Opinião

Reformas da LIA: retrocessos e inconstitucionalidades (parte 2)

Autor

  • Maicon Natan Volpi

    é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

7 de junho de 2022, 18h28

Continua parte 1

Em sequência à análise das significativas mudanças promovidas pela Lei nº 14.230/21 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) [1], muitas delas em evidente retrocesso na tutela do patrimônio público e da moralidade na Administração Pública, e algumas das disposições alteradas possuem claras violações ao texto constitucional, além da assustadora atecnia jurídica  que faz jus de serem intituladas como uma das piores reformas legislativas já elaboradas no Brasil — , passamos agora a destacar as alterações promovidas especificamente em relação à prescrição intercorrente.

A temática referente à prescrição veio retratada no mesmo artigo 23 da Lei nº 8.429/92, o qual sofreu profundas alterações, dentre as quais: 1) estabeleceu um prazo único de prescrição para aplicação de sanções, prazo este de 8 anos, e fixou o termo a quo deste prazo como sendo a data do ocorrência do fato (artigo 23, caput); 2) previu a suspensão da prescrição pela instauração de inquérito civil ou processo administrativo, pelo prazo de 180 dias (artigo 23, §1º); 3) estabeleceu prazo para conclusão do inquérito civil (artigo 23, §§2º e 3º); 4) estabeleceu marcos interruptivos de uma prescrição intercorrente, até então inexistente (artigo 23, §4º); e 5) estabeleceu a redução do prazo da prescrição intercorrente, pela metade, uma vez interrompido aludido prazo (artigo 23, §5º).

Por uma análise sumária e preliminar dos itens supra é possível verificar a criação de um verdadeiro Frankenstein jurídico (the Modern Prometheus[2], na medida em que se mesclam institutos e aspectos jurídicos próprios da prescrição intercorrente do direito penal, cujo fim é completamente diverso dos fins das sanções de Lei de Improbidade Administrativa – LIA, com institutos e aspectos jurídicos próprios da prescrição intercorrente como prerrogativa em favor da Fazenda Pública, cuja inconstitucionalidade é questionada desde o advento da nova ordem constitucional e cujos fins de favorecer a Fazenda Pública foram totalmente desvirtuados pela reforma da LIA.

Conforme destacado pela melhor e unívoca doutrina, sintetizada no escólio de Leonal de Barros apresentado nesta revista jurídica, "o evento prescricional é a sanção reservada pelo direito à omissão, à inércia, ao descaso". Conclui o mesmo autor, numa clara evidência acerca dos fins do instituto da prescrição, que "se não há inércia não deve haver sanção" [3].

A prescrição intercorrente faz-se presente na seara penal, assim como na seara cível  neste último caso, é o que se verifica da leitura do artigo 206-A do CC/02, e do artigo 921 do CPC/15. Contudo, para além do fim genérico da prescrição acima citado, é importante não confundir os fins específicos deste instituto jurídico considerando o ramo jurídico de sua incidência.

Na seara penal, o objeto da prescrição intercorrente é o direito de punir do estado (jus puniendi), isto é, direito de aplicar sanção penal ou de executar a pena fixada em sentença penal condenatória. Em outros termos, é a prescrição intercorrente penal uma imposição de limites temporais para aplicação e execução da sanção penal, ou seja, uma limitação temporal da resposta meramente retributiva da autoridade pública, e com fins de ressocialização/reeducação, dada pelo Estado ao infrator da normal penal incriminadora. Em síntese, é limitação temporal do mero castigo [4].

Assim, à clara evidência, a prescrição atinge apenas o jus puniendi, o castigo, não fazendo desaparecer o ilícito, pois continua plenamente possível, e juridicamente resguardada, por exemplo, a reparação cível dos danos, inclusive privados, decorrentes deste mesmo ato ilícito, sendo expresso, neste sentido, artigo 200 do CC/02 [5].

Deste modo, a prescrição intercorrente penal em nada se confunde com a prescrição intercorrente de qualquer outro ramo do direito, ainda que este ramo tenha cunho sancionatório, pois afeta apenas e tão somente o jus puniendi estatal.

