controvérsia (possibilidade de inclusão no polo passivo da lide, na fase de execução, de empresa integrante de grupo econômico que não participou do processo de conhecimento) caberá a cada ministro relator no âmbito do TST. Na Vice-Presidência, contudo, os recursos extraordinários interpostos versando a respeito da matéria em referência serão sobrestados até que ocorra o aludido pronunciamento pelo Supremo Tribunal Federal."

Era, de certo modo, previsível que a modulação se seguisse nesse sentido. Todavia, a decisão encerra uma polvorosa discussão. Além de se ancorar na densidade normativa constitucional, prestigia a integridade do sistema jurídico brasileiro, à luz da disposição inserta no artigo 926 do CPC/2015.

Por sua vez, em relação aos limites objetivos do recurso extraordinário movido em face do acórdão da 3ª Turma do TST no AIRR-10023-24.2015.5.03.0146, é de se delimitar, num primeiro momento, a questão constitucional objeto do juízo de admissibilidade a quo, pela Colenda Corte, e, portanto, o escopo da mencionada suspensão.

O caso versa sobre o cumprimento de sentença na qual a empresa recorrente (Rodovias das Colinas S.A.) arguiu a nulidade da sua inclusão no polo passivo da lide por supostamente pertencer ao grupo econômico da devedora original, sem que fosse precedido da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. A recorrente sustenta a "necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica", nos termos vaticinados pelos artigos 133 do CPC e 855-A da CLT, sem o qual implicaria ofensa direta aos princípios do contraditório e da ampla defesa. O mesmo objeto tem, ainda, o recurso extraordinário oposto em face do acórdão da 1ª Turma do TST no Ag-ED-AIRR-10252-81.2015.5.03.0146, também admitido como exemplificativo da controvérsia.

Nessa senda, a questão (issue) a ser enfrentada pela corte, com base nas amostras acima, para aferição de existência de repercussão geral, consiste, basicamente, em afirmar se é inconstitucional ou não o redirecionamento de execução trabalhista em face de empresa integrante de grupo econômico, que não figurava no título executivo, sem a prévia instauração do incidente de desconstituição da personalidade jurídica (em interpretação da normatividade existente segundo a qual haveria afronta às garantias constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal). Qualquer discussão colateral, fora de tais limites, seria desnecessária (não "determinante") à resolução do caso concreto e, portanto, obiter dictum, desguarnecido de força vinculante.

Em outras palavras, ao se delimitar uma questão jurídica com possível repercussão geral, ad referendum do próprio STF, assim se faz lastreando-se na específica discussão travada nos autos. E, do exame dos limites da quaestio recorrida, ainda que se conclua que a ordem de suspensão é nacional, resta clarividente que permanece incólume a viabilidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica com o propósito de incluir empresas integrantes do mesmo grupo econômico, possibilitado, é claro, o exercício da ampla defesa e do contraditório.

Aliás, esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça ao decidir ser necessária a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto pelo artigo 133 do Código de Processo Civil de 2015, "quando há o redirecionamento da execução fiscal a pessoa jurídica que integra o mesmo grupo econômico da sociedade originalmente executada, mas que não foi identificada no ato de lançamento (na Certidão de Dívida Ativa) ou que não se enquadra nas hipóteses dos artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional (CTN)" [10].

É importante rememorar, a propósito, que, se é verdadeiro que o Código de Processo Civil proíbe a execução em face de quem não participou da fase de conhecimento (artigo 513, §5º), também é veraz que esse mesmo diploma legal, simultaneamente, permite a instauração de cognição incidental, mesmo que em sede de cumprimento de sentença e ainda que para se autorizar a desconsideração inversa da personalidade jurídica (CPC, artigo 134, caput, e 133, §2º, respectivamente). Logo, resta de todo patente que o legislador considerou algumas exceções à regra de participação desde o início da marcha processual, sem que a ulterior integração implique ofensa às garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

Portanto, ainda que sobrevenha ordem de suspensão nacional dos processos pendentes, desprovida de modulação, "redirecionamento direto da execução em face de empresa de mesmo grupo econômico" e "IDPJ e grupo econômico" afiguram-se como questões nitidamente diversas, a merecer tratamento jurídico dessemelhante — e, por óbvio, com imensas consequências práticas quanto aos limites dos efeitos suspensivos aplicados na decisão em análise.

Afinal de contas, não se deve fazer da suspensão dos processos gigantes vorazes, mas, do contrário, ferramenta que assegura estabilidade, integridade e eficiência da ordem jurídica, de tudo semelhante aos moinhos de vento, "e o que neles parecem ser braços são, na verdade, as pás […]" [11].


[1] CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. 1ª ed. – Cotia: São Paulo: Pé da Letra, 2018, p. 31.

[2] CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. 1ª ed. – Cotia: São Paulo: Pé da Letra, 2018, p. 32.

[3] "Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão." (Mateus 7, 5)

[4] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. AIRR-10023-24.2015.5.03.0146, 18/5/2022, min. vice-presidente Dora Maria da Costa. Disponível em https://consultadocumento.tst.jus.br/consultaDocumento/despacho.do?anoProcInt=2019&numProcInt=262612&dtaPublicacaoStr=19/05/2022%2019:00:00&nia=0.

[5] A título de curiosidade, verificar a ADI 4.876/DF, que discutiu a constitucionalidade da LC nº 100 de MG, a qual, além de limitar seus efeitos temporais, excluiu expressamente os aposentados. Em sentido similar, também a ADI 2.791 ED/PR, rel. min. Gilmar Mendes, 17/3/2008.

[6] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016. p. 363-364.

[7] NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Jus Podivm, 2008.

[8] DIERLE, Nunes; VIANA, Antônio de Souza. Suspensão integral de processos em recursos repetitivos preocupa. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-31/opiniao-suspensao-integral-processos-repetitivos-preocupa. Acesso: 23/5/2022.

[11] CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. 1ª ed. – Cotia: São Paulo: Pé da Letra, 2018, p. 32.

Autores

  • é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência do TRT da 4ª Região, autor do "Manual de Prática dos Precedentes no Processo Civil e do Trabalho" (Editora LTr), coordenador de "Precedentes no Processo do Trabalho" (RT) e coautor de "Direito Emergencial do Trabalho" (RT, no prelo).

  • é doutora em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais e juíza do Trabalho pelo TRT da 14ª Região.

  • é juiz do Trabalho do TRT-8, professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio na Universidade de Massachusetts (EUA).

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