Ambiente Jurídico

Câmaras Reservadas ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo

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25 de junho de 2022, 10h43

Em 21 de maio passado discorri sobre a criação e formação das Câmaras Reservadas ao Meio Ambiente do Tribunal de São Paulo e hoje pretendo apresentar uma descrição sucinta de sua atuação nesses anos. Lembro que as câmaras analisam questões ambientais suscitadas no estado, que diferem em parte das questões surgidas em outras regiões do país: o estado foi ocupado a partir do século 16, com grande desenvolvimento nos séculos 19 e 20. Nossas áreas urbanas e rurais são definidas há dezenas de anos. com a posse e propriedade regularizada em sua quase totalidade. Parte das questões ambientais decorrem desse desenvolvimento urbano e rural mais antigo, anterior à consolidação da legislação ambiental e à visão preservacionista que vai se impondo com firmeza.

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As Câmaras Ambientais foram criadas no final de 2005 e, com o passar dos anos, focaram sua atuação no meio ambiente natural; deixaram de analisar o meio ambiente urbano (direito urbanístico, posturas municipais), o meio ambiente cultural, a saúde pública, que por vezes vinham às nossas mãos, exceto quando de algum modo vinculados à legislação ambiental propriamente dita. Não é uma separação fácil e os casos de interpenetração são resolvidos conforme suas características. É uma litigância que varia no tempo e que pode ser separada em alguns grupos, com as respectivas dificuldades:

(a) aterros sanitários e saneamento básico (lançamento de efluentes não trata­dos em curso d'água ou em áreas inadequadas), movidas contra a administração por ação ou omissão; são ações movidas pelo Ministério Público ou, depois de autuados pelo órgão ambiental, pelo interessado visando à anulação da multa ou da obrigação. São ações complexas pela interferência em políticas públicas e na alocação do sempre insuficiente orçamento; a posição unânime foi determinar à adminis­tração o licenciamento e a correta operação dos aterros e ao particular, quando possível, o adequado licenciamento e operação de sua atividade. A atuação firme do órgão ambiental, do Ministério Público e o respaldo da jurisprudência levaram à sensível redução do problema, com a deposição de resíduos hoje quase sempre em aterros licenciados e a progressiva melhora do saneamento básico. A dificuldade é a lenta execução, que depende de atos de terceiro (o financiamento e o licenciamento da obra), na lentidão às vezes justificada da administração e na fixação e cobrança da multa cominatória, que tem sido pouco eficaz nesses casos;

(b) tem surgido questões envolvendo a responsabilidade pelo saneamento básico de loteamentos fechados, em que as normas contratuais e as normas ambientais são descumpridas pelo loteador e pelos moradores. A dúvida é se, ante o descumprimento legal e contratual (o empreendedor se responsabilizou por ele ao licenciar o empreendimento), a execução e o custo da regularização (redes de coleta e disposição do esgoto, usualmente) devem ser suportado pela administração, ou devem ser carreados — ainda que em reembolso — aos moradores, como determinamos em caso recente;

(c) parcelamento irregular envolvendo direito urbanístico e direito ambiental. Tais ações eram movidas contra o empreendedor e contra a administração, mas não contra os adquirentes, com base no efeito erga omnes da decisão e no pedido de indenização de quem fosse prejudicado; mas, o STJ reviu a questão e vem determinando a citação dos que tiverem degradado por mão própria (usualmente quem construiu), trazendo a oscilação que hoje se vê: há quem anule a sentença para correção do polo passivo, a posição que vem preva­lecendo, e quem apenas ressalve a análise de sua aplicação contra os não citados, se arguida em embargos de terceiro. A condenação do empreendedor é problemática, pois os lotes foram vendidos e não tem ele como regularizar o loteamento (se envolver a alteração física dos lotes) sem o auxílio da administração, ao lado do alto custo do cumprimento da sentença (regularização física e jurídica, implantação da infraestrutura). Esse contexto tem levado à progressiva inclusão da administração no polo passivo e à condenação do município por omissão na regulação e fiscalização da ocupação do solo, com a correspondente transferência ao erário do ônus respectivo sem uma definição mais clara da responsabilidade, ainda que subsidiária, dos empreendedores e moradores, e sem diferenciar as ocupações de baixa renda de loteamentos irregulares de renda mais alta. São ações mais recentes, em que as câmaras estão se debruçando e evoluindo;

