Observatório Constitucional

A geografia multinível do Direito Constitucional como espaço de resistência

Autor

  • Melina Girardi Fachin

    é professora associada da Universidade Federal do Paraná (com estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra no Instituto de Direitos Humanos e Democracia) doutora em Direito Constitucional (com ênfase em direitos humanos) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo visiting researcher da Harvard Law School (2011) mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP bacharel em Direito pela UFPR e advogada sócia de Fachin Advogados Associados.

21 de maio de 2022, 8h03

Vivenciamos o estabelecimento de um discurso constitucional contemporâneo pautado na pluralidade de ordens, com valores essenciais à própria concepção da Constituição como democracia e direitos humanos. Somos cientes, todavia, de que estas noções são plurais e historicamente construídas e que podem, justamente por esta medida, também serem desconstruídas.

O novo cenário formado pela catarse do direito constitucional e do direito internacional dos direitos humanos exige um alargamento da perspectiva do constitucionalismo tradicional. Embora o Estado, com base nas Constituições nacionais, tenha a responsabilidade primordial de realização dos direitos, a crescente importância do diálogo entre os diferentes planos de proteção para a plena concretização dos direitos é um fenômeno irreversível e particularmente notável da nossa contemporaneidade constitucional.

Esse movimento contemporâneo achega os conceitos de direitos humanos e direitos fundamentais; e assim, o direito constitucional e o direito internacional dos direitos humanos aproximam-se cada vez mais. Com isso, ambos se ressignificam dentro de um discurso transnacional que se forma em torno da força expansiva do princípio de dignidade humana.

Na relação entre o constitucionalismo interno e o direito internacional, ressignificam-se as estruturas e o pluralismo surge como a moldura deste novo espaço, como propõe a teoria de Neil Walker. Transcendendo às clássicas discussões entre monismo e dualismo (que não nos parecem mais ajustadas a este espaço-tempo) concebem-se diferentes ordens sem hierarquia, mas integradas numa coexistência heterárquica que se reforça mutuamente, formando uma paisagem com diferentes níveis, que se nutrem e se limitam mutuamente; daí a expressão multinível de Ingolf Pernice.

Evidentemente, a intenção não é simplesmente transplantar as ideias europeias de pluralismo constitucional e constitucionalismo multinível para o contexto latino-americano, mas, aproveitando o seu potencial de expansão, adaptá-las para maximizar a proteção dos direitos humanos no contexto das dificuldades estruturais que a região enfrenta.

Em nosso contexto regional latino-americano profundamente marcado por desigualdades, os diálogos entre os diferentes níveis constitucionais, com atenção especial ao sistema interamericano de direitos humanos, possui potencialidade transformadora. Neste sentido de dilatação, outros movimentos apontam na mesma direção, como o a emergência do um ius commune latino-americano apontado por Bogdandy, Morales e Piovesan.

Na experiência brasileira, os casos submetidos ao sistema interamericano têm um impacto significativo na reforma das leis e políticas públicas de direitos humanos, permitindo progresso interno significativo, sobretudo em prol das vítimas. Em matéria de gênero isto é muito eloquente. A recente adoção de um protocolo para julgamento com perspectiva de gênero é fruto justamente desta espacialidade constitucional que se multiplica na proteção dos direitos humanos.

Para fins de ilustrar o argumento, importa sublinhar que o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero brasileiro tem como objetivo capacitar o sistema de justiça para a realização de julgamentos comprometidos com maior equidade entre homens e mulheres. A iniciativa busca, assim, romper com desigualdades estruturais em relação às mulheres, replicadas, inclusive, no sistema de justiça; vindo a colmatar a falta de consciência sobre deveres e capacidades de todas as atoras e atores do sistema de justiça de transformar os padrões de conduta que favorecem desigualdades e discriminações.

A adoção do protocolo pelo CNJ concretiza o constitucionalismo multinível, pois traz, a um só tempo, comandos constitucionais e internacionais sobre a matéria. Atende ao corolário constitucional da igualdade de gênero — na sua vertente substancial de igualdade — e, além disto, cumpre com os deveres de realizar julgamento com perspectiva de gênero entoado pelo general comment 35 do Comitê CEDAW e com as determinações do sistema interamericano.

Além de dialogar com o sistema ONU, o protocolo é forte no sistema regional de proteção. A Comissão e a Corte interamericanas, baseadas Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará, enfatizam há mais de uma década o dever estatal de levar adiante julgamentos com perspectiva de gênero. Em especial, após o julgamento do emblemático caso Gonzalez e outras vs México (Campo Algodoneiro, 2009), pela Corte Interamericana, assentou-se que os estereótipos de gênero influenciam de forma negativa a investigação e julgamento dos casos envolvendo feminicídios e que os Estados tem dever de agir para construção de interpretação judicial comprometida com a igualdade de gênero e inclusão. O que ficou ainda mais avigorado, especificamente na realidade brasileira, com a condenação no caso Márcia Barbosa e outros versus Brasil.

Como a matéria de gênero nos demonstra, a estrutura multinivelada permite demonstrar o caráter estrutural das opressões e dar uma perspectiva mais ampla, lançando luz, por meio de comparações e trocas, sobre os diferentes papéis que a constituição desempenha em relação àquelas e aqueles mais vulneráveis.

