Ambiente Jurídico

Participação comunitária e adoção de bens culturais no Brasil

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

14 de maio de 2022, 8h05

No ordenamento jurídico brasileiro está reconhecido, desde o advento da Constituição Federal de 1934, que é dever do poder público "favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país" (artigo 148).

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No atual regime constitucional, estabelecido pela Carta de 1988, o dever comum da União, do Distrito Federal, dos estados e dos municípios, além de abranger a proteção (ação formal de reconhecimento) dos documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, monumentos, paisagens naturais notáveis e sítios arqueológicos (artigo 23, III), compreende também a adoção de medidas concretas de preservação com vistas a "impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural" (artigo 23, IV). Ou seja, além do formal reconhecimento dos bens de valor cultural, exige-se atualmente a implementação de ações de efetivação da proteção, de sorte que as ações estatais não repousem em meros atos administrativos enunciadores de uma salvaguarda que não passa de vã promessa ou carta de intenções inscrita em letras frias sobre folhas de papel.

Outro aspecto que merece destaque no atual ordenamento jurídico constitucional brasileiro diz respeito à inovação sobre a expansão do rol de responsáveis pelo dever de proteger e preservar os bens integrantes do nosso patrimônio cultural.

Com efeito, o legislador constituinte estabeleceu que o "poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação" (artigo 216, § 1º).

Assim, o dever de proteção e preservação não é mais solitário do poder público, mas sim solidário, devendo ser compartilhado com a comunidade que, ao fim e ao cabo, é a destinatária final dos benefícios advindos das medidas de salvaguarda dos bens que integram o nosso patrimônio cultural, compreendendo signos identitários da evolução da história, dos feitos e da gente brasileira.

O comando inserto no artigo 216, § 1º, da Constituição Federal de 1988 alicerça o chamado "princípio da participação comunitária na proteção do patrimônio cultural", que expressa a ideia de que para a resolução dos problemas atinentes a tal área deve ser dada especial ênfase à cooperação entre o Estado e a sociedade, através da participação dos diferentes grupos sociais na formulação e na execução da política de preservação dos bens culturais, envolvendo ações de seleção (identificação dos bens culturais), proteção, preservação e promoção.

Este princípio encontra reforço, ainda, no artigo 1°, parágrafo único, e no artigo 225, caput, da Carta vigente, que, conjugados com o artigo 216, § 1º, prescrevem à coletividade o direito/dever de defender e preservar o meio ambiente cultural para as presentes e futuras gerações.

A percepção da necessidade dessa conjugação de esforços não é recente em âmbito internacional.

As Normas de Quito, sobre conservação e utilização de monumentos e lugares de interesse histórico e artístico editadas em 1967, após reunião da Organização dos Estados Americanos, já prenunciavam que:

"Do seio de cada comunidade pode e deve surgir a voz de alarme e ação vigilante e preventiva. O estímulo a agrupamentos cívicos de defesa do patrimônio, qualquer que seja sua denominação e composição, tem dado excelentes resultados, especialmente em localidades que não dispõem ainda de diretrizes urbanísticas e onde a ação protetora em nível nacional é débil ou nem sempre eficaz".

Os novos tempos mostram efetivamente que o Estado, por si só, na maioria das vezes não tem condições de atuar de maneira pronta e eficaz para a satisfação de todos os anseios públicos. Daí, a tendência constitucional de incentivar a participação da sociedade na definição e execução de medidas que visam à melhoria da condição de vida da própria população. Tecnicamente, esse direito é chamado de status constitucional ativo, pelo qual o cidadão recebe competências para participar e auxiliar o Estado na consecução dos objetivos estabelecidos pela constituição, entre os quais está a salvaguarda dos bens culturais.

