Opinião

Direito e ciência do direito na obra de Hans Kelsen

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Luis Henrique Braga Madalena

    é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj mestre em Direito Público pela Unisinos vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

  • Lucas Sipioni Furtado de Medeiros

    é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

22 de maio de 2022, 17h21

Hans Kelsen talvez seja o maior exemplo de um autor que se tornou conhecido pelos motivos errados. Ao menos no Brasil, existe um abismo entre a teoria kelseniana e aquilo que se diz sobre ela. É claro que, como todo autor, Kelsen está sujeito a críticas. Acontece que muitas das vezes tais críticas recaem sobre um espantalho teórico, não sendo nenhum exagero afirmar que as ideias desse autor ainda precisam ser de fato conhecidas por grande parte da dogmática jurídica brasileira [1].

Não desconhecendo a vastidão da produção de Kelsen, o presente artigo se debruçará sobre um aspecto específico que ainda é muito mal compreendido: a diferença entre Direito e Ciência do Direito. Antes, porém, um esclarecimento: as análises que serão realizadas têm como referência a segunda edição da Teoria Pura do Direito, lançada em 1960, que se trata de uma edição modificada e substancialmente ampliada se comparada à primeira, de 1934. Dentre as ampliações, se destaca a inclusão de um capítulo oitavo relativo à decisão judicial e de um ensaio sobre o problema de justiça [2], em que Kelsen realiza uma série de críticas à doutrina do Direito Natural. Aliás, tema mais do que pertinente para outro texto específico.

No início do século 20, existia um entendimento comum de que as ciências sociais estavam bastante defasadas se comparadas com as ciências da natureza. Para Kelsen, tal situação era produto da ausência de uma ciência jurídica pura, independente dos demais ramos do conhecimento, tais como a psicologia, a sociologia, a ética e a teoria política. É, pois, em tal sentido que Kelsen constrói a Teoria Pura do Direito. Nas palavras do autor: "Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto" [3].

Kelsen, então, passa a desenvolver uma teoria jurídica livre de qualquer ideologia política e independente dos elementos das demais ciências sociais e da natureza; uma teoria autônoma ciente da e fiel à especificidade do seu objeto de estudo. Como diz o próprio autor, seu objetivo foi elevar a Ciência do Direito ao status de uma ciência genuína, pois somente assim ela seria adequada para explicar os elementos necessários "[…] ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão" [4].

Exatamente para cumprir com esse ideal de objetividade é que a Teoria Pura do Direito se pretende uma teoria formal que pode ser aplicada em qualquer país, independentemente da tradição jurídica perante a qual haja vinculação e do contexto sociopolítico; trata-se, em suma, de uma teoria sobre o "[…] Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial" [5]. Algo que explica o fenômeno jurídico tomado em abstrato.

A partir disto começa a ficar evidente que o objetivo de Kelsen não foi separar o Direito da moral e da política, mas, sim, a Ciência do Direito da moral e da política, e isso através da criação de uma metodologia científica capaz de descrever objetivamente aquilo que o Direito é, sem levar em consideração aquilo que ele deve ser. Daí porque o foco na forma do Direito, que é universal, e não no seu conteúdo, que é variável. Segundo o autor, os juízos de valor não podem ser submetidos à análise lógica e não são passíveis de conhecimento objetivo e, consequentemente, eles não podem ser objeto de uma ciência genuína como aquela que ele está propondo [6].

É importante notar, nesse sentido, que pura é a teoria, e não o Direito, tendo Kelsen construído uma teoria pura para estudar um objeto impuro. O Direito, para Kelsen, é resultado de disputas políticas e de afirmação de valores e não pode ser separado das esferas da política e da moral. A Ciência do Direito é que deve ser pura, sendo o seu papel a descrição despida de valores das normas jurídicas que foram produzidas em uma determinada ordem jurídica. Para que não restem dúvidas:

A despolitização exigida pela teoria pura do direito diz respeito à ciência do direito e não ao seu objeto, o direito. O direito não pode ser isolado da política, pois é um instrumento dela. Sua criação, bem como sua aplicação, são políticas e envolvem funções determinadas por juízos de valor. Mas a ciência do direito pode e deve ser separada da política se, em última análise, se pretende valer como ciência [7].

