Opinião

Interpretação e aplicação do Direito na obra de Hans Kelsen

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Luis Henrique Braga Madalena

    é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj mestre em Direito Público pela Unisinos vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

  • Lucas Sipioni Furtado de Medeiros

    é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

3 de junho de 2022, 20h26

Em texto anterior exploramos uma diferenciação cuja correta compreensão é condição de possibilidade para o estudo da Teoria Pura do Direito, que é aquela entre Direito e Ciência do Direito. O adjetivo pura diz respeito à teoria, e não ao Direito, que é sempre impuro e determinado por disputas políticas e de afirmação de valores, não podendo ser separado das esferas da política e da moral. Nesse mesmo texto também destacamos que um desdobramento importante dessa diferenciação está na concepção de Kelsen sobre a interpretação e aplicação do Direito. É sobre esse último aspecto que focaremos no presente artigo.

De início é preciso que fique claro que Kelsen não se preocupou com uma teoria da decisão jurídica. Deixou de fazer isso sob o seguinte fundamento: como a aplicação do Direito envolve considerações morais e políticas e estas não são passíveis de conhecimento objetivo, de igual modo não podem ser objeto de estudo de uma epistemologia pura como aquela que ele está propondo. Isso até pode ser visto como uma deficiência teórica, mas não parece ser o caso, já que se trata de uma consequência lógica do ideal de objetividade defendido pelo austríaco. Seja como for, não há como negar que Kelsen deixou a interpretação e a aplicação do Direito ao arbítrio dos intérpretes.

Confirmando esse diagnóstico, aponta Lenio Streck que em Kelsen a interpretação do Direito é “[…] eivada de subjetivismos provenientes de uma razão prática solipsista”. Kelsen em nenhum momento buscou impor limites aos intérpretes, de forma que embora tenha superado a doutrina exegética, ele “[…] abandonou, diante da sua inexorabilidade, o principal problema do Direito: a interpretação concreta, no nível da ‘aplicação’ E nisso reside a ‘maldição’ de sua tese”.[1]

Qual, então, a concepção de Kelsen sobre a interpretação jurídica? A resposta a essa pergunta se encontra no famoso capítulo VIII da Teoria Pura do Direito, denominado sugestivamente de A interpretação.

No início do capítulo, Kelsen explica aquilo que entende como o ato de interpretar: a interpretação é "[…] uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior" [2]. Interpretar uma lei, por exemplo, se resume à questão de "[…] saber qual o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto". Mas o Direito não é aplicado e interpretado somente pelo órgão que o aplica, mas também pelas pessoas a ele submetidas e, especialmente, pela Ciência do Direito. E é aqui que entra a diferenciação entre interpretação com ato de vontade e interpretação como ato de conhecimento [3].

Essa dinâmica entre normas superiores e normas inferiores não diz respeito somente ao processo de formação das normas, mas também à sua aplicação, isto é, as normas superiores não só condicionam a validade das normas inferiores, como também determinam o seu conteúdo quando aplicadas a situações concretas. Ocorre que essa determinação nunca é completa. Mesmo a mais detalhada das normas inevitavelmente deixa a cargo do seu intérprete uma pluralidade de possibilidades decisórias, pois a realidade nunca é exaurida pela norma. Essa indeterminação pode ser intencional, quando era a intenção do órgão que criou a norma garantir uma margem de discricionariedade ao intérprete, ou não intencional, quando a indeterminação é produto da textura aberta da linguagem. Em qualquer caso, a aplicação das normas jurídicas aos casos concretos sempre é, em parte, determinada pelo Direito e, em parte, indeterminada. Melhor dizendo, há algo pré-estabelecido normativamente e algo que sempre permanece aberto ao intérprete [4].

É dessa inevitável indeterminação [5] que Kelsen retira a metáfora da moldura da norma. Nas palavras do autor: em todo caso o Direito a ser aplicado forma "[…] uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível". Isso quer dizer que a interpretação não leva a uma resposta correta, mas a uma multiplicidade de soluções que têm igual valor, já que não existe qualquer método ou critério que nos permita classificar quais interpretações são corretas e quais são incorretas [6]. Por isso, o resultado da interpretação não pode ser outro que não a fixação da "[…] moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem" [7]. Além disso a escolha de qual das interpretações são compatíveis com a moldura da norma é livre, isto é, "[…] realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato" [8]. Daí tratar-se de um ato de vontade, um "eu quero"  e não de razão, um "eu sei".

Nesse cenário é que Kelsen faz uma distinção entre interpretação como ato de conhecimento, ou interpretação científica, e interpretação como ato de vontade, ou interpretação política. A primeira, realizada pelo teórico do Direito, consiste em conjecturar todos os significados que podem ser atribuídos a uma determinada norma, fixando assim a sua moldura. Trata-se de uma descrição moralmente neutra das possibilidades interpretativas, não cabendo ao teórico realizar qualquer juízo de valor sobre a moldura em si. A segunda, por outro lado, realizada principalmente pelo órgão juridicamente competente para aplicar as normas, consiste em fixar qual dos significados possíveis é "o correto". E como não há objetividade nesse momento, essa é uma escolha pessoal do intérprete, produto de uma escala de valores por ele considerada adequada, e daí porque trata-se de uma interpretação como ato de vontade. Importante destacar, ademais, que o intérprete não é limitado pela moldura da norma, de forma que nada impede que ele produza "[…] uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa" [9].