(d) intervenção em área de preservação permanente pela administração e pelo particular na forma de obras públicas, ocupações por grupos humanos ou constru­ção em loteamentos legalizados. São sempre ações difíceis. Não se admite a intervenção em área de preservação, salvo se licenciada pela administração (referendada na ADI nº 3.540-DF); isso resolve boa parte da feitura de obra pública. A construção em APP em loteamentos ou em propriedades legalizadas é mais complexa; parte da jurisprudência determina a demolição e recomposição da área, parte, como as nossas Câmaras Ambientais, permite caso a caso a sobrevivência da construção se licenciada no prazo que concedemos, uma vez que a compensação determinada pelo órgão ambiental pode ser mais vantajosa para o ambiente que a demolição e abandono da área. As ocupações ou invasões são mais complexas, não pela questão técnica, mas pela questão humana; envolvem grande número de pessoas de baixa renda cuja remoção e dificuldade de alocação causa um problema social, sem que se possa exigir da administração moradia para essas pessoas; são execuções conturbadas, lentas, que às vezes adormecem e nas quais as câmaras têm feito uma análise ponderada em cada caso;

(e) recomposição das áreas de preservação permanente e da reserva legal na zona rural, que compunham a maior parte da nossa litigância, atualmente em redução. As duas questões já não são controvertidas: a lei determina, e hoje os réus neste Estado admitem, a importância e a necessidade da recomposição do ambiente. As áreas de preservação permanente envolvem a dificuldade de caracterização nos casos de topo de morro, de restinga, de reservatórios naturais e artificiais, da largura da APP a depender dessa própria caracterização e da natureza urbana ou rural da área; é frequentemente difícil caracterizar a área como consolidada e quais reflexos extrair dela. A reserva legal envolve a compensação com a APP, hoje prevista na lei e desde o início referendada pelas nossas câmaras, hoje com o apoio do Supremo Tribunal, mas que o STJ ainda rejeita sob fundamento de vedação do retrocesso e não retroação da lei nova. Temos determinado a recomposição da APP e da reserva legal, com uma leitura restrita, não ampliativa, das normas de transição da LF nº 12.651/12; até porque uma leitura ampliativa implicaria na singela não aplicação das normas ambientais neste Estado, totalmente ocupado e explorado antes de 2008. Tais ações dão origem a uma demorada execução, pois ao lado da inércia de muitos réus, a recomposição é trabalhosa e demorada, implicando em diferenciar a dificuldade natural (que não enseja sanção) da inércia, que configura descumprimento;

(f) a queima da palha da cana-de-açúcar, com centenas de ações no Estado todo, grandemente reduzidas hoje pelo avanço da colheita mecanizada e a quase extinção da colheita manual. Esta queima originou dois grupos de ações. Um, as ações movidas pelo Ministério Público visando à proibição da queima em si e à indenização do dano ambiental; a Câmara Ambiental enten­deu que a queima não podia ser proibida se autorizada pelo órgão ambiental, dividindo-se quanto à indenização: parte indefere o pedido por entender que a atividade lícita não gera indenização, e mesmo a queima não autoriza­da, pois nessa parte indiferenciada da outra, não implica nesse pagamento (é suficiente a pesada multa administrativa); e parte manda indenizar, às vezes com base na produção estimada do canavial, às vezes com base no valor do carbono expelido. Outro, as ações anulatórias e as execuções das multas administrativas impostas pela Cetesb [agência ambiental paulista] em que a discussão anterior foi superada pela consolidação da responsabilidade subjetiva no STJ; discute-se hoje o nexo entre a conduta e o dano e as alegações frequentes do fato de terceiro, do caso fortuito ou da força maior, que surge nas áreas próximas à zona urbana ou às rodovias, assunto visto caso a caso; e a autuação, não por queimar, mas por beneficiar-se da infração aplicada às usinas, em que as Câmaras de modo majoritário mantinham a sanção e ultimamente vêm adotando uma posição mais flexível;