Especificamente sobre a LIA, os fins da norma não são de mera imposição de castigo, mas sim de: 1) expurgar da vida pública todos aqueles que violem a moralidade e o patrimônio público; 2) reparar os danos e rechaçar qualquer enriquecimento ilícito em prejuízo ao patrimônio público. Ambos os fins citados não representam mera retribuição de castigo por conduta ilícita. Muito mais, representam a concretização de objetivos constitucionalmente impostos e indisponíveis, consoante se verifica do artigo 37, "caput" e 37, §§ 4º e 5º, CF/88.

Importa destacar que o próprio termo inicial fixado do prazo prescricional — data da ocorrência do fato — ignora os fins supracitados, e à semelhança do direito penal acaba por ser fixado como se a LIA objetivasse uma mera punição do agente ímprobo. Na verdade, o início da prescrição, fora do âmbito meramente retributivo, jamais pode se dar antes do conhecimento, pelo legitimado ativo, da aludida violação, sobe pena de violação do princípio da actio nata, no seu viés subjetivo [6].

Neste contexto, uma prescrição intercorrente nos moldes do direito penal na LIA viola todas as balizas e fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito, que não tolera a manutenção de relações jurídicas entre agentes públicos e terceiros ímprobos com a Administração Pública. Viola a própria ideia de República, na medida em que tolera graves violações aos princípios constitucionais da Administração Pública, em verdadeira proteção deficiente da moralidade pública, tratando a coisa pública como verdadeira res nullius —  coisa de ninguém.

Mas, como destacado no início, a reforma não para por aí. Ela vai além, e determina a redução do prazo da prescrição intercorrente pela metade.

Há na ordem jurídica apenas duas previsões acerca da redução da prescrição intercorrente pela metade: 1) artigo 115 do CP, redução esta limitada a grupo específico de pessoas, considerando motivos de política criminal e os fins da sanção penal; 2) artigo 9º do Decreto 20.910/32, que estabelece uma prerrogativa de redução genérica do prazo da prescrição intercorrente, pela metade do prazo inicial, nas demandas contra as Fazendas Públicas.

Observa-se na reforma da LIA a criação de uma previsão semelhante à indicada no Decreto 20.910/32, a qual nós denominamos de prerrogativa às avessas, na medida em que é uma prerrogativa prevista contra a pessoa pública, e em benefício do agente ímprobo (prerrogativa genérica que nem mesmo o direito penal possui, mesmo frente ao seu caráter meramente retributivo).

Estabeleceu-se assim uma mescla dos benefícios da Fazenda Pública em matéria de prescrição intercorrente com a prescrição intercorrente do direito penal. Tudo em benefício daquele que está sendo demandado — e muitas vezes teve a inicial recebida e com sentença condenatória de primeiro grau — , como agente público ímprobo ou terceiro participante da aludida conduta.

Criou-se o verdadeiro Modern Prometheus ou Frankenstein jurídico brasileiro, com a quebra da razoabilidade, na medida em que se concedeu inúmeros benefícios, sem qualquer respaldo nos princípios e na teoria geral do direito, àquele que está sendo demandado por quebra da probidade.

Há falta de razoabilidade, pois, ao invés da reforma garantir a eficaz tutela da moralidade e do patrimônio público, por meio desta criou-se um verdadeiro obstáculo, de modo a inviabilizar qualquer forma de tutela jurídica destes bens constitucionalmente assegurados.

Verifica-se uma verdadeira negativa de acesso à justiça ou uma "garantia de inefetividade da ação de improbidade", na medida em que se mostra evidente a incapacidade de solução destas demandas em prazos exíguos, como os fixados, além de incentivar recursos infundados, levando ao abarrotameno do judiciário, frente ao excesso de litigância temerária, provocada exclusivamente com o fim de obter o reconhecimento da prescrição intercorrente.

