Opinião

Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao Direito Sancionador

Autor

  • Ricardo de Barros Leonel

    é mestre doutor livre docente e professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e promotor de Justiça em São Paulo.

17 de novembro de 2021, 17h05

1) Introdução
A Lei 12.430/2021 vem fomentando discussão sobre sua aplicação retroativa.

Os argumentos apresentados vêm apoiados por decisões do STJ indicativas de que a Lei de Improbidade Administrativa se encontra inserida no espectro do direito sancionador e que, portanto, comportaria tratamento assemelhado ao Direito Penal [1].

No campo doutrinário há trabalhos que trazem tal construção, assimilando o tratamento das questões de Direito material e processual ao Direito Sancionador. Daí a observância das diretrizes e garantias do Direito Penal e do Processo Penal [2].

O raciocínio se apoia num ponto essencial: aos processos de conteúdo punitivo deveria ser aplicado o mesmo receituário de garantias constitucionais do sistema penal.

Considerando os limites do presente texto, convém examinar desde logo dois aspectos: a) se deve efetivamente ser aplicada, no campo da tutela da probidade administrativa, a "retroatividade da lei penal benéfica" (eficácia retroativa da lex melius ou da abolitio criminis); e, além disso, se b) o novo regime prescricional deve ser aplicado retroativamente.

2) Alcance do conceito de direito sancionador
É fora de dúvida que o Estado exerce o poder de punir (ius puniendi), fazendo-o sob diferentes matizes, a depender do modo como o direito positivo disciplina o exercício de tal poder no contexto de determinada realidade institucional, política e social.

O aspecto mais evidente do Direito Sancionador se apresenta pelas vestes do Direito Penal. Na tradição das sociedades civilizadas, inspiradas pelos pilares do Estado democrático de Direito, o Direito Sancionador, sob as feições do Direito Penal, só pode ser aplicado pela via jurisdicional.

De outro lado, há manifestação do Direito Sancionador em disposições de conteúdo sancionatório não estritamente penal são adotadas dentro das perspectivas do estabelecimento da ordem estatal.

Há Direito Sancionador nos estatutos do funcionalismo público, na previsão de infrações administrativas e punições aplicáveis aos agentes públicos vinculados àquele regime.

Ele também se manifesta no campo do regime de condutas e sanções aplicáveis aos servidores públicos incumbidos da gestão administrativa, por força dos processos de fiscalização e eventualmente penalização junto aos tribunais de contas.

Assim, igualmente, a previsão legal da aplicação, a entidades jurídicas, de sanções não criminais em processos administrativos decorrentes da tipificação legal dos atos de corrupção; bem como a aplicação judiciais de sanções relacionadas à mesma disciplina legal (Lei 12.846/2013).

O mesmo raciocínio se aplica à disciplina dos atos de improbidade administrativa, por força da Lei 8.429/92, ora alterada pela Lei 14.230/2021.

O Direito Sancionador, entretanto — e esse dado é fundamental —, não é sinônimo de Direito Penal. Está inserido no âmbito daquele, que possui espectro mais.

3) Corrente expansiva
A "corrente expansiva" associa o conceito de Direito Sancionador à disciplina do Direito Penal e do Processo Penal. Como se Direito Sancionador fosse sinônimo de Direito Penal.

Em outros termos, toda a principiologia do Direito Penal seria estendida a todos os casos em que o Estado-legislador emitisse diplomas legais contendo tipificação de ilícitos não penais (administrativos ou civis) e, para eles, especificasse punições distintas das sanções estritamente penais (notadamente as privativas de liberdade).

A partir dessa premissa seria possível estender a aplicação de todas as garantias constitucionais atreladas ao Direito Penal e ao processo relativo aos casos envolvendo infrações não penais, administrativas ou civis, alcançadas pelo espectro mais amplo do Direito Sancionador.

Se tal raciocínio estiver correto, a Lei 14.230/2021 produzirá várias consequências não apenas para casos e processos futuros, mas também em relação ao passado.

