Opinião

Violência psicológica contra mulher: tipo penal autofágico e direito penal simbólico

Autor

12 de maio de 2022, 6h04

1) O novo tipo penal: artigo 147-B do Código Penal, com a redação dada pela Lei 14.188/2021:

"Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave".

2) A ineficácia do tipo penal: meu objetivo é apontar que não há como aplicar, na prática, o artigo 147-B do Código Penal.

3) O bem jurídico penalmente tutelado: nos ensina Claus Roxin que as "fronteiras da autorização de intervenção jurídico-penal devem resultar de uma função social do Direito Penal" [1]. A partir do conceito de bens jurídicos do autor alemão  as "circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos" [2] , identificamos que o bem jurídico que se pretendeu tutelar com a inserção do artigo 147-B no Código Penal foi a saúde mental da mulher. A justificativa do Projeto de Lei n.º 741/2021 — que culminou na aprovação da Lei nº 14.188/2021  era precisamente "reprimir condutas atentatórias contra a saúde psicológica das mulheres e sua liberdade". Reconhecia-se que a violência psicológica era "uma das formas mais frequentes de agressão à mulher" e que merecia tratamento penal [3].

A função social do Estado, legitimadora de tal tutela, pode ser inferida do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, na concepção kantiana de que todo ser humano existe como um fim em si mesmo e não como meio para uso arbitrário de outra vontade [4], inserto no artigo 1º, III, da Constituição da República e no qual se ancora o direito fundamental da igualdade (artigo 5°, I, da CR) [5], bem como no comando do artigo 226, §8º, da CR, a que o Estado crie mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares. Nesses contextos, repito, a vulnerabilidade da mulher, sob a perspectiva de gênero, é especialmente marcada e o maltrato psicológico exerce um papel preponderante na perpetuação do ciclo da violência. A escolha do legislador ordinário pela proteção dirigida a tal bem jurídico estaria, em tese, mais do que justificada.

A criação de um tipo penal com a restrição do sujeito passivo às pessoas do gênero feminino, a princípio, também tem fundamento. A defesa dos direitos das mulheres impõe a adoção de ações afirmativas, com objetivo de alcançar-se, assim, a igualdade material e substantiva entre homens e mulheres. A Lei Maria da Penha é exemplo disso. O que se pretendeu, com a inclusão do artigo 147-B ao Código Penal pela Lei nº 14.188/2021, também. Devemos recordar que a constitucionalidade do artigo 1º da Lei Maria da Penha, declarada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 19, consagrou o entendimento de que o tratamento diferenciado entre os gêneros masculino e feminino da Lei Maria da Penha é harmônico com a Constituição da República, eis que "necessária a proteção ante as peculiaridades física e moral da mulher e a cultura brasileira" [6].

4) Conflito aparente de normas: entre os tipos penais da violência psicológica contra a mulher, do artigo 147-B do Código Penal, e a lesão corporal, do artigo 129 do Código Penal, há um conflito aparente de normas a ser resolvido pela aplicação dos princípios da especialidade e da subsidiariedade. Iniciemos pela especialidade. O crime de lesão corporal tem a descrição da conduta delituosa de ofender a saúde de outrem, o que engloba tanto a saúde física quanto a saúde mental. O tipo penal não faz referência ao gênero do sujeito passivo. Já o crime de violência psicológica se refere exclusivamente à ofensa à saúde mental e à vítima do gênero feminino. É como se o crime de violência psicológica contra a mulher tivesse sido criado a partir de dois recortes do crime de lesão corporal, um de natureza objetiva  o tipo de lesão ao bem jurídico protegido, restringindo-o à saúde mental  e outro de natureza subjetiva  restringindo o sujeito passivo às pessoas do gênero feminino. A conduta de ofender a saúde mental da mulher poderia muito bem se encaixar no crime de lesão corporal se não houvesse, agora, a norma específica da violência psicológica contra a mulher.

