Observatório Constitucional

Estado de coisas inconstitucional: o que esperamos da ADPF?

Autor

  • Beatriz Bastide Horbach

    é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

30 de julho de 2022, 8h04

O conceito de "estado de coisas inconstitucional" (ECI) foi desenvolvido pela Corte Constitucional colombiana, que, em pelo menos quatro casos, já reconheceu sua existência diante de quadros de violação massiva e generalizada de direitos e garantias fundamentais, por ação e omissão de diversos órgãos públicos responsáveis por sua tutela [1].

O julgado colombiano mais emblemático é a Sentença T-025, de 2004, em que declarada que a situação de mais de três milhões de pessoas deslocadas pela violência interna no país constituiria um estado de coisas inconstitucional. A corte revisou 108 demandas, interpostas em 22 cidades do país por 1.150 famílias, dando início ao que alguns apontam como a "tentativa judicial latino-americana mais explícita e sistemática para assegurar a implementação de uma macro sentença" [2].

Na decisão, e nas medidas que se seguiram, a Corte Constitucional colombiana expediu ordens de procedimento que envolvem o Estado e a sociedade civil na elaboração e na aplicação de programas para enfrentamento da crise humanitária do deslocamento forçado. Também conduziu audiências públicas e estabeleceu metas a serem seguidas. Pela lógica dessa técnica decisória, a intervenção judicial em políticas públicas complexas seria relevante para destravar quadros de bloqueio institucional, de forma a romper o estancamento burocrático que enfraquece a concretização dos direitos constitucionais. O tribunal agiria, assim, como agente coordenador e complementar da democracia.

Nesse cenário caracterizado pelo fortalecimento do ativismo judicial, há pelo menos três principais críticas à atuação do Poder Judiciário, como sintetizado por Eduardo Sousa Dantas: "a primeira entende que a intervenção judicial em atos praticados pelos demais Poderes, que são eleitos pelo povo, seria antidemocrática. A segunda defende a falta de conhecimento e expertise do Poder Judiciário para intervir em questões técnicas ou que demandem um intenso debate público. A terceira defende a usurpação, pelo Judiciário, das atribuições dos demais Poderes" [3].

Entre nós, o deferimento do pedido de medida cautelar formulado na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 347 foi significativo para o reconhecimento, no Brasil, de um "estado de coisas inconstitucional".

No caso, o Supremo Tribunal Federal declarou haver um quadro de sistêmica e massiva violação de direitos fundamentais no sistema penitenciário nacional, decorrente de falhas estruturais e da falência de políticas públicas. Decidiu-se, então, cautelarmente, pela necessidade de observância obrigatória da audiência de custódia e pelo imediato descontingenciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). O julgamento do mérito do processo, de atual relatoria do ministro Alexandre de Moraes, encontra-se suspenso, após pedido de vista do ministro Roberto Barroso.

Além dessa ação, pelo menos outras seis arguições de descumprimento de preceito fundamental tramitam no Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de que seja declarado "estado de coisas inconstitucional", sobre os mais variados tipos de matéria.

Nesse sentido, mencione-se a ADPF 760, na qual a relatora, ministra Cármen Lúcia, apresentou voto para reconhecer o "estado de coisas inconstitucional quanto ao desmatamento ilegal da Floresta Amazônica", ocasionado pelo abandono do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), pelo governo federal, bem como pela ausência de adoção de medidas que sejam aptas a assegurar a continuidade do combate ao desmatamento. Em sua fundamentação, ela fez ainda menção à decisão monocrática do ministro Roberto Barroso na ADPF 708, em que este indica acreditar haver um progressivo estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental no Brasil. A ADPF 760 encontra-se com o ministro André Mendonça, após pedido de vista, realizado em 6 de abril de 2022.

Já na ADPF 918, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil requer o reconhecimento do "estado de coisas inconstitucional da política nacional de cultura". O pedido tem como fundamento a "longa série de atos comissivos e omissivos praticados por diversos agentes públicos, em variados graus da Administração Pública", que resultariam em "estrangulamento financeiro da classe artística e da produção cultural nacional, em atos persecutórios, em insegurança jurídica, e em procrastinação deliberada, os quais analisados individualmente ou como um todo representam atitude deliberada e reiterada de afronta à liberdade de expressão garantida na Constituição Federal". A relatoria é do ministro Edson Fachin.