A nova redação dada pela Lei 14.230/2021 ao artigo 11 da Lei 8429/92 mudou a orientação de que se tratava de rol exemplificativo de condutas (numerus apertus), convolando-o em uma enumeração taxativa (numerus clausus). Além disso, no artigo 10 da Lei 8.429, que cuida dos atos que causam danos ao erário, foi eliminada a figura culposa, passando-se a prever apenas a hipótese da conduta dolosa.

Some-se que há indicações, no novo diploma, de que se exige dolo específico (vontade direcionada à realização de um fim específico), e de que não se contenta com o dolo genérico (simples consciência da prática de ato contrário à lei). Nesse sentido, v.g., na redação atual da lei: artigo 1º, §§ º, 2º e 3º; artigo 3º; artigo 9º, caput; artigo 10, caput, e §2º; artigo 11, caput, e §5º; artigo 17, §6º, II; artigo 17-C, §1º; artigo 21, §2º.

A aplicação da cartilha do Direito Penal e do Processo Penal levará o intérprete a concluir que teria ocorrido abolitio criminis. A consequência seria o pronunciamento de sentenças de improcedência para processos em andamento referentes a fatos pretéritos, bem como pedidos de revisão (por ação autônoma, ou perante o juízo em que esteja tramitando o processo para cumprimento de decisões transitadas em julgado), com declarações de extinção de punibilidade (aplicação retroativa da "lei penal" mais benéfica).

Na mesma linha, o novo regime prescricional instituído pelo novo artigo 23 e §§ da Lei 8429 (redação Lei 14.230/2/21), mais benéfico aos agentes, inclusive a novel prescrição intercorrente (antes inexistente) deveria ser aplicada de forma retrospectiva.

4) Especificidades da disciplina constitucional
Ainda que a nova lei tenha dito, literalmente, que a ação de improbidade é sancionadora, e não se confunde com a ação civil (artigo 17-D, caput), bem como que à disciplina nela contida se aplicam os princípios do Direito Administrativo sancionador (artigo 1º, §4º), essas afirmações não têm todo o alcance que a elas aparentemente se pretende emprestar.

A mudança de rótulo não altera o conteúdo.

O ajuizamento de demanda se assenta em duas alternativas distintas, em consonância com nosso sistema jurídico. Ou se tem ação civil, ou então, alternativamente, ação penal. Não há uma "terceira espécie", como uma "ação judicial sancionadora", distinta das duas alternativas antes mencionadas.

As sanções na esfera jurisdicional, por seu turno, são civis ou penais.

O maior alcance das garantias no processo administrativo disciplinar se assenta em que o poder punitivo, nesse caso, é exercido por autoridades administrativas. Algo distinto do que ocorre nos processos cíveis, mesmo sancionatórios.

Tornando à improbidade, é importante recordar que o artigo 37, §4º, da CF tem redação que faz clara distinção entre as sanções penais e aquelas aplicáveis aos atos de improbidade administrativa, que têm natureza e conteúdo civil (não penal). Assenta que elas serão aplicáveis "sem prejuízo da ação penal cabível".

Por outro lado, ao tratar da irretroatividade da lei penal incriminadora e da excepcional retroatividade da lei penal mais benéfica, o artigo 5º, XL, da CF é taxativo ao firmar sua referência à "lei penal".

Essa é uma garantia aplicável especificamente ao Direito Penal. Sua extensão aos processos administrativos disciplinares (punição de servidores que violam os estatutos funcionais) se dá porque o Direito Administrativo disciplinar funciona como reprodução do Direito Penal (sem a previsão de penas privativas de liberdade) e sob a aplicação da autoridade administrativa, não jurisdicional.

Trata-se de contexto absolutamente distinto daquele em que, no âmbito da jurisdição, são aplicadas sanções de natureza civil.

Em outros termos, em confronto, o artigo 37, §4º, da CF (que afirma, de modo inequívoco, que a disciplina da probidade administrativa e as sanções por sua violação se situam na esfera cível) e a garantia instituída no artigo 5º, XL, da CF (que cuida da eficácia temporal das leis penais) evidenciam, claramente, que os dois preceitos constitucionais regulam temas que estão situados em campos absolutamente distintos.

