Fatura atrasada

Jornalista condenado lança campanha de solidariedade a si mesmo

Autor

8 de maio de 2022, 11h29

Um grupo formado por procuradores, delegados, um juiz voluntarista e jornalistas roteirizou uma "operação". Com acusações sem provas, insinuações pirotécnicas e um rufar de notícias escandalosas, o consórcio levou pessoas para a prisão e destruiu reputações. Tempos depois, desmascarados, os antes desassombrados paladinos trocam de fantasia. Com vestes de mártires e cara de choro, invocam solidariedade e pedem vaquinhas para ajudar a pagar as indenizações a que são condenados.

O cenário acima já virou familiar. Foi o mesmo em quase todas as pantomimas apelidadas de "operações da PF". Quem o trouxe de volta, esta semana, foi o jornalista Rubens Valente que, condenado a pagar por seus erros, lançou uma campanha de solidariedade a ele mesmo. Processado pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, Valente terá que pagar algo como R$ 310 mil a instituições de caridade.

O objeto da condenação foi o livro "Operação Banqueiro". Nele, Valente constrói uma narrativa fantasiosa para defender o ex-delegado, condenado e foragido, Protógenes Queiroz. O business plan do consórcio de que o jornalista participou era o de tirar o financista Daniel Dantas do comando da Brasil Telecom e passá-la para os principais doadores de campanha do Partido dos Trabalhadores.

Ao revogar duas ordens de prisão ilegais do empresário, o ministro Gilmar Mendes tornou-se alvo da turma de Valente. Atacá-lo era um objetivo estratégico do negócio. Um dos lances mais ousados do envolvimento ilícito do jornalista, teve como personagem o então procurador da República Luiz Francisco de Souza.

O jornalista produziu texto para uma reportagem com o objetivo de fritar Dantas. Acontece que o jornal o rejeitou, por falta de consistência. Mas o procurador o usou assim mesmo para fundamentar uma Ação. Interpelado sobre a falsidade, o jornalista lamentou, mas sustentou o texto: "Não saiu (a reportagem), mas é aquilo mesmo."

Clique aqui para ler o que saiu na Folha.
Clique aqui para ler a falsificação na ação do Ministério Público.
Clique aqui para ler a própria Folha apontando a falsidade.

Apesar de levar a assinatura do procurador, descobriu-se depois, a "denúncia" baseada na reportagem que não existiu fora produzida na empresa de Luís Roberto Demarco, inimigo de Dantas. Nas propriedades do arquivo em word encontraram-se as digitais de Marcelo Elias, advogado da Nexxy Capital, de propriedade de Demarco.

Clique aqui para ler notícia da Folha de S.Paulo informando que a ação assinada pelo procurador Luiz Francisco tinha origem em computador da empresa Nexxy Capital.

Estranhamente, essas informações — centrais para a compreensão do que foi a "satiagraha" — não estão no livro. Assim como a informação de que a ação foi rejeitada pela Justiça por que "a despeito da gravidade das ilações formuladas pelo MPF, o ajuizamento da presente demanda baseou-se, quase que exclusivamente, em reportagens de veículos mediáticos, não sendo crível que o órgão ministerial possa emprestar a tais reportagens a condição de provas (…) ", como se lê na sentença do juiz federal Flávio Oliveira Lucas, de 30/8/2011.

O livro
O enredo dessa "operação" é um conto de fadas contemporâneo. Dois personagens heroicos, o juiz Fausto de Sanctis e o delegado Protógenes Queiroz decidem livrar o Brasil de um tubarão do mundo dos negócios: o nefasto Daniel Dantas. Mas, mesmo munidos das mais evidentes provas, passam da condição de acusadores para a de acusados. Com poderes extraterrestres, Dantas compra o governo, a imprensa, as forças armadas, os ministros do Supremo Tribunal Federal e escapa de todas as acusações. Os mocinhos caem em desgraça. O mal triunfa mais uma vez.

Para sustentar a trama, o livro omite, esconde ou minimiza as trapaças dos investigadores enquanto amplifica com malabarismos verbais as culpas dos seus alvos. Cria fatos também. Logo na contracapa, por exemplo, escreve-se que depois de condenar Dantas, o juiz Fausto de Sanctis "foi transferido para uma vara qualquer, sem brilho e poder", o que nunca aconteceu.

O juiz foi promovido a desembargador. Inventa também que Sanctis foi surpreendido no dia da posse, no final de janeiro de 2011, com a notícia inesperada de que iria cuidar de temas previdenciários no TRF-3. A designação já era sabida mais de dois meses antes.

Ao tentar descrever uma enrolada história de suborno dos delegados envolvidos nas investigações, com base em uma gravação ininteligível, o livro atribui frases ao preposto de Dantas em um momento no qual ele ainda nem havia chegado ao local do encontro. Sempre acolchoado por truques de linguagem, o livro não informa o leitor, por exemplo, que Hugo Chicaroni (segundo a "satiagraha", o indivíduo que fez a ponte entre Dantas e os investigadores) foi um ator introduzido na cena pelo delegado e não por Dantas. Quem escreveu a história esqueceu de revelar que Protógenes e Chicaroni vinham combinando a encenação seis meses antes do que o livro indica.

Em nome do bem, sempre, o livro omite fatos. Esconde que Protógenes enriqueceu enquanto conduzia a operação satiagraha, fabricou provas inexistentes e agiu fora da esfera do serviço público. Omite as fraudes e falsidades policiais espantosamente acolhidas pelo procurador Rodrigo de Grandis e pelo juiz Fausto de Sanctis. Os rombos na descrição do falso suborno dos policiais são ignorados.

