Opinião

Reformas da LIA: retrocessos e inconstitucionalidades

Autor

  • Maicon Natan Volpi

    é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

20 de junho de 2022, 6h08

Prosseguindo com a análise das mudanças promovidas pela Lei nº 14.230/21 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) [1], passamos agora a destacar a alteração promovida especificamente em relação ao artigo 11, por meio da exclusão da termo "notadamente" do seu caput, sendo que aqui, diversamente das análises anteriores, entendemos que não há propriamente uma inconstitucionalidade, mas um retrocesso na tutela do patrimônio público e da moralidade na Administração Pública, talvez um retrocesso não identificado quando da elaboração da reforma, mas com graves consequências práticas, conforme iremos verificar.

Legenda

Importante destacar, porém, que a reforma no artigo 11 trouxe também avanços para a tutela da moralidade administrativa, dentre os quais destacamos dois: 1) passou a prever, à semelhança do entendimento sumulado e vinculante do STF [2], que o nepotismo  uma das manifestações mais claras do patrimonialismo [3] cultural brasileiro  consiste em ato de improbidade que viola os princípios da Administração Pública (artigo 11, inciso XI); e 2) deu concretude a princípio constitucional da impessoalidade, na vertente da vedação à promoção pessoal do agente público, o qual está inserido no §1º do artigo 37 da CF/88, prevendo a violação a tal comando normativo como ato de improbidade (artigo 11, inciso XII).

Contudo, pela reforma buscou-se tornar os atos de improbidade que violem princípio da Administração Pública, um rol taxativo de condutas materializadas nos incisos que se seguem ao caput da norma. Para além da alteração do caput, com o fim de assegurar a taxatividade da norma foram revogados os incisos I e II  que retratavam verdadeira cláusula geral de violação por desvio de finalidade , os quais dispunham que são atos de improbidade as condutas de "praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência" e "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício" [4].

Numa análise sistemática da LIA, observa-se que o objetivo da alteração foi apenas de trazer maior segurança jurídica aos agentes públicos quanto à aplicabilidade do artigo 11, na medida em que as demais modalidades de atos de improbidade mantêm-se com um rol exemplificativo.

Ocorre que, problemas práticos de subsunção irão aparecer, e será necessária sempre uma atividade de atualização da norma pelo legislador, frente à apresentação de situações, não difíceis de serem imaginadas, que não obstante o seu nítido caráter ilícito e ímprobo, não irá se enquadrar nos incisos do artigo 11, pois, se antes poderia ser afirmado, consoante escólio de Marino Pazzaglini Filho, "que a norma do artigo 11 constitui soldado de reserva (expressão do saudoso jurista Nelson Hungria)" [5], hoje, frente à taxatividade proposta, inúmeras situações podem ficar descobertas pela LIA.

A título de exemplo (frente à infinidade de outras hipóteses), podemos mencionar a prática de assédio moral no âmbito da Administração Pública, que segundo precedente do Superior Tribunal de Justiça (especificamente no REsp 1.286.466-RS, 2º Turma, relatora ministra Eliana Calmon, 03/09/2013) "enquadra-se na conduta prevista no art. 11, caput, da Lei de Improbidade Administrativa, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém". Trata-se de conduta dotada de importante gravidade, objeto, inclusive, de projeto de lei para criminalização da conduta, em discussão no congresso nacional  Projeto de Lei 8178/14 do Senado Federal , conforme já destacado nesta revista por Charles Hamilton dos Santos Lima [6].

Mas há ainda outras condutas graves que não estarão cobertas pelo novo artigo 11, como a hipótese verificada nos precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que considerou como ato de improbidade a prática de assédio sexual perpetrado por professor em face de seus alunos (especificamente no REsp 1.255.120/SC, 2ª Turma, relator ministro Humberto Martins, 21/5/2013; REsp 1.219.915/MG, 2ª Turma, relatora ministra Eliana Calmon, 19/11/2013). Conforme destacado por Wallace Paiva Martins Junior e Silvia Chakian de Toledo Santos, em estudo específico sobre o tema nesta revista [7], com a reforma há "exclusão da perspectiva de responsabilização de casos graves de mau uso do poder (…) que demonstrem caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida".