A aplicação retroativa da disciplina mais benéfica da tutela da probidade administrativa colide, quando menos, com os dois dispositivos constitucionais: o artigo 5º, XL, da CF, que tem aplicação restrita ao Direito Penal (aplicado na jurisdição, ou à sua feição na esfera administrativa, que é o direito administrativo disciplinar); e o artigo 37, §4º, da CF, que deixa assentado que a tutela da probidade administrativa e as sanções relacionadas aos atos ilícitos não são penais, mas sim civis.

Há ainda outra indicação do caráter civil da ação de responsabilidade pela prática de atos de improbidade: o artigo 129, §1º, da CF, ao afirmar a não exclusividade do MP para ações civis previstas no dispositivo (inclusive as relativas ao patrimônio público e social — artigo 129, III da CF).

5) Inviabilidade da retroação em função da alteração dos tipos
O Direito Penal é sensível à lex mitior. Aplica-se a pena mais leve, se o processo ainda está em andamento, ou pronuncia-se a absolvição, pela atipicidade superveniente dos fatos (abolitio criminis).

O artigo 386, III, do CPP determina a prolação de sentença absolutória se "não constituir o fato infração penal". É o que ocorre quando o fato deixa de ser previsto como crime, e a lei retroage para alcançar fatos ocorridos antes de sua vigência (artigo 5º, XL da CF).

Seria tal solução aplicável ao campo da Lei 8429?

Tal garantia, como antes consignado, é limitada ao Direito Penal (que é apenas parte do Direito Administrativo Sancionador, sendo este mais amplo), com o qual não se confunde a disciplina da probidade administrativa, de conteúdo civil (não penal).

Mas também não é possível a aplicação das sanções para tais casos pretéritos.

Em tal situação, a solução adequada é o pronunciamento de sentenças declaratórias da ocorrência do ato ilícito, tal como tipificado na vigência da lei anterior, sem, entretanto, a imposição de sanção, pelo fato de que esta (punição) deixou de ser prevista em relação a tais atos.

E os casos que já contem com sentença transitada em julgado?

Não é viável, tal como ocorre no processo penal, a simples revisão do que passou em julgado.

Há coisa julgada material estabelecida sob a perspectiva do Direito Processual Civil, e não do Processo Penal, em que há eterna possibilidade de revisão em benefício do réu.

Havendo trânsito em julgado da sentença civil condenatória, a estabilidade da relação já definida deverá ser respeitada (artigo 5º, XXXVI, da CF).

Em suma: a nova disciplina da tutela da probidade deve se traduzir, para os casos pendentes, em sentenças de parcial procedência, com acertamento (declaração) da ocorrência do ilícito, sem, entretanto, aplicação de sanção, que na época da decisão condenatória deixou de existir.

Há interesse processual na declaração da ocorrência do ilícito, por se tratar de certificação estatal (oferecimento de certeza) a respeito da efetiva ocorrência dos fatos que eram ilícitos.

Já nos casos julgados definitivamente, nada restará a fazer. A retroatividade penal benéfica, garantia específica para o processo penal, não deve ser aplicada. A ponderação entre as duas garantias constitucionais (artigo 5º, XL, e 5º, XXXVI) é falso problema. A retroatividade benéfica só se aplica especificamente ao Direito Penal. A coisa julgada material deve ser respeitada no processo civil.

6) Inviabilidade da retroação na nova disciplina da prescrição
Em relação ao sistema anteriormente vigorante, há inovações importantes: a unificação do prazo prescricional para a aplicação das sanções, que passa a ser de oito anos (artigo 23, caput); a previsão de interrupção da prescrição ajuizamento da ação de improbidade, ou pela publicação de decisões condenatórias ou confirmatórias de condenação (artigo 23, §4º); a redução pela metade do prazo prescricional pela publicação de decisões condenatórias ou confirmatórias de condenação (artigo 23, §5º); a previsão da prescrição intercorrente, que considerará os prazos decorridos entre os marcos interruptivos e a metade do prazo inicial (quatro anos, cf. artigo 23, §8º).

