Observatório Constitucional

O exercício legítimo do Poder Executivo e a Constituição

Autor

  • Ilton Norberto Robl Filho

    é professor da Faculdade de Direito da UFPR e do IDP líder do grupo de pesquisa "Democracia Constitucional Novos Autoritarismos e Constitucionalismo Digital" no IDP membro do CCons-UFPR e da Fundação Peter Häberle e sócio do escritório de advocacia Marrafon Robl e Grandinetti.

9 de julho de 2022, 8h02

1. As reflexões sobre o Poder Executivo encontram-se no coração do constitucionalismo tanto na sua versão moderna como no seu aspecto contemporâneo. As limitações sobre a Coroa foram a tônica dos pensamentos jurídico e político de John Locke e Montesquieu [1]. Na teoria de John Locke, a instituição Coroa, que representa socialmente a casa real, exerce, no nível institucional, atribuições de governo, de administração e dos tribunais (jurisdição), sendo responsável pela aplicação e execução do direito (Poder Executivo), pelas relações externas (Poder Federativo) e pelas situações de guerra (Poder Prerrogativo). De outro lado, o Poder Legislativo é o Poder Supremo, o qual é institucionalmente composto pelas Câmaras Baixa e Alta, mas com a presença do rei no Parlamento. Posterior e gradativamente, o modelo inglês ampliou o aspecto democrático, 1) valorizando ainda mais a Câmara dos Comuns, 2) atribuindo as principais funções de governo e de direção da administração ao gabinete e ao primeiro-ministro e 3) robustecendo a independência dos Tribunais [2].

A obra de Montesquieu tornou-se icônica no direito constitucional, refletindo sobre os requisitos institucionais e funcionais para a existência da monarquia constitucional e distinguindo-se da perspectiva de Locke especialmente por duas características: "(1) autonomização do poder judiciário; (2) inclusão dos poderes federativo e prorrogativo no âmbito do executivo" [3]. Por sua vez, modificação relevante ocorreu nos Estados Unidos da América, estabelecendo-se uma República Constitucional, a qual possui rotatividade nos cargos mais destacados, e inexistindo a instituição da Coroa [4]. Dessa maneira, o Poder Executivo é atribuído ao presidente da República, fixando-se o sistema de governo presidencialista e influenciando diversos países latino-americanos como o Brasil, com a adesão ao Estado Federal e ao sistema de governo presidencialista na Constituição brasileira de 1891.

2. A moldura institucional do Poder Executivo brasileiro produz o fenômeno do hiperpresidencialismo, o qual consiste na atribuição de um conjunto exacerbado de competências ao presidente da República, gerando consequências negativas e sendo aqui indicadas duas: 1) exacerbada personificação do poder, com extensas atribuições e funções de Estado e de governo para um cargo na República, e 2) problema de eficiência, porque há a exigência de que uma pessoa exerça adequadamente um feixe vasto de competências e enfrente com desenvoltura temas sociais e jurídicos espinhosos [5]. Nos termos da Constituição brasileira de 1988 (CF/88), são competências da Presidência da República, por exemplo, 1) nomear ministros de Estado, promovendo, em conjunto com essas autoridades auxiliares, a direção superior da administração pública federal, 2) participar ativamente do processo legislativo com a iniciativa privativa, nos casos previstos na CF/88, além de sancionar ou de vetar projetos de lei total ou parcialmente, 3) dispor mediante decreto sobre a organização e o funcionamento da administração pública federal, 4) manter relações com Estados estrangeiros, v) exercer o comando supremo das Forças Armadas [6] e 4) outras que foram fixadas no artigo 84 e nos demais dispositivos da CF/88.

3. A análise constitucionalmente adequada das funções e das atribuições da Presidência da República é uma empreitada difícil, porém essencial no atual Estado Democrático de Direito brasileiro. Em primeiro lugar, a Teoria da Constituição precisa reaproximar-se da Teoria do Estado para esse intento, já que esta é "capaz de compreender as relações entre política, a democracia, a soberania, a Constituição e o Estado" [7]. Em outro texto, defendemos que a efetividade das normas constitucionais impõe um diálogo mais robusto com as ciências sociais, buscando elementos aptos para implementar, na realidade social, os comandos constitucionais e apontando que: "a incompletude teórica reside na valorização de instrumentos eminentemente jurídicos e processuais, porém sem a concessão do mesmo interesse sobre as garantias sociais e econômicas" [8].

Dentre as reflexões que precisam ser realizadas com o auxílio da Teoria do Estado, pontuamos as seguintes: a) maior clareza sobre as decisões políticas fundamentais que são plasmadas no texto constitucional normativo, as quais passam a ser questões de Estado e não podem ser negadas, esquecidas ou combatidas por governos transitórios, b) valorização pelas demais instituições e poderes constituídos do exercício constitucionalmente legítimo das atribuições do Poder Executivo e c) repensar a relação entre governos e administração pública. Vejamos.

Em primeiro lugar, são objetivos da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a qual deve erradicar a pobreza e a marginalização social, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, gerando assim desenvolvimento econômico e humano, de acordo com o artigo 3º, CF/88. Essas são decisões políticas fundamentais (comandos constitucionais), as quais não podem, em hipótese nenhuma, ser atacadas por qualquer governo transitório. A proteção constitucional incide contra ações que se chocam com essas fixações constitucionais, porém também combate omissões no planejamento e na elaboração de políticas públicas para concretização desses objetivos [9]. Pelo exposto, os projetos remetidos pelo Executivo e o exercício do poder de veto no processo legislativo, assim como os decretos editados, não devem desconsiderar ou afrontar esses objetivos fundamentais. Na implementação da competência de manter relações com Estados estrangeiros, a observância fiel do artigo 4º é medida inescapável, visto que estabelece os princípios reitores da atuação da República Federativa do Brasil nas relações internacionais. Dessa forma, a promoção e a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, que envolve a temática ambiental, não são passíveis de desconsideração por governos transitórios.

