Território Aduaneiro

Operador Econômico Autorizado: retorno à presunção de boa-fé

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  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

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24 de maio de 2022, 8h00

Caro leitor desta coluna, convidamos você a conhecer um pouco mais de uma experiência muito bem sucedida em nosso território aduaneiro, de resto em 97 territórios aduaneiros distintos [1]. Ela desembarcou no Brasil no ano de 2014, no belíssimo Instituto Ricardo Brennand, em Recife. Teve dia e hora de anúncio, mas foi fruto de um trabalho prévio, em projeto piloto, envolvendo cinco empresas e equipe da Receita Federal especialmente selecionada para esse propósito.

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Com o grande fluxo de comércio global, uma ferramenta se destaca como das mais essenciais, senão a mais importante para o controle do tráfego de mercadorias pelas aduanas: a gestão de riscos aduaneiros [2] [3]. Em torno desse núcleo gravitam os canais de parametrização para o despacho aduaneiro responsáveis pela redução do tempo de permanência da carga sob o controle físico da aduana, os sistemas informatizados que permitem concretizá-la, permitindo interrupções de despacho naquelas operações que representem maior risco de dano [4]. Na mesma linha, para se realizar a gestão de riscos, atingindo o almejado controle aduaneiro inteligente e eficiente, desenvolve-se a ideia de realizá-lo previamente e a posteriori, respectivamente, pela habilitação prévia de intervenientes e pela auditoria pós desembaraço, em revisão aduaneira [5].

Nesse cenário, surge um programa que estabelece condições a serem atendidas voluntariamente pelas empresas, permitindo-lhes desfrutar de benefícios, em trade-off [6]. Não suspensões ou isenções tributárias, próprias dos regimes aduaneiros especiais, mas benefícios possíveis a partir de uma maior relação de confiança entre a aduana e os intervenientes. E quais seriam esses requisitos capazes de fortalecer esse aparentemente difícil elo entre a Aduana e as empresas? Quais benefícios seriam relevantes, não sendo tributários? As respostas se reúnem no conteúdo normativo regulatório do Operador Econômico Autorizado (OEA).

Em nosso ordenamento, o OEA foi introduzido pela Instrução Normativa no 1.521, de 5/12/2014, na modalidade segurança, indicando princípios e objetivos estruturais, como a adesão voluntária, a gestão de riscos e o atendimento a critérios proporcionais à modalidade de certificação. Os mencionados princípios e objetivos se repetiram nas normas posteriores quais sejam a IN no 1.598/2015 e na atualmente vigente IN no 1.985/2020. E a base legal? O programa precisa de fundamento em lei? Por não ser de adesão obrigatória e não tratar de matéria tributária, pensamos que não. Não obstante, à época da publicação da IN no 1.521/2014, o OEA já estava previsto no CAM (Código Aduaneiro do Mercosul), em seu artigo 15. Posteriormente, com a internalização do AFC/OMC, encontra base legal no artigo 7.7. Mais recentemente, com a inclusão, em 2020, do artigo 814-A no RA/09, passou ter previsão também no Regulamento Aduaneiro. Além disso, o programa encontra base legal ainda na CQR/OMA, no artigo 3.32 do Anexo Geral.

E os requisitos? Quais seriam? Estão divididos em quatro blocos. O primeiro relacionado à admissibilidade contendo exigências básicas para ser OEA. Exemplo: regularidade fiscal, DTE, mais de 24 meses de atividade. Esses requisitos são objetivos, à razão de respostas "sim/não". O segundo bloco de informações, denominado de elegibilidade, pode ser entendido como a espinha dorsal do programa. Prevê a apresentação de histórico de infrações dos últimos três anos. Nesse mapeamento verificam-se as infrações graves e recorrentes, incluindo retificações de declarações de importação e exportação. Essa avaliação é um grande indicativo do nível de conformidade em que se encontra o operador. Nesse bloco ainda, apresentar-se-ão informações sobre os sistemas de TI, solvência financeira; contratação, avaliação e desligamento daqueles colaboradores que ocupem cargos sensíveis. Por fim, o interessado deve apresentar um mapa de risco das suas operações. Os elementos relevantes do gerenciamento de risco aduaneiro devem ser mapeados e verificados, espontânea e voluntariamente pelo interveniente. Destaque-se, nesse passo, a determinação desse operador em cumprir as normas aduaneiras e tributárias. A base essencial, por trás de todo o esforço, é uma firme decisão da alta direção empresarial de estar conforme, de compliance [7].