Da mesma forma, considerando a reforma, igualmente descoberta estaria a conduta analisada em outro precedente do Superior Tribunal de Justiça (especificamente REsp. 1.177.910-SE, 1º Seção, relator ministro Herman Benjamin, 26/8/2015), consistente na pratica de tortura de preso custodiado em delegacia por policial. Destacou o relator, em seu voto, que o "atentado à vida e à liberdade individual de particulares, praticado por agentes públicos armados  incluindo tortura, prisão ilegal e 'justiciamento' , afora repercussões nas esferas penal, civil e disciplinar, pode configurar improbidade administrativa, porque, além de atingir a pessoa-vítima, alcança, simultaneamente, interesses caros à Administração em geral, às instituições de segurança pública em especial, e ao próprio Estado Democrático de Direito" [8].

Sem distanciar do caso supracitado, basta pensar na hipótese do caso Genivaldo, cidadão morto em abordagem da Polícia Rodoviária Federal, no dia 25 de maio de 2022, na BR-101, no município de Umbaúba, no litoral do Sergipe [9]. Seria mais uma hipótese não abrangida pelo novo artigo 11, de modo que, até eventual sentença penal condenatória os agentes poderiam exercer seus direitos políticos de forma plena, por exemplo, ou ainda contratar e manter outras relações jurídicas com a Administração Pública.

O próprio inciso II do artigo 11, o qual foi revogado, traz uma hipótese descoberta da LIA, apesar de existir sanção penal (mais grave), pois eventual prevaricação do servidor público, uma vez que se trata de conduta desprovida de enriquecimento ilícito, e por vezes sem dano ao erário (mas com dano à vítima), não configurará ato de improbidade administrativa. O exemplo pode ainda ser estendido para outros inúmeros crimes que não resultem enriquecimento ilícito ou dano ao erário.

Quebra-se, com a reforma, o caráter autopoiético próprio e que se espera do direito. Há uma ruptura da coerência e de completude do sistema, permitindo a existência de lacunas, que favorecem a quebra da própria racionalidade do sistema normativo, sem possibilidade de suplementação.

Desta forma, não obstante os avanços, por meios da inclusão do nepotismo e da vedação à promoção pessoal como hipóteses expressas de ato de improbidade que violem os princípios da Administração Pública, trazendo maior segurança jurídica para estas hipóteses, a reforma, ao buscar imprimir uma taxatividade no rol do artigo 11, trouxe retrocesso na tutela da moralidade pública, pois inúmeras condutas graves, conforme destacado a título exemplificativo, estarão descobertas na LIA.

Frente à opção normativa, caberá ao legislador estar sempre atento à realidade, inserido estas novas hipóteses nos incisos do artigo 11, em especial a cada vez que se tornarem evidentes diante de um caso concreto, com o fim de assegurar a coerência do sistema normativo.


[1] Na primeira análise sobre a reforma foram enfatizadas as mudanças nas medidas cautelares de indisponibilidade de bens. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-30/maicon-volpi-reformas-lia. Acessado em 25/05/2022. Já numa segunda análise sobre a reforma foram enfatizadas as mudanças na prescrição, com destaque para a prescrição intercorrente. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-07/maicon-volpi-reformas-lia-retrocessos-inconstitucionalidades. Acessado em 08/06/2022.

[2] Enunciado da Súmula vinculante 13: A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula761/false. Acessado em 06/06/2022.

[3] Patrimonialismo é um conceito criado por Max Weber para destacar, em síntese, a figura do Estado no qual não há distinções entre os limites do público e do privado. Tão enraizada em nossa história, referida prática motivou diversos pensadores a se debruçarem sobre o fenômeno social do patrimonialismo no Brasil, dentre eles podemos destacar: Sergio Buarque de Holanda (na sua obra Raízes do Brasil, apresentando a figura do denominado "homem cordial");  Raymundo Faoro (na sua obra Os Donos do Poder, apresentando as raízes históricas desta cultura de poder particular e privilégios, e de ignorância da distinção entre a esfera pública e privado, promovendo o aquilo que o autor chama de "estamento burocrático"); e Oliveira Vianna (na sua obra Instituições Políticas Brasileiras, destacando o direito público criado pelas elites, em conflito com o que o autor chama de "direito do povo-massa", surgindo o fenômeno social cunhado de "clã político").

[4] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acessado em 06/06/2022.

[5] PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. São Paulo: Atlas, 2002, pag. 101.

[9] Sobre o Caso Genivaldo, vide artigo de Fernando Augusto Fernandes, veiculado nesta revista, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-05/fernando-fernandes-sancao-penal-genivaldo. Acessado em 09/06/2022.

Autores

  • é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo e especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP).

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