O autor (ou quem escreveu) enganou os leitores do livro em mais dois momentos fundamentais. No primeiro, esconde do leitor por que o alegado arauto da corrupção supostamente enviado por Dantas, Hugo Chicaroni, não foi grampeado, indiciado nem preso. A segunda omissão é mais grave.

O delegado desobedeceu a ordem para fotografar as cédulas do suposto suborno — o que permitiria rastrear a origem do dinheiro. A rigor, nem precisaria de ordem. Esse é um procedimento básico na polícia. Contudo, o Ministério Público pediu a providência, Sanctis deferiu, mas o delegado respondeu candidamente que o dinheiro já fora depositado em banco, o que tornou impossível o seu rastreamento.

A piada pronta: desmontada a trama, o parceiro de Protógenes, Hugo Chicaroni, pede na justiça o dinheiro que teria sido usado para comprar o fim das investigações. Segundo ele, a montanha de notas usadas para fotos na imprensa não era de Dantas, mas de uma empresa interessada na Brasil Telecom. A Justiça Federal rejeitou o pedido.

Clique aqui para ler o relato e a petição de Chicaroni.

Espantosamente, essa informação crucial para saber o que aconteceu, não aparece no livro de Rubens Valente, muito embora já fosse de conhecimento público.

Lanterna ao contrário
O libelo não foi escrito para provar as culpas de Dantas e mostrar como tudo se deu, mas para tentar atenuar as penas de Luís Roberto Demarco, Protógenes Queiroz e demais parceiros que hoje respondem por seus atos. Eles estão sendo julgados por isso.

Se a lanterna da Operação Banqueiro jogasse luz, em vez de fachos de sombras, seus autores teriam dado mais espaço a duas investigações feitas pela própria PF sobre as falcatruas de Protógenes. A que foi conduzida pelo delegado Amaro Ferreira, em que o delegado expulso da PF foi indiciado por crimes de violação da lei de interceptação e quebra de sigilo funcional; e a que investigou a interceptação telefônica no STF.

Pelo primeiro inquérito, Protógenes respondeu junto com outro ex-delegado, Paulo Lacerda, mais os empresários Demarco e Paulo Henrique Amorim por corrupção, violação telefônica e prevaricação. O que se descobriu é que esse grupo forjou uma "operação" privada e fora das regras legais. Esse é o flagrante que mais preocupa o grupo.

O segundo caso foi o simulacro de investigação em que se tentou apagar os rastros das interceptações ilegais empreendidas pela turma de Protógenes. A leitura do inquérito, que concluiu que nada se poderia concluir, mostra o esforço dos encarregados em não chegar a lugar algum. A interceptação das comunicações do gabinete do ministro Gilmar Mendes.

Nos depoimentos de 37 pessoas, espremidos em seis páginas incompletas, não se percebe, pelas respostas, uma única pergunta relacionada às maletas de grampo clandestino. O delegado Edson de Oliveira, em seu depoimento, afirmou que o então presidente do Sindicato dos Policiais Federais do RJ, Telmo Correa, lhe disse ter sido procurado pelo agente Rodrigo Távora Pescadinha Schnarndorf para se aconselhar.

Na ocasião, a hecatombe provocada pela notícia de que o STF fora grampeado sacudiu o país. Assustado com a gritaria, por ter sido ele o encarregado do grampo no STF, o agente teria procurado o líder sindical, pois temia ser sacrificado como único responsável pelo crime. Mas como Schnarndorf e Telmo negaram a versão, não se considerou necessário ir adiante.

Hall da desonra
Não se pode negar que o livro teve o mérito de trazer de volta uma discussão importante. A farsa montada com a operação testou a vulnerabilidade de todas as instituições. Mostrou as brechas, as fraquezas do sistema e como se pode manobrar os fatos em nome de falso moralismo, idealismo de araque e boas intenções de mentirinha.

O livro tem traços de bipolaridade. Rubens Valente é um jornalista que cobre o mundo das leis há décadas. Difícil aceitar que ele tenha se enganado ao referir-se a Curso de Advocacia, em vez de Direito. Ou dizer que o presidente da República baixou um decreto que alterou a lei (página 252) ou as repetidas vezes em que o falso suborno ora é de 1 milhão de reais, ora de dólares (páginas 279/280). Muito menos que alguém pediu "vistas do processo" ou, pior ainda: "vistas aos autos". O normal em Rubens — e nisso o livro é pródigo — é dizer coisas como "o STF contrariou o parecer do Ministério Público" ou que o Supremo contrariou uma decisão qualquer da primeira instância, inferindo uma inexistente inversão hierárquica.

A Folha de S.Paulo, que hoje defende o livro, foi a primeira a censurar o texto. Depois de anunciar que iria publicá-lo (clique aqui para ler), ao conferir o seu conteúdo, rejeitou-o.

O livro pelo qual Rubens foi condenado fica para a história como um museu dos horrores de um tempo em que se encomendou “operações” para fuzilar concorrentes ou desafetos. A falsificação de denúncias, provas e reportagens constatada foi um golpe cruel contra a reputação do jornalismo e de jornalistas.

Invocar a liberdade de imprensa ou de expressão para acobertar vigarices, práticas jornalísticas corruptas ou bandidagem é uma lástima. Não seria má ideia o jornalismo aplicar consigo próprio um pouco do rigor que dedica a empresários, políticos ou juízes.

O prejuízo que essas campanhas fraudulentas, camufladas com sentimentos morais, causaram ao país é incalculável. Para os acusados, nem se fala. É uma grande ironia que os justiceiros que se atiraram com tanta valentia sobre suas vítimas, ao serem desmascarados, culpados, peçam a clemência que jamais concederam a inocentes.

Texto alterado às 17h15 e às 18h39 de 17/5/2022 para inserção de links e acréscimo de informações

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!