Neste sentido, os diálogos constitucionais multiníveis permitem compensar défices nacionais, fomentar os progressos legislativos e, nas políticas públicas de direitos humanos, empoderar vítimas e movimentos sociais na luta pelos direitos e pela justiça, bem como prevenir retrocessos no regime de proteção dos direitos.

Nesse momento complexo da nossa conjuntura nacional, marcado pela erosão democrática e pelo do autoritarismo crescente, a afirmação da espacialidade multinível é ainda mais imperativa. As noções que povoaram o discurso constitucional contemporâneo com valores essenciais à própria concepção da Constituição como democracia e direitos humanos estão sob risco, senão em xeque. Como projetos históricos, estes conceitos estão submetidos a um intenso processo de desconstrução; como observamos na contemporaneidade e, em especial, no Brasil.

É certo que a deterioração democrática e constitucional brasileira não é episódio recente e nem isolado. É necessário reconhecer o processo global de deterioração democrática como causa e efeito, ao mesmo tempo, de um fenômeno coordenado de autocratização: Brasil, Hungria, Turquia são exemplos do que se afirma.

Ainda que não exclusivamente, no Brasil contemporâneo encontramos um caldo de cultura propício para que este fenômeno se intensifique: o papel ambíguo das forças aramadas brasileiras muito em decorrência da ausência de uma justiça de transição; a conveniente omissão do Legislativo dominado pela troca de favores com o Executivo; a cooptação dos órgãos de controle — como a Procuradoria Geral da República; os mecanismos de perseguição e intimidação à oposição; o uso disseminado da desinformação amparada por ferramentas virtuais; ataques aos órgãos de controle, em especial ao Poder judiciário; descrédito às eleições e por aí vai.

As investidas se infiltram para além dos achaques às Instituições, mas também à própria Constituição e seus conceitos centrais, como os direitos humanos. Um traço característico destes movimentos autocráticos é a persecução de uma agenda antidireitos que assume contornos particularmente ameaçadores sobretudo àqueles e àquelas que estão à margem da proteção marcados por posições de vulnerabilidades e sobre os quais múltiplas interseccionalidades se somam.

Diante desse cenário, afirmar esta geografia constitucional multinivelada pode ser essencial à própria sobrevivência da democracia e do constitucionalismo brasileiros. Estes diálogos abrem espaços num ambiente multinível, caracterizado simultaneamente pela constitucionalização, internacionalização e humanização, em torno de uma constituição aberta e porosa, radicalmente centrada nos direitos humanos, na prevenção do sofrimento humano e na contenção do arbítrio.

No caso brasileiro convém sublinhar que a geografia multinível já estava desenhada no próprio projeto constitucional e é reforçada pelos comandos internacionais de direitos humanos de que o Estado brasileiro faz parte. É, portanto, uma condição que o atual estado da arte do direito constitucional e do direito internacional dos direitos humanos nos colocam.

Nossa Constituição imprimiu seu próprio caráter constitucional às normas internacionais de direitos humanos e ali promoveu uma guinada axiológica humanista. Por essa rota, não apenas ampliou o bloco de constitucionalidade, como também permitiu a oxigenação do texto constitucional por meio da adoção de cláusulas de aberturas (sobretudo os parágrafos 2º e 3º do artigo 5º) que permita constantemente renovar o sistema. São vasos comunicantes que trazem para dentro do sistema constitucional o direito internacional dos direitos humanos em fecundo diálogo. Há, assim, uma frutífera abertura da cena constitucional estatal ao ambiente internacional de proteção de direitos humanos; não como algo exógeno, mas como um elemento apropriado como dele constitutivo.

Tradicionalmente, o enfoque constitucional tem como tema a recepção das normas internacionais em matéria de direitos humanos e a internalização das decisões internacionais que tem relação direta com o chamado controle de convencionalidade. Em que pese reconhecermos sua importância, não nos parece que deva ser este o enfoque central do constitucionalismo multinível.

Os sentidos dos diálogos aqui tomados devem ser amplificados: marcados pelas trocas e integração argumentativa livre, pautados nos compartilhamentos de experiências e resistências constitucionais, assumindo contornos mais abertos e, portanto, mais democráticos por não dependerem apenas de um canal estatal-institucional para fluir. Portanto, não se trata apenas de um diálogo entre juízes ou Cortes como centra parte da doutrina e grande parte da produção teórica neste sentido. Também, mas não só.

O reconhecimento destes canais mais amplos do panorama multinível, neste cenário de cooptação institucional pela erosão autocrática, é vital. Ao não se restringir apenas ao campo normativo e institucional, emerge a importância e o protagonismo dos movimentos coordenados de ação interna-internacional impulsionada pela resistência!

Neste influxo é que se propõe a afirmação da geografia multinível do direito constitucional brasileiro, que deve ser vista, senão como catalisadora de proteção dos direitos e da Constituição, quando menos como dique de contenção dos retrocessos que o golpe em curso impõe ao constitucionalismo e à democracia.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!