(g) aplicação da legislação ambiental na zona urbana, com litígios em sensível aumento, que traz uma dificuldade própria teórica e prática. A dificuldade teórica reside na sensação, mais que uma certeza, de que o Código Florestal tem por paradigma a zona rural com seus espaços abertos, áreas grandes e a riqueza de atributos mencionados na lei, reforçada pela leitura conjunta dos artigo 182, que cuida da política urbana e remete a proteção ambiental ao plano diretor, e 225, que fala em um equilíbrio ecológico e uma preservação de espécies de difícil obtenção no meio ambiente artificial; e na observação de que o humano desgarrou-se por completo da natureza, com ela não interage e construiu um ambiente próprio para si, a justificar um olhar diferente na questão. A dificuldade prática reside na conformação mesma das cidades, que se manifesta de duas formas distintas: uma, a ocupação dos espaços por parcelamentos regulares ou irregulares e a apropriação das áreas de preservação, em especial ao longo dos cursos d’água, por numerosa população, tornando difícil a remoção das pessoas ou a demolição de construções e avenidas para a recomposição ambiental; outra, que decorre daquela, é a discussão sobre a sobrevivência dessas áreas ou, como chamamos nos acórdãos, a perda da função ambiental a extinguir, em decorrência dessa mesma perda, a área de proteção. Dois exemplos práticos, dentre muitos: a construção de prédios a menos de trinta metros de um pequeno curso d'água, contaminado e parte encanado, em que a demolição implicaria na quase inviável recomposição ambiental apenas daquele trecho pequeno; a retificação e o envelopamento de um córrego, a construção de uma avenida dos dois lados e a demolição tão somente de uma faixa de três a quatro metros (pois até onde chegava a faixa ciliar) depois da avenida e da calçada, que permaneceriam;

(h) a zona urbana tem suscitado diversos conflitos que envolvem a aplicação da lei no tempo, que também podem ser divididos em dois grandes grupos. Os mais frequentes têm surgido nas praias e no envoltório de cursos d'água e de represas naturais e artificiais, envolvendo parcelamentos residenciais aprovados e registrados na década de 1960 a 1980, quando ainda frágeis a legislação, a fiscalização e a consciência ambiental, a maioria construídos e habitados com casas de veraneio ou ranchos de final de semana. No caso das praias, a discussão mais frequente é a caracterização da restinga como acidente geográfico-geológico ou florístico, e a preservação de trezentos metros prevista nas Resoluções Conama nº 4/85 e 303/02 que, se aplicadas com rigor, coloca na ilegalidade a quase totalidade da ocupação do extenso litoral paulista; as câmaras têm analisado caso a caso, ponderando o contexto espacial e temporal da ocupação e determinando, em cada processo, a demolição, a permanência e ou a compensação ambiental. No caso dos ranchos e reservatórios d’água, temos determinado o respeito à APP de curso d’água naqueles, mas admitido a redução da área protegida dos reservatórios artificiais mais antigos;

(i) o segundo grupo, mais recente, envolve a aplicação da lei nova na zona urbana. Alguns casos cuidam de leis que vedaram a supressão de vegetação protegida, impedindo o uso de lotes de loteamentos antigos com vegetação nativa preservada, vendidos e não construídos até a edição da lei em questão (que denomino, para facilitação, de "loteamentos adormecidos"); outros envolvem a criação de unidades de conservação ou áreas protegidas, que a jurisprudência tem entendido serem restrições administrativas não indenizáveis, que as câmaras têm referendado; outros envolvem conflitos reflexos, em que a atividade licenciada produz ou produzirá uma degradação ambiental na vizinhança já ocupada, como poluição sonora, poluição ambiental (odores, fumaça) e elevação do tráfego;

(j) finalmente ante os limites do artigo, mas sem esgotar a diversidade da litigância, a ações tem derivado da remediação para a prevenção. São mais frequentes as ações movidas pelo Ministério Público ou por entidades civis para discussão do licenciamento ambiental em suas fases iniciais, impugnando a viabilidade ambiental, a localização, a supressão de vegetação e a degradação, que se contrapõem à posição fundada do órgão ambiental e ao interesse da comunidade no empreendimento econômico. O conflito tem extensa caracterização técnica e contrapõe valores igualmente ponderáveis, analisados caso a caso, segundo o seu mérito. Não são casos fáceis.

A litigância ambiental tem se deslocado do meio ambiente rural para o urbano, com peculiaridade e complexidade diversa. Tem-se assim um panorama 'a vol d’oiseaux' da atuação das câmaras ambientais de São Paulo nesses anos de existência e de sua contribuição, admitida a dificuldade da matéria, à definição e ao reforço da preservação ambiental em nosso Estado. É, como próprio ao direito ambiental e à complexidade inerente, uma jurisprudência em construção.

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