São várias as possibilidades do cidadão (de forma isolada ou através de associações), contribuir para a preservação de nosso patrimônio cultural, destacando-se as seguintes:

  • Participação popular no processo legislativo, desde a fase de discussões até a aprovação final do projeto (audiências públicas);
  • Iniciativa popular de lei (CF/88 — artigo 61, § 2º);
  • Referendo e plebiscito;
  • Direito de acesso a informações públicas (CF/88 — artigo 5º, XXXIII);
  • Direito de petição (CF/88 — artigo 5º, XXXIV);
  • Ação popular (CF/88, artigo 5º. LXXIII);
  • Ação civil pública (Lei 7.347/85, artigo 5º);
  • Atuação direta do terceiro setor (ações desenvolvidas por organizações não governamentais voltadas para a proteção do patrimônio cultural);
  • Instituição de reservas particulares do patrimônio natural para o desenvolvimento de atividades de cunho científico, cultural, recreativo e de lazer (Decreto 1.922, de 5 de junho de 1996);
  • Solicitação de tombamento voluntário;
  • Participação nos conselhos deliberativos do patrimônio cultural e demais órgãos colegiados dotados de poder normativo;
  • Convocação e participação em audiências públicas.

Medida ainda pouco explorada em nosso país diz respeito ao mecanismo de "adoção" de bens culturais, por meio do qual pessoas físicas ou jurídicas assumem voluntariamente a obrigação de cuidar da conservação de bens integrantes do patrimônio cultural, recebendo formalmente tal encargo por meio de ato celebrado com o órgão estatal, em que são estabelecidos os direitos e deveres do adotante.

Em Bogotá, na Colômbia, por exemplo, o Decreto nº 628, de 2016, estabeleceu as regras "Por medio del cual se crea y desarrolla el Programa Adopta un Monumento y se dictan otras disposiciones", criando "estrategias y mecanismos para la restauración, preservación y defensa de los bienes conmemorativos, esculturas y otros bienes culturales ubicados en el espacio público de Bogotá". De acordo com a normativa colombiana, o programa "Adopta un Monumento" objetiva "vincular a las entidades, personas naturales o jurídicas, públicas y/o privadas, nacionales o extranjeras, para apoyar las actividades de restauración, preservación y defensa de los bienes conmemorativos, esculturas y otros bienes culturales ubicados en el espacio público de Bogotá".

Na mesma linha de ação, em Belo Horizonte (MG), ações integradas do Ministério Público Estadual com a Prefeitura Municipal culminaram na edição do Decreto nº 14.107, de 1º de setembro de 2010, que cria o "Programa adote um bem cultural" no âmbito do município de Belo Horizonte e estabelece normas e procedimentos para parcerias entre o poder público municipal e a sociedade, no que concerne à adoção de bens culturais e dá outras providências.

O programa belo-horizontino é destinado a propiciar à iniciativa privada a possibilidade de cooperar com o Poder Público na restauração, conservação, salvaguarda e promoção de bens culturais protegidos e instalados nas vias e logradouros públicos ou nas unidades da Fundação Municipal de Cultura. Os interessados em participar do programa devem encaminhar solicitação de adoção à Fundação Municipal de Cultura e, uma vez aceita a solicitação de adoção, o acordo será formalizado por meio de termo de cooperação válido por dois anos.

De acordo com a normatização municipal, o adotante poderá, a seu critério, contratar empresas especializadas para a conservação do bem cultural objeto do convênio. Prevê ainda o decreto que é permitido ao adotante a colocação de placa alusiva à sua parceria com o poder público municipal em local previamente definido junto ao bem cultural adotado, respeitando os critérios definidos pela Fundação Municipal de Cultura.

Enfim, em tempos de limitados recursos públicos disponíveis para investimentos na área, a implantação de mecanismos de corresponsabilidade envolvendo a gestão e a preservação de bens culturais, com o apoio da iniciativa privada, a exemplo da adoção de monumentos, pode constituir iniciativa de relevo para assegurar a efetivação dos mandamentos constitucionais acima mencionados, proporcionando à sociedade a fruição hígida dos bens portadores de referência à ação, à memória e à identidade do povo brasileiro.

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