Improbidade em Debate

Tema 1.108 e assimilação da reforma pelo STJ

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10 de junho de 2022, 8h02

Como sabido, a Lei nº 14.230/2021, que reformou a Lei nº 8.429/1992 e passou a exigir indistintamente o dolo direto como elemento subjetivo comum a todos os tipos ímprobos, foi definitivamente aprovada pela Câmara dos Deputados em 5 de outubro de 2021, indo depois à sanção e promulgação pelo presidente da República.

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O dado curioso, nada obstante, reside no fato de, meses antes, em 29 de março, o Superior Tribunal de Justiça ter proposto a afetação do que viria a ser o Tema 1.108 de recursos especiais repetitivos, destinado a decidir se a existência de lei municipal que autoriza a contratação de servidor público sem a prévia aprovação em concurso público afastaria ou não o dolo genérico hábil à configuração do ato de improbidade administrativa.

A afetação por aquele tribunal ocorreria em 21 de setembro, dias antes da aprovação da Lei nº 14.230/2021, mas o julgamento em si somente ocorreria mais recentemente, em 11 de maio de 2022. A propósito do acórdão proferido, com voto condutor do ministro Gurgel de Faria, o temos como emblemático, dele colhendo como passagem relevante esta:

"(…) o legislador ordinário quis impedir o ajuizamento de ações temerárias, evitando, com isso, além de eventuais perseguições políticas e o descrédito social de atos ou decisões político-administrativos legítimos, a punição de administradores ou de agentes públicos inexperientes, inábeis ou que fizeram uma má opção política na gerência da coisa pública ou na prática de atos administrativos, sem má-fé ou intenção de lesar o erário ou de enriquecimento."

Spacca
É inevitável a constatação de que o referido trecho ecoa o espírito da reforma da Lei de Improbidade no sentido de se evitar a banalização do gravoso instrumento que é a improbidade administrativa, como se anunciou desde o anteprojeto que poria em marcha o Projeto de Lei nº 10.887/2018:

"De um atento exame do texto, par e passo da observação da realidade, conclui-se que não é dogmaticamente razoável compreender como ato de improbidade o equívoco, o erro ou a omissão decorrente de uma negligência, uma imprudência ou uma imperícia. Evidentemente tais situações não deixam de poder se caracterizar como ilícitos administrativos que se submetem a sanções daquela natureza e, acaso haja danos ao erário, às consequências da lei civil quanto ao ressarcimento. O que se compreende neste anteprojeto é que tais atos desbordam do conceito de improbidade administrativa e não devem ser fundamento de fato para sanções com base neste diploma e nem devem se submeter à simbologia da improbidade, atribuída exclusivamente a atos dolosamente praticados."

O ponto seria ainda reforçado pelo relator da proposição na Câmara dos Deputados, deputado federal Carlos Zarattini, em substitutivo apresentado na Comissão Especial designada no âmbito daquela Casa:

"Hoje, é inquestionável a necessidade de se reformular a Lei de Improbidade Administrativa — LIA. São incontáveis os casos de condenações por irregularidades banais, que não favorecem nem prejudicam ninguém além do próprio agente público, punido severamente com multas vultosas e suspensão de direitos políticos. Com isso, cada vez mais as pessoas de bem vão se afastando da vida pública, em prejuízo da população."

Não foi surpreendente, então, que o acórdão prolatado no Tema 1.108, já à sombra da reforma, para além de replicar sua essência, com ela dialogasse expressamente, apontando que o dolo "recebeu tratamento especial — e mais restritivo — quando da recente alteração da Lei nº 8.429/1992, pela Lei nº 14.230/2021, que estabeleceu o dolo específico como requisito para a caracterização do ato de improbidade administrativa, ex vi do seu art. 1º, §§ 2º e 3º, sendo necessário aferir a especial intenção desonesta do agente de violar o bem jurídico tutelado".

A ênfase que concedemos a tal interlocução não é sem razão: tema de repetitivo afetado anteriormente à Lei nº 14.230/2021, ao tempo em que ainda era gestada a reforma, não apenas considerou suas diretrizes, como, por ocasião de seu julgamento, já sob a égide daquele diploma, com ele dialogou abertamente, a ponto de a novel lei ser alçada a fundamento de decidir do precedente a que se deu azo.

Essa mais que saudável interlocução entre jurisdição e atualização normativa não esgota seus predicados em uma importante sintonia entre poderes, mas, mais que isso, materializa contundentemente, em precedente judicial, uma retroação da teleologia da Lei nº 14.230/2021, como deflui de mais este excerto do aresto:

"Em arremate, vale consignar que, nos termos dos precedentes citados, o afastamento do elemento subjetivo de tal conduta dá-se em razão da dificuldade de identificar o dolo genérico, situação que foi alterada com a edição da Lei nº 14.230/2021, que, como já dito, conferiu tratamento mais rigoroso para o reconhecimento da improbidade, ao estabelecer não mais o dolo genérico, mas o dolo específico como requisito para a sua caracterização, ex vi do art. 1º, §§ 2º e 3º, da Lei nº 8.429/1992, sendo necessário aferir a especial intenção desonesta do agente de violar o bem jurídico tutelado."

Insistimos que essa construção empreendida no julgado não é trivial: a 1ª Seção do STJ, órgão que encabeça a competência material de direito público, em provimento unânime, tomou em consideração, para julgamento de tema repetitivo, direito superveniente — o que em si já mereceria destaque — e, ao fazê-lo, consignou em alguma medida a retroatividade benigna dos parâmetros normativos adotados pela reforma, entre os quais, em especial, a extirpação do dolo genérico.

Esse importantíssimo julgamento, a par de todos os aspectos já realçados, quiçá terá o condão de inspirar, por exemplo, o enfrentamento do Tema 1.042, que, igualmente afetado antes da sobrevinda da reforma, decidirá sobre o cabimento ou não de remessa necessária em sede de improbidade administrativa, remessa essa posteriormente vedada pela Lei nº 14.230/2021.

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