Se, por um lado, é correto afirmar que o constituinte determinou a previsão de prescrição para sanções da LIA, na forma do artigo 37, §5º, por outro lado, o constituinte impôs e determinou a eficaz tutela do patrimônio público, a qual não se concretizará diante da evidente quebra de razoabilidade na reforma da LIA, que se mostra cheia de prerrogativas, pasme, em benefício daquele a quem é imputada a conduta ímproba, prerrogativas de tal ordem que não encontra qualquer precedente ou semelhança na ordem jurídica nacional, nem mesmo na seara penal.

Há muito se encontra consolidada a doutrina do devido processo legal substancial, para a qual não basta a mera observância do procedimento constitucional, legal e formal para uma reforma legislativa constitucionalmente válida. Imprescindível ainda que a norma criada seja razoável e justa.

Não parece razoável  considerando a realidade do Judiciário brasileiro  a estipulação de prazo extremamente exíguo para a solução das demandas de improbidade, e com aplicação da prescrição intercorrente típica do direito penal. Tampouco se mostra justa a extensão de uma prerrogativa da Fazenda, de duvidosa constitucionalidade, ao autor de um ato de violação à moralidade e patrimônio público. Há evidente quebra do devido processo substancial, e clara inconstitucionalidade da norma.

Neste quadro, há indubitável vício de inconstitucionalidade material no artigo 23 da LIA (que trouxe normas acerca da prescrição), em especial por estender a sistemática da prescrição intercorrente típica do direito penal para a LIA, cujos fins são completamente diversos, e em violação ao princípio da actio nata, no seu viés subjetivo, além de mesclar tal sistemática com a prerrogativa prevista no Decreto 20.910/32, a qual é de duvidosa constitucionalidade, e foi deturpada, pois concedida contra a Administração Pública e em benefício do agente ímprobo, criando-se verdadeiro Frankenstein jurídico brasileiro, sem qualquer respaldo nos princípios e na teoria geral do direito, com violação ao devido processo substancial, na concepção de uma norma claramente desarrazoada e injusta.


[1] Na primeira análise sobre a reforma foram enfatizadas as mudanças nas medidas cautelares de indisponibilidade de bens. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-30/maicon-volpi-reformas-lia. Acessado em 25/05/2022.

[2] Frankenstein é uma referência costumeiramente feita à criatura monstruosa criada por Victor Frankenstein, estudante de ciências naturais, na obra de ficção científica escrita por Mary Shelley, entre 1816 e 1817.

[4] Conforme lições do saudoso Damásio de Jesus, "a pena é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração, como retribuição de seu ato ilícito, consiste na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos" (destaque nosso). JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal Parte Geral. 32 ed.; pág. 563, São Paulo: Saraiva, 2011.

[5] O artigo 200 do Código Civil prevê especificamente que, "quando a ação se originar de fato de que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva". Disponível em: L10406 (planalto.gov.br). Acessado em 28/05/2022.

[6] Sobre o tema vale destacar, neste aspecto, trecho do Acórdão 1349202, da Quarta Turma Cível do TJDFT: "(…) Consistindo a prescrição na extinção da pretensão pelo decurso do tempo, parece elementar que a violação em si do direito não basta para deflagrar a sua fluência, pelo simples fato de que apenas o conhecimento da lesão possibilita ao respectivo titular o exercício eficaz do direito de ação. Na elucidativa explanação de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: Efetivamente, o início da fluência do prazo prescricional deve decorrer não da violação, em si, a um direito subjetivo, mas, sim, do conhecimento da violação ou lesão ao direito subjetivo pelo seu respectivo titular. Com isso, a boa-fé é prestigiada de modo mais vigoroso, obstando que o titular seja prejudicado por não ter tido conhecimento da lesão que lhe foi imposta. Até porque, e isso não se põe em dúvida, é absolutamente possível afrontar o direito subjetivo de alguém sem que o titular tenha imediato conhecimento. (Curso de Direito Civil, Vol. 1, 10ª ed., JusPodivm, p. 726)". Acórdão 1349202, 00206521020168070001, Relator: JAMES EDUARDO OLIVEIRA, Quarta Turma Cível, data de julgamento: 17/6/2021, publicado no DJE: 1/7/2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/prescricao/prescricao-2013-termo-inicial-2013-teoria-actio-nata. Acessado em 27/25/2022.

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  • é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo e especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP).

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