Em segundo lugar e de outra banda, o respeito ao exercício legítimo das atribuições do Poder Executivo também é comando constitucional, necessitando os demais poderes instituídos (Legislativo e Judiciário) e as instituições autônomas como o Ministério Público e a Defensoria Pública prestarem deferência na exata medida do figurino constitucional. As finalidades constitucionalmente fixadas, na Constituição brasileira de 1988, permite aos governos transitórios, dentre as escolhas que são válidas para atingir os objetivos constitucionais, uma série de decisões legítimas na execução das competências constitucionais do Poder Executivo. Assim e como exemplo, o controle judicial dos atos de nomeações de ministros de Estado, que são auxiliares diretos do presidente da República, apenas podem ocorrer em situações absolutamente teratológicas, pois é uma competência constitucional essencial do Poder Executivo a organização e a construção do governo.

Em terceiro lugar, as relações entre governos transitórios e administração pública necessita ser repensada, sendo atribuição do governo dirigir a administração pública, levando em consideração, de um lado, as determinações constitucionais e, de outro lado, as diretrizes sufragadas democraticamente que constam no programa de governo. Uma visão constitucionalmente adequada da direção da administração pública federal não permite a prevalência de compromissos políticos e eleitorais quando colidem com os comandos constitucionais. Ressaltamos que servidores públicos competentes, qualificados e com boas condições de trabalho são essenciais no Estado Democrático de Direito, devendo ser valorizados pelos governos.

Por sua vez, não é possível fechar os olhos para a necessidade de ampliar as entregas e os resultados da administração pública, os quais são essenciais especialmente na efetivação dos direitos sociais. Nesse sentido, defendemos outrora:

"O Estado de Direito contemporâneo pressupõe a prestação de serviços públicos eficientes. Nesse contexto, insere-se a responsabilidade gerencial da administração pública. (…) A responsabilidade gerencial exprime um princípio geral, por meio do qual a ação administrativa deve ser avaliada e julgada pelas prestações e pelos serviços (…). O dever de os funcionários públicos de atingir resultados úteis para a coletividade administrada representa agora um paradigma normativo e de valor constitucional, que a administração pública está obrigada a observar" [10].

Essas são algumas questões relevantes sobre o Estado e o Poder Executivo que desafiam o constitucionalismo contemporâneo.

 


[1] Uma apresentação profunda, mas extremamente didática sobre as origens da separação dos poderes encontra-se em CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 11 reimp., Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 578-581.

[2] Acerca da independência do Poder Judiciário, registramos a alteração funcional no UNITED KINGDOM, Constitucional Reform Act 2005, disponível em: https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2005/4/contents, acesso em 7/7/2022.

[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 581.

[4] Para uma defesa originária desse modelo, cf. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. 3ª ed. Campinas: Russell editores, 2009. Para uma crítica contemporânea, cf. ACKERMAN, Bruce. A Nova Separação dos Poderes. Rio Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[5] MACEDO, José Arthur Castillo de. (Hiper)presidencialismo Brasileiro: esse outro Esquecido. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin. Direito Constitucional: Volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 507-512.

[6] Trata-se de competência constitucional importantíssima, sendo as Forças Armadas destacadas instituições de Estado para a promoção do Estado Democrático de Direito e da soberania nacional. Pela complexidade do tema, essa questão não será desenvolvida nesta coluna. Apenas o seguinte registro precisa ser feito: no constitucionalismo contemporâneo, questões políticas e partidárias não podem pautar a atuação dessas instituições de Estado.

[7] BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José Filomeno de; LIMA, Martonio Mont'Alverde B. Teoria da Constituição: Estudos sobre o Lugar da Política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 133.

[8] MARRAFON, Marco Aurélio; Robl Filho, Ilton Norberto. Constituição e Efetividade dos Direitos Fundamentais: Caminhos para Superação da Perspectiva Tradicional do Direito Constitucional Brasileiro a Partir do Princípio da Factibilidade e do Desenvolvimentismo. Constituição, Economia E Desenvolvimento: Revista Eletrônica Da Academia Brasileira De Direito Constitucional, 6 (11), p. 278, 2014.

[9] BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma Leitura a Partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 69-116.

[10] CELONE, Cristiano; ROBL FILHO, Ilton Norberto. A Garantia Constitucional da Responsabilidade Gerencial: Responsabilidade por Resultados dos Dirigentes Públicos nos Sistemas Brasileiro e Italiano e as Relações entre Órgãos Políticos e Administrativos. Revista Jurídica da Presidência, v. 21, p. 452-468, 2020.

Autores

  • é Mestre e Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela UFPR — tendo realizado estudo de pós-doutorado em Direito Constitucional na PUC-RS —, professor do mestrado e doutorado do IDP (Brasília) e da Faculdade de Direito da UFPR, membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do CFOAB, do CCons (UFPR) e da ABDConst, advogado e sócio do Escritório Marrafon, Grandinetti e Robl.

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