O conflito estaria resolvido, não fosse pela expressão "se a conduta não constitui crime mais grave" contida no final do tipo penal da violência psicológica contra a mulher. Aí é que entra o princípio da subsidiariedade. Então fica a questão: quando é que a conduta de causar dano emocional à mulher configurará crime mais grave? Isso acontecerá quando o dano psíquico constatado na vítima por perícia for de tal ordem que resulte em: a) incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; b) perigo de vida; c) debilidade permanente de membro, sentido ou função; ou d) aceleração de parto, casos em que a conduta constituirá crime mais grave — lesão corporal grave (CP, artigo 129, §1º); ou e) incapacidade permanente para o trabalho; f) enfermidade incurável; g) perda ou inutilização do membro, sentido ou função; h) deformidade permanente; i) aborto, casos em que a conduta constituirá lesão corporal gravíssima (CP, artigo 129, §2º); ou ainda j) em morte, que constituirá lesão corporal seguida de morte (CP, artigo 129, §3º). Nos casos de lesão leve, se o crime for praticado contra a mulher por razões do gênero feminino  por envolverem violência doméstica e familiar ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher , estará configurado o crime de lesão corporal por razões de gênero (CP, artigo 129, §13).

Lembremos ainda que o âmbito doméstico e familiar não é elementar do crime de violência psicológica. O novo tipo penal não faz alusão ao contexto, como o fez a Lei Maria da Penha, em seu artigo 1º, ao demarcar sua aplicabilidade aos conflitos havidos no âmbito doméstico ou familiar [7]. Então, o que restará à aplicação dessa norma penal subsidiária será exclusivamente aqueles casos em que a lesão for considerada leve e a questão de gênero  que a norma pretendia enfrentar  não estiver envolvida. Isto é, naqueles casos em que não restar configurada a vulnerabilidade da mulher sob uma perspectiva de gênero. Ora, se a hipossuficiência sob a perspectiva de gênero não estiver presente, o fato de a vítima ser mulher, por si só, não justificará o agravamento da pena  a pena prevista para o artigo 147-B do Código Penal é de seis meses a dois anos de reclusão e multa e para o artigo 129, caput, do Código Penal é de três meses a um ano de detenção  àquele (ou àquela) que cometer a conduta de ofender-lhe a saúde mental.

Veja-se: para um mesmo fato  ofender a saúde mental  haverá dois tipos penais, com previsão de penas diferentes. Se a vítima for mulher, a pena será de seis meses a dois anos de reclusão e multa; se não for mulher, a pena será bem menor: de três meses a um ano de detenção. A vulnerabilidade de gênero justificaria essa essa discriminação positiva, como já defendi. Se não estiver presente, não haverá, em nossa Constituição, fundamento a respaldar tal aplicação diferenciada de pena.

Aliás, quando a hipossuficiência sob a perspectiva de gênero não estiver demonstrada, até mesmo a Lei Maria da Penha tem sua aplicação afastada. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem consolidado esse entendimento [8].

Colocadas as coisas dessa maneira, concluo que o crime de violência psicológica contra a mulher do artigo 147-B do Código Penal não tem qualquer eficácia. É um tipo penal a que chamo de autofágico, que se consome a si próprio quando se vai tentar aplicá-lo. Seja porque remete à aplicação de outro tipo penal, o artigo 129, já existente em nosso Código Penal desde 1940  e que seria suficiente à repressão penal da conduta de ofender a saúde mental da mulher — seja porque na aplicação subsidiária padece de inconstitucionalidade. Seria aquilo que Claus Roxin denomina de norma jurídico-penal preponderantemente simbólica, que serve para dar a impressão de que se está fazendo alguma coisa para combater ações e situações indesejadas, mas que não gera efeitos protetivos concretos [9].


[1] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 16.

[2] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 17.

[3] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 741/2021. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1970835>. Acesso em: 14 abr. 2022.

[4] KANT, Immanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADC 19. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=217154893&ext=.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2022.

[7] ROSA, Alexandre Morais da; RAMOS, Ana Luisa Schmidt. A criação do tipo de violência psicológica contra a mulher (Lei 14.188/21). Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-jul-30/limite-penal-criacao-tipo-violencia-psicologica-mulher-lei-1418821>. Acesso em: 30 out. 2021.

[8] Vide SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgREsp 1.700.032/GO. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?newsession=yes&tipo_visualizacao=RESUMO&b=ACOR&livre=1700032>. Acesso em: 10 abr. 2022.

[9] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução Luiz Grecco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 47.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!