Os blocos 3 e 4 são específicos para as modalidades de certificação; S e C. A primeira relaciona-se exclusivamente à segurança da cadeia logística, avaliando elementos como o controle de unidades carga, de acesso às áreas da empresa, de parceiros comerciais envolvidos nas operações de exportação e de realização de treinamentos de conscientização de ameaças. A segunda é a modalidade C  — conformidade, na qual são avaliados os seguintes elementos essenciais das importações e exportações: descrição, classificação tarifária e origem das mercadorias, operações indiretas, base de cálculo dos tributos, regimes aduaneiros especiais, qualificação profissional e controle cambial.

A verificação é interna, à guisa de autoavaliação, permitindo às áreas envolvidas do interveniente revisarem seus procedimentos, identificarem riscos e oportunidades de melhoria. Após as necessárias correções e adequações, elevando o nível da conformidade, adotando as melhores práticas, mapeando riscos e fazendo investimentos estruturais e procedimentais, é feito o pedido de validação, por via digital, à Equipe OEA da RFB (Receita Federal do Brasil). Essa tem prazo regulamentar de 105 dias para avaliar as informações e realizar a visita  presencial ou virtual  de validação. Nessa oportunidade verificará a aderência do operador aos requisitos normativos. Ao final, poderá deferir, sem, ou com observações, ou mesmo indeferir o pleito. A lista das empresas certificadas OEA só cresce. Atualmente, os OEAs já respondem por 40% do valor CIF das importações realizadas [8].

Para as empresas que operam no comércio exterior a previsibilidade e a agilidade no fluxo internacional são elementos essenciais. O tempo de carga parada em área alfandegada onera o custo. Se o programa oferece maior previsibilidade e mais celeridade, o investimento se justifica. Ademais, após passar por uma avaliação tão ampla e profunda, ter o selo da idoneidade, da boa-fé, da busca pela melhoria contínua, tudo isso reconhecido pela Aduana do seu país, e sendo reconhecido em outros países, vale o esforço.

Nesse sentido, entre outros, são concedidos benefícios como: parametrização imediata no canal de conferência, que será em quase todas as operações, verde, havendo ainda prioridade de análise no caso de canal diverso; despacho antecipado à chegada das cargas no modal aquático e aéreo; dispensa da exigência de garantia no caso da admissão temporária para utilização econômica; compor uma cadeia logística segura; ponto de contato com Equipe OEA da RFB; possibilidade de participar do OEA Integrado, com outros órgãos anuentes [9] e de ARM — Acordos de Reconhecimento Mútuo que o Brasil assine com outros países.

No recente dia 18/05, o Brasil ampliou o leque dos seus ARMs, firmando um mútuo reconhecimento com 10 países das Américas e Caribe [10]. A partir da validação de outros programas nacionais de OEA, as empresas certificadas no Brasil, podem ser assim reconhecidas e distinguidas nesses outros países, e vice-versa. Um end-to-end confiável trazendo benefícios para todos os envolvidos.

A experiência bem sucedida, cujo núcleo é a confiança entre a Aduana e os contribuintes, levou a relação entre as partes a um outro nível e estimulou a Receita Federal a duas outras iniciativas calcadas na mesma premissa: o Programa Confia e oPrograma Nacional da Malha Aduaneira (PNMA). Esse último autoriza a fiscalização a comunicar indícios de infração, sem que isso marque o fim da espontaneidade do contribuinte. É um aviso, um alerta, permitindo que o contribuinte reveja seus pagamentos e, estando de acordo com o comunicado, recolha espontaneamente eventuais diferenças tributárias, sujeitando-as à multa de mora de 20%, sem sofrer a cobrança da pesadíssima multa de ofício de 75%. São mudanças de paradigma na relação entre o Fisco e o contribuinte que seriam inconcebíveis em outros tempos.

Acreditamos que haja campo para expandir benefícios conjugando o PNMA ao OEA. Partindo da base de confiança, se esse operador erra, ou descumpre a norma, o faz sem dolo. Ele coordena suas ações para o compliance. Dessa forma, parece-nos razoável aplicar o conceito do PNMA, ofertando-lhe a oportunidade de correção espontânea da irregularidade. Que ele recolha a diferença tributária configurada, quando e se for o caso, mas sem multa de oficio; pesadíssima, repita-se! Dessa forma, estimula-se a cultura do cumprimento e do recolhimento espontâneo, assim como da redução da litigiosidade [11]. Evita-se a penalização do erro involuntário, inequivocamente comprovado, na medida em que a empresa já provou seu processo interno de revisão de procedimentos e de busca por um contínuo aperfeiçoamento. Se deixou de recolher porque cometeu um erro de classificação tarifária, por exemplo, sendo alertada, irá corrigi-lo e recolher as diferenças, com multa de mora e não de ofício.