Na ADPF 973, relatora ministra Rosa Weber, sete partidos políticos pleiteiam o reconhecimento do "estado de coisas inconstitucional fundado no racismo estrutural e institucional" ao qual a população negra brasileira está exposta. O pedido principal é para que a União elabore e implemente, no prazo de um ano, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte à População Negra, que deve incluir organizações da sociedade civil e do movimento negro. A ação, proposta simbolicamente em 13 de maio de 2022, apresenta, ao longo de 63 páginas da petição inicial, diversos dados para evidenciar a gravidade da questão, notadamente o aumento da letalidade e da violação sistemática dos direitos constitucionais da população negra.

Na ADPF 976, Rede Sustentabilidade, Partido Socialismo e Liberdade e Movimento dos Trabalhadores sem Teto demandam a declaração do "estado de coisas inconstitucional concernente às condições desumanas de vida da população em situação de rua no Brasil, por omissões estruturais e relevantes sobretudo atribuíveis ao Poder Executivo, em suas três níveis federativos, mas também ao Poder Legislativo, em razão de lacunas de inovação legislativa necessária e de falhas na reserva de orçamento público em quantum suficiente".

A petição inicial da ação, proposta em maio de 2022, apresenta dados relativos a baixas temperaturas e ao aumento da população de rua em razão da crise gerada pela pandemia de Covid-19. Por fim, as entidades sugerem vinte e nove providências que poderão ser adotadas pela corte, caso julgue a ação procedente, como a criação de Comissão de Enfrentamento à Emergência da População em Situação de Rua em nível federal e a proibição do recolhimento forçado de bens e pertences, da remoção e do transporte compulsório e do emprego de técnicas de arquitetura hostil contra as populações em situação de rua. A relatoria é do ministro Alexandre de Moraes.

Já na ADPF 984, o presidente da República, representado pela Advocacia-Geral da União, defende a existência de um "estado de coisas inconstitucional da tributação dos combustíveis", que seria "resultante da prática inconstitucional reiterada de diversos entes federativos de fixar alíquotas de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços-ICMS incidente sobre bens essenciais, especificamente combustíveis". A ação estaria voltada a "evitar e reparar lesão aos preceitos fundamentais do pacto federativo, da dignidade da pessoa humana, da proteção ao consumidor, da isonomia fiscal, da capacidade contributiva, proporcionalidade, razoabilidade e da seletividade tributária". O processo tem como relator o ministro Gilmar Mendes

Na ADPF 989, quatro entidades da sociedade civil pleiteiam que o STF declare estado de coisas inconstitucional relacionado à realização do aborto nas hipóteses previstas em lei. A situação estaria caracterizada por condutas comissivas e omissivas dos poderes públicos da União, diretos e indiretos, que restringem o acesso ao aborto legal. O relator é o ministro Edson Fachin.

Por fim, no pedido inicial da ADPF 635, chamada de "ADPF das favelas", o requerente, Partido Socialista Brasileiro, aponta quadro de massiva e graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição praticadas pelo estado do Rio de Janeiro na elaboração e na implementação de sua política de segurança pública, "notadamente no que tange à excessiva e crescente letalidade da atuação policial, que estaria voltada sobretudo contra a população pobre e negra de comunidades". O caso também é de relatoria do ministro Fachin.

Apesar dessa listagem, é certo que demandas estruturais não precisam necessariamente ser propostas por meio de arguição de descumprimento de preceito fundamental. Todavia, a ADPF parece ser, atualmente, o melhor instrumento para análise da eventual existência de falhas estruturais na condução de políticas públicas, apesar de críticas pontuais da doutrina [4].

Nesse sentido, em decisão monocrática na ADO 60, o relator, ministro Roberto Barroso, converteu a ação em arguição de descumprimento de preceito fundamental. O pedido tem por objeto "atos comissivos e omissivos da União que comprometeriam o adequado funcionamento do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, bem como o direito de todos os brasileiros a um meio ambiente saudável". Indicou, na conversão, que "em situações em que se aponta um conjunto heterogêneo de atos comissivos e omissivos lesivos à Constituição, e dada a reconhecida fungibilidade entre as ações diretas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se inclinado pelo conhecimento da ação como ADPF", uma vez que esta "comporta uma maior heterogeneidade quanto a seu objeto, bem como maior flexibilidade quanto às providências de ordem normativa e/ou concretas a serem concedidas".

Como se sabe, a arguição de descumprimento de preceito fundamental foi introduzida ao direito brasileiro pela Constituição Federal de 1988, que a previu inicialmente apenas com a indicação de que "a ADPF, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo STF, na forma da lei". Justamente por seu caráter inédito, muito foi discutido sobre qual seria — ou deveria ser – a natureza desse novo instituto, além de sua conformação infraconstitucional. Nesse contexto de (in)definições, Sepúlveda Pertence chegou a chamá-la de "autêntica esfinge do direito brasileiro" [5].