Esse regime pode ser alvo de longas reflexões sobre sua constitucionalidade, por inviabilizar a aplicação da lei. Não sendo essa a finalidade deste texto, entretanto, cumpre verificar-se a possibilidade da aplicação retroativa deste regime prescricional, com base na premissa da retroatividade da lei "penal" mais benéfica.

Como dito não se trata, propriamente, de lei "penal", mas, sim, de disciplina de ilícitos civis. A interpretação mais coerente e realista deve concluir pela não retroação.

Mas há outro dado importante.

A prescrição intercorrente, nos termos em que da Lei 14.230, é fenômeno antes inexistente. Adite-se: o evento prescricional é a sanção reservada pelo direito à omissão, à inércia, ao descaso. Se não há inércia não deve haver sanção.

Se antes inexistia prescrição intercorrente, não se pode identificar inércia ou atuação displicente do autor da ação de improbidade já ajuizada.

Como sancionar a inércia antes inexistente?

A aplicação retroativa da prescrição intercorrente equivaleria a uma eficácia para o passado da norma sancionadora, por conduta que antes não ocasionava sanção. Seria algo como a aplicação retroativa da lei punitiva superveniente.

Em suma: o novo regime prescricional se aplica aos processos pendentes. Mas apenas a partir da vigência da nova lei e para lapsos temporais ou eventos interruptivos que vierem a se passar no futuro, não para o que já ocorreu no passado.

7) Parâmetros para a aplicação de equilibrada das garantias processuais nas ações de improbidade administrativa
Devido processo legal, ampla defesa, presunção de inocência, amplitude probatória e vedação da utilização de provas obtidas por meios ilícitos são parâmetros que merecem ampla consideração pelos profissionais do Direito, notadamente pelos juízes, na condução de processos relativos à improbidade administrativa.

Mostra-se correta, portanto, a indicação de que não se aplicam no processo decorrente de ações de improbidade: a presunção de veracidade dos fatos alegados em caso de revelia; a inversão do ônus da prova; o reexame necessário (artigo 17, §19, da Lei 8.429/92, red. Lei 14.230/2021).

Isso não se confunde, entretanto, com o desejo de enxergar no processo da ação de improbidade administrativa um processo penal, destinado à aplicação de sanções penais.

Com o perdão da ironia, não se pode aplicar regras para navegação em ambientes aquáticos ao deslocamento de veículos terrestres.

Rotular a tutela da improbidade administrativa como aspecto contido no conceito mais amplo do Direito Sancionador é algo plausível e sustentável.

Isso não atrai para ela, entretanto, em sua integralidade, garantias forjadas para o Direito Penal, que está contido no Direito Sancionador, mas com ele não se confunde.

Especialmente a garantia da retroatividade da lei penal mais benéfica, que é específica do Direito Penal, não se aplicando a aspectos do Direito não penal (civil), ainda que revestido de conteúdo sancionatório.

Interpretação distinta (no sentido da assimilação da Lei de Improbidade e do processo respectivo ao ambiente do Direito Penal) significa, quando menos, criar manifesto conflito (negativa de vigência mesmo) de vários dispositivos constitucionais, entre eles os artigos 5º, XL e XXXVI, 37, §4º, 129, III, §1º, da CF.


[1] AgInt nos EDcl no REsp 1910104 / DF, 1ª T., relator ministro Benedito Gonlalves, j. 08/09/2021; AgInt nos EREsp 1761937 / SP, 1ª Seção, relator ministro Mauro Campbell Marques, j. 19/10/2021; REsp 1941236 / ES, 2ª T., rel. Min. Herman Benjamin, j. 24/08/2021; entre tantos.

[2] Nesse sentido, por exemplo: Sarah-Merçon Vargas, Teoria do processo judicial punitivo não penal, Salvador, Juspodivm, passim.

Autores

  • Brave

    é mestre, doutor e livre docente pela USP, professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e promotor de Justiça em São Paulo.

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