Nessa linha, também a conclusão do Tema 1042 do STF deveria ser excepcionada para os importadores OEA, permitindo-lhes, em caso de alguma exigência pecuniária no despacho da qual discordem, poderem retirar suas mercadorias sem a obrigatoriedade de apresentar qualquer garantia.

Por fim, também no contencioso envolvendo empresas OEA, no administrativo ou judicial, deve-se ter essa prerrogativa como elemento de relevo. Está-se diante de uma empresa que já comprovou a sua idoneidade e sua boa-fé. Conjugando-se essa premissa aos novos paradigmas sancionatórios preconizados pela CQR/OMA (artigo 3.39) e pelo AFC/OMC (artigo 6.3.3), pode-se avaliar melhor a manutenção de penalidades excessivas. No Poder Judiciário, perante mandados de segurança ou medidas de antecipação de tutela, o selo OEA pode ser considerado como prova pré-constituída em favor da empresa. Um dos pilares do Marco Safe da OMA é a relação Aduana Empresa [12] e o OEA consegue entregar muito para o seu fortalecimento, reforçando uma relação de confiança e a boa-fé entre as partes, solo fértil para bons frutos.


[1] Esse número já deve ter superado 100 países, haja vista que é do último compêndio sobre o AEO Global publicado pela OMA, datado de 12/2020: http://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/facilitation/instruments-and-tools/tools/safe-package/aeo-compendium.pdf?db=web. Acesso em 19 de maio de 2022.

[2] WCO Customs Risk Management Compendium: "Risk-based compliance management aims to differentiate as much as possible between compliant, low risk trade and higher risk, noncompliant trade"http://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/enforcement-and-compliance/activities-and-programmes/risk-management-and-intelligence/risk-management-compendium-volume-1.pdf?db=web Acesso em 19 de maio de 2022.

[3] Alguns elementos para gestão de riscos aduaneiros elencados no parágrafo 1º, do artigo 21, da IN no 680/06: regularidade fiscal e habitualidade do importador; natureza, volume ou valor da importação; valor dos impostos incidentes; origem, procedência e destinação da mercadoria; tratamento tributário; características da mercadoria; capacidade organizacional, operacional e econômico-financeira do importador; histórico de ocorrências. http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=15618. Na exportação; artigo 58, da IN no 1702/2017. https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/manuais/exportacao-portal-unico/gestao-de-riscos, acesso em 18/05/2022.

[4] Sobre os programas brasileiros utilizados no gerenciamento de risco com uso de inteligência artificial, batizados de Sisam, Aniita e Patroa, vale a leitura do artigo publicado pela Aduana Brasileira em https://mag.wcoomd.org/magazine/wco-news-86/brazils-new-integrated-risk-management-solutions/ Acesso em 20 de maio de 2022.

[5] Sobre algumas questões controvertidas relativas à revisão aduaneira, publicamos na coluna: https://www.conjur.com.br/2022-fev-08/territorio-aduaneiro-confianca-aduana-novos-paradigmas-controle-aduaneiro2

[6] Artigo de Lars Karlsson aborda os benefícios tangíveis e continuamente oferecidos para a empresa OEA, como essenciais para o sucesso do programa. https://worldcustomsjournal.org/Archives/Volume%2011%2C%20Number%201%20(Mar%202017)/1827%2001%20WCJ%20v11n1%20Karlsson.pdf

[7] Não sem razão, quando se fala em trade compliance indispensável incluir a autoavaliação normatizada no programa OEA.

[9] OEA integrado com a Secex já conta com 37 empresas que são OEA e utilizam de benefícios para simplificar a obtenção de atos concessórios no drawback suspensão e isenção.

[10] Além do Brasil, fazem parte do acordo Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai. https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2022/maio/brasil-firma-acordo-de-reconhecimento-mutuo-do-oea-com-outros-dez-paises-das-americas-e-caribe . Acesso em 21 de maio de 2022.

[11] O tema foi objeto de nossa coluna em texto escrito pelo colega Rosaldo Trevisan: https://www.conjur.com.br/2022-mai-03/territorio-aduaneiro-contribuicoes-aduaneiras-melhoria-contencioso-administrativo

[12] Na obra Temas Atuais de Direito Aduaneiro III, coordenada por Rosaldo Trevisan, publicado pela Aduaneiras, escrevemos sobre o tema no artigo Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado e o desenvolvimento do Pilar Aduana  Empresa do Marco Safe da OMA.

Autores

  • é sócio-fundador da HLL Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, multiplicador do Programa OEA da RFB, fundador e presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, acadêmico da International Customs Law Academy (Icla) e professor de pós-graduação na PUC-MG, Enap, IBDT, Ibmec e Cedin.

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