Logo, o conhecimento do Direito positivo, que está a cargo da Ciência Jurídica, deve ser objetivo e claro, de modo que não pode ser influenciado por juízos de valor do teórico do Direito, que são sempre subjetivos. Trata-se a Teoria Pura do Direito de uma teoria sobre o Direito real, que busca explicar como ele é criado e como ele se apresenta nos ordenamentos jurídicos. Saber se o Direito é justo ou não fica de fora da análise, até mesmo porque, como Kelsen é um relativista moral, trata-se essa de uma questão subjetiva. São essas imprecisões e subjetividades inerentes à moral que não podem influenciar a Ciência do Direito que, como qualquer ciência real, não avalia seu objeto, seja para aprová-lo ou desaprová-lo, mas apenas o explica racionalmente [8].

Com efeito, embora o ato criador do Direito sofra influências de toda sorte de considerações morais, políticas, econômicas, sociais etc., o produto desse ato, isto é, a norma jurídica, é autônomo com relação a tais esferas, e por isso a explicação do Direito é possível sem que sejam considerados os fatos e os valores que lhe deram origem. Observe-se que isso não significa que, para Kelsen, o conteúdo das normas jurídicas é irrelevante. Não foi o seu objetivo eliminar toda e qualquer postura avaliativa com relação ao Direito posto, mas tão somente realçar que essa não é uma tarefa a ser realizada pela Ciência do Direito, mas pela política do Direito [9].

Evidente, então, que não merece prosperar a acusação de que Kelsen separa o Direito da moral. O que ele fez foi tão somente identificar os momentos em que outros sistemas sociais influenciam na criação do Direito, e isso para delimitar de forma precisa aquilo que deve ser objeto de descrição pelo teórico do Direito. Para Kelsen, a dinâmica jurídica a ser descrita pelo teórico é justamente o momento em que a política e a moral influenciam o Direito, de modo que por meio de uma teoria descritiva pura o que o autor buscou evitar foi a indevida politização do sistema jurídico.

Finalizando: em Kelsen existe uma diferenciação entre o Direito e a Ciência do Direito. O primeiro é o objeto de estudo da segunda. A pureza se refere à teoria, e não ao seu objeto (o Direito). Kelsen chega a afirmar expressamente que o Direito não pode ser separado da política [10]. O que deve ser separado da política é a Ciência do Direito, cujo papel é descrever de forma neutra o Direito e as normas que o compõem. Essa questão se torna ainda mais clara no capítulo VIII da Teoria Pura do Direito [11], quando Kelsen faz uso da metáfora da moldura da norma e diferencia entre interpretação como ato de conhecimento, realizada pelos teóricos do Direito, e interpretação como ato de vontade, realizada pelos aplicadores do Direito. Porém, aqui tem-se outra temática a ser abordada em posterior artigo específico.


[1] Nesse ponto, recomendamos SIQUEIRA, Gustavo Silveira. Hans Kelsen no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2021, obra que não só apresenta um panorama geral sobre a teoria de Kelsen como também demonstra as influências do autor no constitucionalismo brasileiro.

[2] Em alguns países, como é o caso do Brasil, este ensaio foi publicado como um livro autônomo. Ver KELSEN, Hans. O problema da justiça. Tradução de João Baptista Machado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 01-02.

[4] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. XI.

[5] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 01.

[6] VALADÃO, Rodrigo Borges. Positivismo jurídico e nazismo: formação, refutação e superação da lenda do positivismo. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022, p. 284-285.

[7] KELSEN, Hans. Qu'est-ce que la théorie pure du droit? Traduction de Philippe Coppens. Droit & Société. 22-1992. Disponível em http://www.brameret.eu/textes/Grands-textes/files/Kelsen%201953.pdf. Acesso em 10/5/2022, p. 559.

[8] KELSEN, Hans. Qu'est-ce que la théorie pure du droit? Traduction de Philippe Coppens. Droit & Société. 22-1992. Disponível em http://www.brameret.eu/textes/Grands-textes/files/Kelsen%201953.pdf. Acesso em 10/5/2022, p. 559-560.

[9] LOSANO, Mário G. Introdução. In.: KELSEN, Hans. O problema da justiça. Tradução de João Baptista Machado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. XIV.

[10] KELSEN, Hans. Qu'est-ce que la théorie pure du droit? Traduction de Philippe Coppens. Droit & Société. 22-1992. Disponível em http://www.brameret.eu/textes/Grands-textes/files/Kelsen%201953.pdf. Acesso em 10/5/022, p. 559.

[11] Incluído somente na segunda edição da Teoria Pura do Direito, como já visto.

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