Ainda é preciso diferenciar duas espécies de interpretação política: a interpretação autêntica e a interpretação não autêntica. A primeira é feita pelos órgãos jurídicos responsáveis pela produção das normas, com destaque para o Legislativo e para o Judiciário. Ela é autêntica porque cria Direito. A segunda, por sua vez, é realizada pelos demais participantes da prática jurídica e pelos cidadãos em geral. Ela é inautêntica porque não cria Direito [10]Nas palavras de Lenio Streck, a interpretação como ato de vontade produz, no plano da aplicação concreta, normas jurídicas, ao passo que a interpretação como ato de conhecimento produz proposições neutras sobre as normas jurídicas.[11].

Exposta a teoria interpretativa kelseniana, podemos avançar algumas conclusões.

Primeiro: uma norma jurídica sempre deve ser entendida como ato de vontade, jamais como ato de conhecimento. Ao contrário de descrições moralmente neutras, que podem ser controladas epistemologicamente, as prescrições revelam a vontade de alguém com autoridade e a sua visão sobre como as pessoas a ela submetidas devem se comportar. Consequentemente, uma teoria do Direito genuína apenas pode descrever o seu objeto e não, como o Direito, prescrever seja o lá que for. Daí porque somente a interpretação realizada pelo teórico do Direito é cientifica: ela não vai indicar qual a interpretação correta, mas tão somente as interpretações possíveis, sem qualquer juízo de valor adicional.

Segundo: para Kelsen o cognitivismo interpretativo, isto é, toda e qualquer teoria que prega a existência de respostas corretas, é uma doutrina falsa que, no fundo, não passa de uma ideologia camuflada de ciência; uma teoria que pretende anular a vontade trocando-a por uma justificativa pretensamente racional e controlável. Nesse sentido, anota Pierluigi Chiassoni que a persistência dos juristas na defesa da existência de respostas corretas é motivada pela conveniência em "[…] crer, e em fazer crer, que, enquanto oferecem soluções a problemas jurídicos reais ou imaginários, eles estariam simplesmente fazendo uso de conhecimento: estariam simplesmente expondo soluções já inscritas no direito positivo" [12]. Eis aí uma das grandes fontes simbólicas da autoridade da doutrina, quando se pretende uma espécie de superego daqueles que decidem

Terceiro: uma norma, seja ela qual for, jamais será capaz de determinar por completo todas as suas hipóteses de aplicação; sempre restará ao intérprete uma margem, ora maior, ora menor, de livre apreciação. A norma em si é capaz de fornecer somente uma moldura, que representa todas as possibilidades de aplicação que ela dá origem. A escolha de qual das interpretações presentes na moldura é "a correta", porém, é um juízo de vontade a cargo de intérprete autêntico.

Quarto: o intérprete autêntico pode ir além da moldura, atuando com absoluta discricionariedade na criação da norma a ser aplicada ao caso. Com efeito, embora em certos casos na aplicação do Direito o órgão jurídico combina uma interpretação científica com uma interpretação política, isto é, primeiro fixa todas as possibilidades interpretativas e depois decide qual delas será levada a efeito na solução do caso [13], nada impede que o intérprete crie uma norma que não se encaixe na moldura, situação em que a interpretação será política do início ao fim.

Embora essas conclusões possam frustrar entendimentos de que a partir de Kelsen seria possível domar as incertezas do Direito, elas correspondem rigorosamente às premissas que decorrem do pensamento do autor. A preocupação com quem decide e o desenho institucional pelo qual as decisões são tomadas é mais relevante do que buscar decisões corretas. Estas existem apenas para aqueles que pretendem disputar a autoridade do intérprete originário.

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[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6.ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 38-39.

[2] Essa ideia de escalonamento aparece porque, para Kelsen, a qualificação de uma norma como jurídica pressupõe a sua compatibilidade com outra norma jurídica, que lhe é hierarquicamente superior. Para mais detalhes, ver KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 215-217.

[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 387-388.

[4] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 388-390.

[5] Como lembra Lenio Streck, Kelsen entendia que esse desvio na prática jurídica é impossível de ser corrigido, sendo uma inevitabilidade. Ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6.ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 38.

[6] Importante lembrar aqui que por se tratar Kelsen de uma relativista moral e por entender ele que o Direito é determinado por argumentos morais e políticos, não há como se conceber uma objetividade na interpretação jurídica no âmbito da aplicação. Saber quais interpretações são corretas e quais são erradas não é uma tarefa a ser realizada pela Ciência do Direito, mas pela Política do Direito.

[7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 390-391.

[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 393.

[9] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 394-397.

[10] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 394.

[11] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6.ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 38.

[12] CHIASSONI, Pierluigi. O enfoque analítico na filosofia do direito: de Bentham a Kelsen. Tradução de Heleno Taveira Tores e Henrique Mello. São Paulo: Contracorrente, 2017, p. 487.

[13] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 394.

Autores

  • é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e professor substituto de Direito Econômico da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

  • é advogado, doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

  • é especialista em Direito Constitucional pela ABDConst e pós-graduando em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst.

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