Continua parte 1.
Para exemplificar a necessidade de se repensar a dogmática publicista da Teoria da Prova, nesta segunda parte de nossa coluna abordaremos o postulado de que “o juiz é o destinatário da prova”. Subjacente a essa afirmativa aparentemente simplória está todo um mar de discussões doutrinárias, e aspectos da própria discussão quanto à natureza jurídica das normas sobre prova. [1]
A prova seria, dessa forma, um mero instrumento à disposição do juiz. A tônica é dada ao destinatário (o juiz); e eventual vontade das partes na formação da prova, e a segurança jurídica na conservação das relações privadas, são relegadas ao descaso. Lei nova que restrinja os meios de prova à disposição das partes para a defesa de seus direitos terá incidência imediata, pois a "sociedade" entende (segundo essa concepção publicista) que a restrição probatória é mais interessante à atividade judicante do magistrado. [2] Mesmo que a lei nova extinga a possibilidade de prova de determinados fatos ou negócios jurídicos, e, assim, extinga também, por via reflexa, o direito material antes reconhecido às partes, essa concepção publicista da Teoria da Prova não enxergará problema algum. Uma vez que é o juiz o destinatário da prova, o direito à prova das partes não existe. [3]
O postulado do juiz destinatário da prova não é o único a dar sustentação, na dogmática do direito processual civil, à natureza processual das normas sobre prova, mas é, sem sombra de dúvida, o fundamento mais importante da corrente teórica que sustenta essa posição (hoje amplamente majoritária).
São de várias ordens, no entanto, os motivos que levam a concluir pela necessidade de revisão deste postulado (seja com vistas à sua reelaboração e fortalecimento, seja com vistas à sua superação). Em primeiro lugar, ainda que fosse aceitável a premissa publicista subjacente a essa concepção teórica da prova, não é o juiz, mas a Jurisdição, que deveria ser reconhecida como destinatária da prova sob esse enfoque. A jurisdição, conforme atualmente compreendida, abrange mais do que a mera jurisdição estatal: a arbitragem é também jurisdicional. O reconhecimento do caráter não exclusivamente estatal da Jurisdição impõe uma revisão dessa concepção instrumental da prova (no quadro teórico do publicismo processual, a prova é instrumental à convicção judicial e, em última análise, na esteira da Teoria Geral do Processo [4], é instrumental ao atingimento de escopos imaginados originalmente para uma jurisdição exclusivamente estatal, exercida por um servidor público).
Em segundo lugar, o postulado do do juiz destinatário da prova deve passar por uma séria revisão também porque o sistema processual, na sua conformação juspositiva atual, admite a produção probatória sem lide (conflito de interesses qualificado por uma pretensão) e sem urgência. A prova pode ser produzida (realizada, para recorrer a terminologia preferível) para evitar litígio judicial [5]. Temos que a positivação dessa possibilidade no Código de Processo Civil vigente é um verdadeiro marco na dogmática da prova civil, com potencial para se tornar um efetivo divisor de águas. As partes são tão destinatárias da prova quanto a Jurisdição [6], e isso resulta de leitura expressa da lei processual, na medida em que esta admite a produção probatória desvinculada de um nexo de instrumentalidade imediato com a formação da cognição judicial.
Em terceiro lugar, o postulado em questão frequentemente se associa a uma visão holística [7] da prova. Parafraseando Otavio Luiz Rodrigues Junior, "o juiz é o destinatário da prova" é uma expressão de guerrilha, que serve àqueles que não se conformam com o vigente modelo probatório do convencimento motivado. Trata-se de expressão que, na prática forense, coroa o repúdio a uma visão analítica [8] da prova judicial, que é o que se espera de um processo civil democrático.
Em quarto lugar, também por um motivo pragmático é necessário ao menos precisar o conteúdo teórico do postulado em referência. Trata-se da circunstância de que, infelizmente, a expressão é utilizada como subsídio retórico para legitimar o cerceamento de defesa, conforme incansavelmente denunciado por autorizados doutrinadores, a exemplo de Lenio Streck. [9]
Buscou-se, com esse emblemático exemplo, trazer a lume a necessidade e a utilidade prática de uma revisitação das bases dogmáticas da Teoria da Prova. O florescimento das discussões em torno desse objeto de estudo bastante amplo poderá contribuir para uma reflexão mais informada, e, diga-se de passagem, mais consentânea com a realidade do processo na contemporaneidade, acerca da própria natureza jurídica das normas sobre prova.
[1] Para um panorama dessa discussão: REGO, Hermenegildo de Souza. Natureza das normas sobre prova. São Paulo: RT, 1985; e GIANNICO, Maricí. A prova no Código Civil: natureza jurídica. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2007
[2] Esse é o raciocínio subjacente à regra da incidência imediata das normas processuais aos processos pendentes, já tradicional em nosso sistema. Essa ratio é, contudo, de duvidosa aplicação às normas sobre prova.
[3] Curiosamente, a maior parte da doutrina reconhece a existência de um direito fundamental à prova. Haveria, então, uma vedação constitucional à possibilidade de restrição superveniente dos meios de prova à disposição das partes, por parte do legislador?
[4] Nos referimos aos escopos da jurisdição indicados na formulação da Teoria Geral do Processo de Dinamarco, Grinover e Araújo Cintra, que é a mais difundida no Brasil.
[5] Conforme o art. 381, inc. III, do CPC.
[6] Nesse sentido: FERREIRA, William Santos. In: Wambier, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 992; e MÜLLER, Julio Guilherme. Negócios processuais e desjudicialização da prova: análise econômica e jurídica. São Paulo: RT, 2017. p. 193.
[7] Sobre essa noção, confira-se: TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. tradução Vitor de Paula Ramos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016. p. 73-76.
[8] Idem
[9] STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. O autor denuncia mais especificamente o uso da expressão "decido conforme minha consciência". Quanto ao postulado do juiz destinatário da prova, confira-se o segundo capítulo da obra, onde há, inclusive, transcrição de um julgado que bem exemplifica seu mau uso.