Após muitos debates, notadamente na comissão formada para elaborar esboço de um anteprojeto para a ADPF, coordenada pelo professor Celso Bastos e com a participação do ministro Gilmar Mendes, foi promulgada a Lei nº 9.882/99, dando início à solução desse enigma.

O instituto foi então disciplinado de modo a integrar a jurisdição constitucional brasileira como instrumento apto a englobar questões que não poderiam ser objeto de outras ações de controle concentrado, como a recepção de norma pré-constitucional e a declaração de inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal. Nos termos da Lei nº 9.882/99, a ADPF terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. No ponto, Gilmar Mendes indica que o STF poderá emitir juízo sobre a relevância e o interesse público contido na controvérsia constitucional, ao lado de outros requisitos de admissibilidade [6].

Nos últimos tempos é possível observar crescente utilização de arguições de descumprimento de preceito fundamental para questionamento dos mais variados tipos de omissões na execução de políticas públicas. Esse aparente protagonismo da ADPF, possivelmente gerado, inclusive, pelo aumento da polarização política, coloca o tribunal em posição de eventual gerenciador de falhas estruturais, procurando encontrar, junto com os demais poderes públicos, soluções para temáticas espinhosas. Também faz parte dessa atuação, por certo, saber ponderar e delimitar os seus limites — afinal, não é possível a declaração completa de um estado de coisas inconstitucional do país.

Em síntese, para caracterização do estado de coisas inconstitucional deve ser constatada violação a direitos e garantias fundamentais de uma ampla parcela de população, em situação em que evidenciada falha estrutural sistêmica de autoridades e entidades na execução e na condução de políticas públicas. Esse quadro implicará ordens de execução complexa, por parte do Poder Judiciário, a fim de instigar a execução coordenada de medidas protetivas da população atingida.

É oportuno que essa perspectiva esteja presente na análise de eventuais aprimoramentos ou ajustes que possam vir a serem feitos no desenvolvimento de um provável Código de Processo Constitucional, especialmente pela comissão instituída pela Câmara dos Deputados para elaborar um anteprojeto [7]. Voltado a sistematizar as normas de processo constitucional brasileiro, esse diploma legislativo igualmente poderá buscar novos cenários à jurisdição constitucional brasileira.

Questões como o procedimento para concessão de medida liminar, considerando-se a necessidade de intervenção célere da corte em situações fáticas causadas por falhas na execução de políticas públicas; a possível extensão do rol de legitimidade para ajuizamento da ação; a definição de medidas coercitivas para execução de suas decisões; o aprimoramento da convocação de especialistas e da realização de audiências de conciliação; a possibilidade de fungibilidade da ADPF com outras ações constitucionais, bem como uma possível utilização da ADPF como incidente a ser apresentado diretamente ao STF por tribunais regionais, quando constatado quadro de falha estrutural em processos subjetivos, são temáticas que valem o debate.

Como indicado por Gilmar Mendes em seu Curso de Direito Constitucional, "o instituto da arguição de descumprimento parece dotado de grande flexibilidade, o que pode permitir desenvolvimento de soluções criativas para a adequação do modelo jurídico‑institucional às demandas dos novos tempos" [8]. A ADPF é, portanto, terreno fértil a ser utilizado para a proteção de direitos e garantias fundamentais, em seus mais variados aspectos.

 


[1] RODRIGUEZ GARAVITO, César; RODRIGUEZ FRANCO, Diana. Cortes y cambio social – cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad Dejusticia, 2010. Cf. Também CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de coisas inconstitucional. Salvador: Juspodivm, 2019.

[2] Id.ib.

[3] DANTAS, Eduardo Sousa. Ações Estruturais e o Estado de Coisas Inconstitucional: a tutela de direitos fundamentais em casos de graves violações pelo poder público. Curitiba: Juruá, 2019. p. 71

[4] DANTAS, Eduardo Sousa. Ações Estruturais e o Estado de Coisas Inconstitucional: a tutela de direitos fundamentais em casos de graves violações pelo poder público. Curitiba: Juruá, 2019.

[5] ADPF‑QO 1/RJ, voto do Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 7‑11‑2003. Cf. . MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2022.

[6] Id.ib.

[7] Ato do Presidente da Câmara dos Deputados, de 24/11/2020 (DOU 25.11.2020).

[8] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 1451.

Autores

  • é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen (Alemanha), assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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