Direito Civil Atual

É preciso repensar a dogmática publicista da teoria da prova (parte 2)

Autor

  • Pedro Eduardo Clemesha

    é advogado; mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; bacharel pela mesma instituição; pós-graduado em Direito Privado; e pesquisador vinculado à Rede de Direito Civil Contemporâneo.

25 de julho de 2022, 8h29

Continua parte 1.

Para exemplificar a necessidade de se repensar a dogmática publicista da Teoria da Prova, nesta segunda parte de nossa coluna abordaremos o postulado de que “o juiz é o destinatário da prova”. Subjacente a essa afirmativa aparentemente simplória está todo um mar de discussões doutrinárias, e aspectos da própria discussão quanto à natureza jurídica das normas sobre prova. [1]

ConJur
O postulado do "juiz destinatário da prova" coroa uma concepção publicista da Teoria da Prova segundo a qual a natureza jurídica das normas sobre provas não poderia ser outra que a processual, já que é no momento da externalização da convicção judicial que a prova atingiria seu momento de verdadeira eficácia. Sem valoração judicial, portanto, não haveria que se falar em prova. As formalidades tomadas pelas partes no âmbito de um determinado negócio só teriam relevância jurídica no momento em que decidida judicialmente eventual controvérsia travada entre elas. 

A prova seria, dessa forma, um mero instrumento à disposição do juiz. A tônica é dada ao destinatário (o juiz); e eventual vontade das partes na formação da prova, e a segurança jurídica na conservação das relações privadas, são relegadas ao descaso. Lei nova que restrinja os meios de prova à disposição das partes para a defesa de seus direitos terá incidência imediata, pois a "sociedade" entende (segundo essa concepção publicista) que a restrição probatória é mais interessante à atividade judicante do magistrado. [2] Mesmo que a lei nova extinga a possibilidade de prova de determinados fatos ou negócios jurídicos, e, assim, extinga também, por via reflexa, o direito material antes reconhecido às partes, essa concepção publicista da Teoria da Prova não enxergará problema algum. Uma vez que é o juiz o destinatário da prova, o direito à prova das partes não existe. [3]

O postulado do juiz destinatário da prova não é o único a dar sustentação, na dogmática do direito processual civil, à natureza processual das normas sobre prova, mas é, sem sombra de dúvida, o fundamento mais importante da corrente teórica que sustenta essa posição (hoje amplamente majoritária). 

São de várias ordens, no entanto, os motivos que levam a concluir pela necessidade de revisão deste postulado (seja com vistas à sua reelaboração e fortalecimento, seja com vistas à sua superação). Em primeiro lugar, ainda que fosse aceitável a premissa publicista subjacente a essa concepção teórica da prova, não é o juiz, mas a Jurisdição, que deveria ser reconhecida como destinatária da prova sob esse enfoque. A jurisdição, conforme atualmente compreendida, abrange mais do que a mera jurisdição estatal: a arbitragem é também jurisdicional. O reconhecimento do caráter não exclusivamente estatal da Jurisdição impõe uma revisão dessa concepção instrumental da prova (no quadro teórico do publicismo processual, a prova é instrumental à convicção judicial e, em última análise, na esteira da Teoria Geral do Processo [4], é instrumental ao atingimento de escopos imaginados originalmente para uma jurisdição exclusivamente estatal, exercida por um servidor público).  

Em segundo lugar, o postulado do do juiz destinatário da prova deve passar por uma séria revisão também porque o sistema processual, na sua conformação juspositiva atual, admite a produção probatória sem lide (conflito de interesses qualificado por uma pretensão) e sem urgência. A prova pode ser produzida (realizada, para recorrer a terminologia preferível) para evitar litígio judicial [5]. Temos que a positivação dessa possibilidade no Código de Processo Civil vigente é um verdadeiro marco na dogmática da prova civil, com potencial para se tornar um efetivo divisor de águas. As partes são tão destinatárias da prova quanto a Jurisdição [6], e isso resulta de leitura expressa da lei processual, na medida em que esta admite a produção probatória desvinculada de um nexo de instrumentalidade imediato com a formação da cognição judicial.

Em terceiro lugar, o postulado em questão frequentemente se associa a uma visão holística [7] da prova. Parafraseando Otavio Luiz Rodrigues Junior, "o juiz é o destinatário da prova" é uma expressão de guerrilha, que serve àqueles que não se conformam com o vigente modelo probatório do convencimento motivado. Trata-se de expressão que, na prática forense, coroa o repúdio a uma visão analítica [8] da prova judicial, que é o que se espera de um processo civil democrático. 

Em quarto lugar, também por um motivo pragmático é necessário ao menos precisar o conteúdo teórico do postulado em referência. Trata-se da circunstância de que, infelizmente, a expressão é utilizada como subsídio retórico para legitimar o cerceamento de defesa, conforme incansavelmente denunciado por autorizados doutrinadores, a exemplo de Lenio Streck. [9]

Buscou-se, com esse emblemático exemplo, trazer a lume a necessidade e a utilidade prática de uma revisitação das bases dogmáticas da Teoria da Prova. O florescimento das discussões em torno desse objeto de estudo bastante amplo poderá contribuir para uma reflexão mais informada, e, diga-se de passagem, mais consentânea com a realidade do processo na contemporaneidade, acerca da própria natureza jurídica das normas sobre prova. 


[1] Para um panorama dessa discussão: REGO, Hermenegildo de Souza. Natureza das normas sobre prova. São Paulo: RT, 1985; e GIANNICO, Maricí. A prova no Código Civil: natureza jurídica. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2007

[2] Esse é o raciocínio subjacente à regra da incidência imediata das normas processuais aos processos pendentes, já tradicional em nosso sistema. Essa ratio é, contudo, de duvidosa aplicação às normas sobre prova.

[3] Curiosamente, a maior parte da doutrina reconhece a existência de um direito fundamental à prova. Haveria, então, uma vedação constitucional à possibilidade de restrição superveniente dos meios de prova à disposição das partes, por parte do legislador?

[4] Nos referimos aos escopos da jurisdição indicados na formulação da Teoria Geral do Processo de Dinamarco, Grinover e Araújo Cintra, que é a mais difundida no Brasil. 

[5] Conforme o art. 381, inc. III, do CPC.

[6] Nesse sentido: FERREIRA, William Santos. In: Wambier, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 992; e MÜLLER, Julio Guilherme. Negócios processuais e desjudicialização da prova: análise econômica e jurídica. São Paulo: RT, 2017. p. 193.

[7] Sobre essa noção, confira-se: TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. tradução Vitor de Paula Ramos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016. p. 73-76.

[8] Idem

[9] STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. O autor denuncia mais especificamente o uso da expressão "decido conforme minha consciência". Quanto ao postulado do juiz destinatário da prova, confira-se o segundo capítulo da obra, onde há, inclusive, transcrição de um julgado que bem exemplifica seu mau uso.

Autores

  • é advogado; mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; bacharel pela mesma instituição; pós-graduado em Direito Privado; e pesquisador vinculado à Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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